Já terei escrito isto nalguma parte, v. g., nas páginas deste Diário? Pelo
sim pelo não, e ciente de que repetita juvant e de que é melius abundare quam
defficere, como tantas vezes repito, a história aqui vai.
No decorrer do meu terceiro ano de seminário menor (em conversas de
reminiscências com velhos colegas, costumamos dizer jaula clerical, em vez de
seminário), quando o bom e muito competente Padre Amador dos Anjos era meu
professor de Português, não me lembro por que motivo, fiz uma redacção em que
entravam muitos provérbios, quase sem eu saber, sendo vários deles totalmente
desconhecidos desse meu saudoso professor.
O
Padre Amador, visivelmente impressionado, perguntou-me como é que eu sabia
assim tanto provérbio. Depois de haver pensado um pouco, respondi-lhe que
provavelmente acontecia isso por influência do modo de falar da minha avó
materna. É que, reflectindo um pouco, cheguei à conclusão que a minha avó
Gracinda raramente botava falação sem meter provérbio pelo meio ou pelo fim,
quando não a torto e a direito.
Perante essa hipótese, o Padre Amador aconselhou-lhe a munir-me de um
caderno e de um lápis, logo nas próximas férias de Verão (as únicas que nos
davam a nós, seminaristas salesianos), e tomar nota de todos os provérbios que
eu fosse ouvindo dizer à minha avó, pois ele estava com uma enorme curiosidade
de aprender provérbios novos.
Sabendo que, para um bom seminarista, o desejo de um superior era uma
ordem, como nos incutiam na mente, a partir do primeiro momento em que
transpúnhamos os umbrais do seminário, chegado à minha aldeia, Soutelinho da
Raia, do Concelho de Chaves, creio que ainda não tinha desfeito as malas quando
me aproximei da minha avó e lhe pedi, sem qualquer preâmbulo, que me dissesse
um provérbio. Mediante um pedido tão inesperado e tão estranhamente bizarro, a
minha avó Gracinda volta-se para mim e dispara-me com estas palavras:
- Ó filho, julgas que é só chegar à burra e tirar-lhe um figo?
Foi ela acabar de proferir este provérbio e eu a correr para o meu quarto,
pegar do caderno e registá-lo nele. E, apostado em satisfazer o desejo e o
pedido do meu bom professor de Português, Padre Amador dos Anjos, sei que, pelo
final dessas férias, tinha eu enchido uns dois ou três cadernos de provérbios
ouvidos dos lábios imaginosos e fecundos da minha avó Gracinda. Eram todos
originais? Garanto que o não sei. Mas o que sei é que muitos deles tinham de
ser originais, pois, se os provérbios existem, é porque alguém os inventa e a
minha avó materna tinha uma inclinação inata para esse tipo de invenção, pois,
de uma maneira geral, repito, quase sempre que falava saía provérbio de se lhe
tirar o chapéu.
O que posso também garantir é que, nesse mesmo dia, antes de ir para a
cama, ainda lhe ouvi proferir mais dois provérbios, intermediados com um da
“koiné”, surgidos ao acaso, com uma espontaneidade estonteante. Brotaram-lhe
dos lábios de enfiada, no momento em que ela estava a acabar de fazer um bolo
para a sobremesa. Quando o meu irmão mais velho lhe chamou a atenção não sei
para que defeito encontrado no bolo, a minha avó ripostou-lhe assim, a talhe de
foice, sem papas na língua:
- Ó filho, isto não é nariz de santo. Para quem é, bacalhau basta. E sabes
que mais? Para um atrevido e um ingrato como tu, dar-te um bolo destes é o
mesmo que pôr manteiga em nariz de cão.
Declaro também que foi cheio de alegria e de orgulho, por ter uma avó tão
bem-falante, que, de regresso ao seminário, me apressei a depositar esses
cadernos recheados de provérbios nas mãos sôfregas, radiantes e gratas do meu
professor de Português. Ter-mos-á devolvido? Não sei. E se o meu professor mos
não devolveu, por que terá sido? Embora o não saiba ao certo, tenho as minhas
dúvidas e as minhas desconfianças. Terá sido por que da boca franca da minha
avó Gracinda saíam às vezes provérbios um pouco apimentados, susceptíveis de
macular a pureza dos ouvidos de um seminarista exemplar? Pergunta sem resposta,
porque nunca tive inclinação para interrogar sombras indesejáveis e muito menos
para dar ouvidos a vozes de além-tumba: a “palavras loucas, ouvidos
moucos”, como diria minha avó. Só sei que nunca soube que sumiço levaram esses
preciosos cadernos, repletos de provérbios da minha avó materna, o que sempre
profundamente lamentei e continuo a lamentar. O que eu daria para ter hoje em
meu poder esse tesouro inestimável saído dos férteis e sábios lábios da minha
saudosa avó Gracinda!
António Cirurgião