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sábado, 30 de janeiro de 2021

A minha avó Gracinda e os provérbios.

 



 

Já terei escrito isto nalguma parte, v. g., nas páginas deste Diário? Pelo sim pelo não, e ciente de que repetita juvant e de que é melius abundare quam defficere, como tantas vezes repito, a história aqui vai.

No decorrer do meu terceiro ano de seminário menor (em conversas de reminiscências com velhos colegas, costumamos dizer jaula clerical, em vez de seminário), quando o bom e muito competente Padre Amador dos Anjos era meu professor de Português, não me lembro por que motivo, fiz uma redacção em que entravam muitos provérbios, quase sem eu saber, sendo vários deles totalmente desconhecidos desse meu saudoso professor.

          O Padre Amador, visivelmente impressionado, perguntou-me como é que eu sabia assim tanto provérbio. Depois de haver pensado um pouco, respondi-lhe que provavelmente acontecia isso por influência do modo de falar da minha avó materna. É que, reflectindo um pouco, cheguei à conclusão que a minha avó Gracinda raramente botava falação sem meter provérbio pelo meio ou pelo fim, quando não a torto e a direito.        

Perante essa hipótese, o Padre Amador aconselhou-lhe a munir-me de um caderno e de um lápis, logo nas próximas férias de Verão (as únicas que nos davam a nós, seminaristas salesianos), e tomar nota de todos os provérbios que eu fosse ouvindo dizer à minha avó, pois ele estava com uma enorme curiosidade de aprender provérbios novos.

Sabendo que, para um bom seminarista, o desejo de um superior era uma ordem, como nos incutiam na mente, a partir do primeiro momento em que transpúnhamos os umbrais do seminário, chegado à minha aldeia, Soutelinho da Raia, do Concelho de Chaves, creio que ainda não tinha desfeito as malas quando me aproximei da minha avó e lhe pedi, sem qualquer preâmbulo, que me dissesse um provérbio. Mediante um pedido tão inesperado e tão estranhamente bizarro, a minha avó Gracinda volta-se para mim e dispara-me com estas palavras:

- Ó filho, julgas que é só chegar à burra e tirar-lhe um figo?

Foi ela acabar de proferir este provérbio e eu a correr para o meu quarto, pegar do caderno e registá-lo nele. E, apostado em satisfazer o desejo e o pedido do meu bom professor de Português, Padre Amador dos Anjos, sei que, pelo final dessas férias, tinha eu enchido uns dois ou três cadernos de provérbios ouvidos dos lábios imaginosos e fecundos da minha avó Gracinda. Eram todos originais? Garanto que o não sei. Mas o que sei é que muitos deles tinham de ser originais, pois, se os provérbios existem, é porque alguém os inventa e a minha avó materna tinha uma inclinação inata para esse tipo de invenção, pois, de uma maneira geral, repito, quase sempre que falava saía provérbio de se lhe tirar o chapéu.

O que posso também garantir é que, nesse mesmo dia, antes de ir para a cama, ainda lhe ouvi proferir mais dois provérbios, intermediados com um da “koiné”, surgidos ao acaso, com uma espontaneidade estonteante. Brotaram-lhe dos lábios de enfiada, no momento em que ela estava a acabar de fazer um bolo para a sobremesa. Quando o meu irmão mais velho lhe chamou a atenção não sei para que defeito encontrado no bolo, a minha avó ripostou-lhe assim, a talhe de foice, sem papas na língua:

- Ó filho, isto não é nariz de santo. Para quem é, bacalhau basta. E sabes que mais? Para um atrevido e um ingrato como tu, dar-te um bolo destes é o mesmo que pôr manteiga em nariz de cão.

Declaro também que foi cheio de alegria e de orgulho, por ter uma avó tão bem-falante, que, de regresso ao seminário, me apressei a depositar esses cadernos recheados de provérbios nas mãos sôfregas, radiantes e gratas do meu professor de Português. Ter-mos-á devolvido? Não sei. E se o meu professor mos não devolveu, por que terá sido? Embora o não saiba ao certo, tenho as minhas dúvidas e as minhas desconfianças. Terá sido por que da boca franca da minha avó Gracinda saíam às vezes provérbios um pouco apimentados, susceptíveis de macular a pureza dos ouvidos de um seminarista exemplar? Pergunta sem resposta, porque nunca tive inclinação para interrogar sombras indesejáveis e muito menos para dar ouvidos a vozes de além-tumba:  a “palavras loucas, ouvidos moucos”, como diria minha avó. Só sei que nunca soube que sumiço levaram esses preciosos cadernos, repletos de provérbios da minha avó materna, o que sempre profundamente lamentei e continuo a lamentar. O que eu daria para ter hoje em meu poder esse tesouro inestimável saído dos férteis e sábios lábios da minha saudosa avó Gracinda!


António Cirurgião

 





terça-feira, 8 de setembro de 2020

Sobre os dois irmãos de Famalicão.







O Vasco Barreto, que é brilhante-fulgurante mas doido, achou por bem dizer umas coisas só à altura da grandeza de carácter que todos lhe reconhecem. Somos amigos há muitos anos, mas nesta excedeste-te, Vasco, poças. E, como amigos de muitos anos, fomos falando deste caso dos dois alunos de Vila Nova de Famalicão que correm o risco de recuar dois anos num percurso escolar brilhante. Ninguém deseja que isso aconteça. E estou em crer que toda a gente, ou pelo menos quase toda, a que assinou este manifesto, não deseja que os dois alunos de Famalicão percam dois anos da sua carreira académica. Ninguém o deseja, nós também não. E, por isso, o Vasco e eu (não, não foi «eu e o Vasco», foi «o Vasco e eu»), decidimos escrever um texto que saiu hoje no Público, edição online e na versão papel. Há quem se mova por grandes princípios, abstracções lindíssimas, ideologias de um sentido ou de outro. A nós preocupa-nos mais o concreto e básico, as pessoas de carne e osso. Talvez seja mais comezinho e mais terra a terra, porventura mais poucochinho, mas não é despiciendo nem de somenos, julgamos nós. Quanto a si, julgue o que quiser – mas conceda apenas que eu e o Vasco, ou o Vasco e eu, escrevemos este texto de coração aberto e em plena boa-fé, total e absoluta.








domingo, 6 de setembro de 2020

A vida, tão boa que é.





Rita, então tu julgavas que eu não ia ver o filme que me deste? Pois vi, e vi ontem, parva. O êxtase é muito, e aqui o partilho. Muchos hijos,un mono y un castillo foi das coisas mais divertidas e comoventes que me entraram pelo espírito nos últimos e confinados meses. O filme, um documentário rodado por Gustavo Salmerón durante 14 anos (será possível?), tem uma protagonista hegemónica, retumbante e esmagadora: a sua mãe. Julita Salmerón, assim se chama o portento (numa das entrevistas a propósito do filme, o realizador diz que o pai é também co-protagonista, mas coitado dele). Bigger than life, telúrica, torrencial o que quiserem, Julita Salmerón é Espanha por uma pena (o filme, aliás, começa com ela a beber chocolate quente e a comer bolachas, melhor era impossível). Depois, subimos por ali acima – muitos filhos, um macaco, um castelo – e descemos em voo picado até à crise de 2008 e à hipoteca devastadora. Uma montanha-russa emocional trazida com imensa mestria por Gustavo Salmerón, sobre a qual choveram prémios atrás de prémios, todos mais que merecidos. Está ali Espanha inteira, em casas atafulhadas de objectos (morte a ti, Marie Kondo!), cada qual trazendo uma recordação da vida de uma mulher poderosa – ou, como lá dizem, tremenda. Sobre o filme choveram prémios. É bom que sobre ele também chova a sua atenção. Quando um documentário nos faz rir e chorar, em doses variáveis, talvez a culpa seja nossa – porque o documentário, esse, é perfeito e sem mácula. Quanto a ti, Rita: obrigado, dos abismos do meu coração.









quinta-feira, 16 de julho de 2020

São Cristóvão pela Europa (116).







As minhas filhas ofereceram-me no meu aniversário um lindo São Cristóvão em barro da artista Rita Matias. Ela já não trabalha em barro há quase cinco anos mas foi autora de uma notável galeria de santos e anjos que podem ser vistos em http://rita-matias.blogspot.com/

Pensei que era bem digno de figurar nesta série. Não só pelo valor artístico mas também pelo valor estimativo:







Fotografias de 13 de Julho de 2020

José Liberato






quarta-feira, 1 de abril de 2020

Memória.






O primeiro casamento de Ana Plácido. Campanhã, 28 de Setembro de 1850.


(enviado por José Liberato)






quinta-feira, 19 de março de 2020

VVV

 
 
          Covid-19
          Dicas para Pais em tempo de pandemia: VVV
 
 
1.    Medo vs Pânico
O que as crianças e os adolescentes pensam e sentem depende ainda muito da atitude dos adultos. Eles são o principal espelho da sua estabilidade emocional. Os medos existem e protegem-nos: são estruturantes. O pânico desorganiza, produz mais riscos sobre uma situação de tensão. Uma função dos pais é serem verdadeiros ansiolíticos das respostas dos filhos.
 
2.    Informação, Conhecimento
É importante mantermo-nos informados. As novas tecnologias de informação permitem o acesso a um mundo infinito de factos e números: geram e desfazem expectativas e ilusões. Mas a função de filtro é muito importante nestes momentos. Nem tudo interessa. Nem tudo é verdadeiro ou tem uma base científica. Demasiada informação já não esclarece: confunde. Convém não esquecer nunca que aceder a informação não é sinónimo de ter conhecimentos (muito menos sabedoria).
 
3.    Desligar
Habituamo-nos a estar sempre ligados, totalmente dependentes da imagem e do ecrã, que agora já é o do telemóvel. O acesso ao que se passa no mundo exterior é imediato, pode levar-nos directamente do interior de nossas casas a um quarto de hospital na China ou em Itália. Ninguém se organiza emocionalmente bem se permanecer como contínuo receptor de tudo quanto sucessivamente está a acontecer. Limitar tempos para estar ligado, a receber informação. Gerar outros para poder desligar, respirar o silêncio, a pausa, um certo vazio estruturante; ajude os mais novos a fazer o mesmo.
 
4.    Isto Não É uma Guerra
A pandemia por coronavírus não é uma guerra. É uma situação difícil que obriga a adaptações importantes e temporárias. Todos os seres humanos estão do mesmo lado! Estamos em família, juntos, não há pais ou filhos a partirem para outros locais, a morrerem longe ou de forma inesperada. Por outro lado, a história recente indica que o homem tem vencido estas batalhas, mesmo que por vezes leve algum tempo. Há cem anos atrás (quase) todos os infectados morriam de tuberculose. Há trinta, o mesmo se passou com o VIH e a Sida. As vacinas estão a caminhos, outros medicamentos também. O tempo que demora a chegar a resposta é cada vez menor!
 
5.    Riscos; Do Possível ao Provável
Neste tipo de situação morrem, infelizmente, pessoas. São sempre os de maior idade, os já fragilizados por outras doenças. Em 2019, nos dois picos de gripe “comum”, só em Portugal morreram cerca de 3.300 pessoas; jamais atingiremos este número na situação actual. Estamos a agir bem! Também no nosso país, quando há cerca de 10 anos surgiu a epidemia por gripe A, os primeiros dados apontavam para cerca de 2 a 3 milhões de infectados e o risco de 75.000 mortos. No final, contaram-se perto de 167.000 infectados, faleceram 122 pessoas.
 
6.    Lidar com o Desconhecido
O que talvez mais inquiete nesta situação é o desconhecido. O que não se vê e o que não se controla. O homem habituou-se demasiado a ter a (falsa) ideia de que sabe e domina tudo em seu redor; o aumento da sua esperança de vida e todos os avanços científicos e tecnológicos criaram a falsa ideia de uma imortalidade física ou, pelo menos, de uma amortalidade, isto é, não morrer mais de causas naturais. Mas, crentes de todos os maravilhosos avanços que conseguimos, vale a pena respeitar um conceito de transcendência: nem tudo depende de nós. Será que ainda conseguimos?
 
7.    Olhar para Dentro
Viver a restrição de uma circulação pública, estar confinado a um espaço de casa ou de quarto, obriga a parar. A cessar transitoriamente determinado tipo de estímulos. A repensar sobre o âmago da vida, da nossa existência até. Então, há que aproveitar para distinguir o essencial do acessório, o central do satélite. Abandonar um registo habitualmente auto-centrado. Rever o conceito de “ser” muito para além do “ter”; “ser no mundo” é, afinal, “ser no outro”.
 
8.    Simplificar
Como no final de um poema de Mário Cesariny, perguntar a nós próprios: “afinal, o que importa?” Por vezes, como referiu o arquitecto Mies van der Rohe, “less is more”: menos é mais. Para quê tanto objecto em casa? Tanta peça de roupa no armário? Tanto detalhe ou complicação no dia a dia? Tanta hora presencialmente gasta no trabalho, afinal a característica maior deste novo “homo laborans”? Eric Schumacher, economista do final do século xx, também adiantava ao referir-se a um sistema em que as pessoas contam: “small is beautiful”.
 
9.    Pedir Ajuda, Manter a Esperança
As situações de tensão podem conduzir ao que designamos como um “pensamento terminal”, sentido como sem ajuda possível ou sem sentimento de esperança algum. Pedir e aceitar ajuda não tem que ser um sinal de fragilidade; todos somos humanos e também nos reconhecemos em diversos pontos fracos. Pedir ajuda pode ser apenas um sinal de humildade e lucidez. Por outro lado, a esperança é a luz que todos recebemos, mas também aquela que emitimos. Há coisas que, mesmo no escuro, brilham: são incandescentes. Assim também nós temos que ser agora: luz de luz. Ou, como se ouvia numa bela canção do grupo The Smiths, “there is a light that never goes out”
 
10. Prosseguir, sendo
Há um conceito importante em saúde mental, que nos remete para a possibilidade de prosseguir, mesmo diante de situações adversas: “going on beign”, que apela à unidade de cada pessoa, não só enquanto ser individual, mas sobretudo como ser social, em constante interacção com os outros. E também recorda a ideia de que, por vezes, não é mesmo possível fazer mais nada do que serenamente deixar fluir o tempo, boiar à tona de águas difíceis e crer que, mesmo assim, a força da corrente nos levará em breve para a areia quente de uma praia tranquila.
 
Vai tudo correr bem!
VVV… Vamos Vencer o Vírus!
Vamos pôr um V no nosso olhar, nas palavras, nos sorrisos, nos abraços e nos beijos que, por agora, nos aconselham a não dar.
Vamos por um V às nossa janelas.
 
Pedro Strecht, Médico Pedopsiquiatra
plstrecht@gmail.com
 
 



 
 
 
 



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

aconteceu Esperança.

 
 



Rui e Rita, Lda. tiveram um bebé e, portanto, parabéns ao bebé (à bebé, melhor dito).

Aos sócios gerentes da Rui e Rita, Lda.: lembrei-me de vos oferecer, qual mago sem mirra ou oiro, uma fotografia do Lennart Nilsson, que foi um sueco muito pioneiro a captar imagens in vivo de bebés no ventre das Ritas daquela época, que foi a sua. Não sei bem porquê, talvez pela coloração ou pelo negrume envolvente, as imagens de Nilsson sempre me lembraram as do infinito cosmos, tiradas por naves interstelares e outras Nasas da vida. Naquelas fotografias, os bebés parecem astronautas ou planetas, corpos mais que celestes – e deixo a cada qual as efabulações que queira fazer a partir desta analogia quase mística, muito pateta.

Era miúdo quando vi pela primeira vez as fotografias de Nilsson, numa revista Reader’s Digest de infância. E, por já nessa altura ser muito criança, fiquei fascinado, deslumbradíssimo. Soube não muito depois que o livro mais famoso dele estava publicado cá, chamava-se Como Nasce Uma Criança, e tinha sido editado pela Dom Quixote devido à clarividência nórdica de Snu Abecasis. Não descansei à procura do livro, acabei na sede da editora, na Rua Luciano Cordeiro, consegui comprá-lo (esse era o tempo em que um miúdo corria Lisboa à solta, em primícias de amor eterno pela cidade triste e alegre). A sede da Dom Quixote, um belo palacete, foi há tempos demolida e dela não resta nada, só a convicção de que nos estão a assassinar a cidade, e nós a ver, muito passivos. Sobrou o livro do Nilsson, tenho-o aqui ao meu lado, mesmo à beirinha de onde agora vos escrevo, ó pais babados com o novo assalariado que vos entrou em casa.  Assim o queiram, o livro será obviamente vosso, Rita e Rui. Pois, a partir de hoje, é vossa a Esperança. (e também um bocadinho nossa, de todos, pode ser?)
 
 

  

 

 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Dos justos.

 
 
Pintura de Celja Stojka
 
O António pediu-me para contar esta história aqui. Eu conto, tal e qual a contei a ele e a uma amiga italiana que acabara de me dizer, horrorizada, que durante a noite de ontem alguém pintou uma estrela de cinco pontas na casa de uma pessoa judia.
 
A minha filha tem um nome com uma combinação improvável, entre outras coisas porque acabou com o nome do avô materno, que não vem a este caso, e o da avó paterna, que vem. A avó Suzanne já morreu, bem como o tio-avô Albert e os bisavós Élie e Marie-Louise de que fala este apontamento-notícia:
 
 Traduzindo resumidamente:
Élie e Marie Louise Richaud (…) tinham acolhido refugiados do Leste da France durante a Primeira Guerra mundial, em 1914-1918. Têm três filhos, Louis e Albert, resistente, e Suzanne. Em 1938, deram abrigo durante uns tempos a republicanos espanhóis. Durante a Segunda Guerra mundial, guiados pelo respeito de outrem, Élie e Marie Louise vão acolher e salvar numerosas pessoas (…). Nesta tarefa são ajudados por I.(…), padeiro e resistente, cujo filho irá buscar a Marselha uma pessoa judia, que tinha escapado in extremis à Gestapo, e a conduziu à casa de Élie e Marie Louise (…). O filho destes, Albert Richaud, agente de ligação entre os vários movimentos da Resistência, encontrará refúgio para as pessoas que transitavam pela casa dos seus pais, enquanto a filha, Suzanne, professora primária, “vinha todos os fins de semana substituir a mãe nas tarefas que se aproximavam das de um hotel benemérito", dirá Louis Richaud quando da atribuição da medalha dos Justos aos seus pais, em 26 de junho de 2009.
Em razão desta história (aqui contada só pela metade, como se verá de seguida), a miúda lá foi receber a tal medalha dos Justos, como símbolo-testemunho para as novas gerações e depois da entrega de um documento ao tio na foto.  
 
O que não vem na notícia é o seguinte, que também merecia ser contado porque entra no rol dos pequenos gestos salvíficos de que pouco se fala: escaparam todos por um triz ao fuzilamento certo que se teria seguido à denúncia anónima de que foram alvo (e, pelas leis da biologia, escapou ela à não-existência futura). Tudo graças à ação de uma senhora funcionária dos correios, que intercetava as cartas dirigidas à Kommandantur da zona, levava-as para casa, abria-as com vapor e avisava os visados. Depois voltava a fechar e só então as fazia seguir. 
 
Agora a outra história, a abjecta. Poderia juntar aqui a tal carta anónima, mas é uma infeção, não aconselho ninguém a ler. Finda a guerra, um amigo influente na polícia deu com a carta e abriu uma investigação bicudinha, metendo perícias grafológicas e tudo. E deu com o autor da dita. Pois bem, o infame era nada mais, nada menos, do que o filho do melhor amigo de Élie. Não só melhores amigos. Tinham estado juntos nas trincheiras de Verdun. Ciúme daquela amizade, ressentimento, mesquinhez, quem sabe? 
 
Grandeza e miséria humana, como sempre. E memória, outros laços, outras vidas: as famílias salvas e seus descendentes lá estão, e foram voltando. Tenho pena de nunca ter calhado cruzar-me com eles. O que também não vem ao caso.
 
Manuela Ivone Cunha
 
(dedicado à Adriana Costa Santos e aos Justos de hoje)