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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Paris é Lisboa.






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Em Fevereiro deste ano, uma editora com pergaminhos e responsabilidades, a Sextante, publicou entre nós o livro Cinzas de Abril, do espanhol Manuel Moya, cujo enredo, como o nome indica, se passa por alturas da revolução de 25 de Abril de 1974. Nas vésperas da revolução de Abril, uma rapariga de família burguesa apaixona-se por um idealista radical… diz o texto na contracapa, prosseguindo por aí fora com uma descrição de antologia: ambos atravessam os dias da revolução de Abril com paixão… Caliente, señor Moya, assim é que é! Ganhou o Prémio Fernando Quiñones. 

Quanto ao conteúdo, não nos pronunciamos. Esbarrámos logo no umbral da capa. A edição espanhola tem uma capa pouco criativa e muito debilitada, até por ser demasiado óbvia: o encarnado cravo encanado no topo da espingarda e, em fundo, populares e militares (ou vice-versa). Para o mercado espanhol, é uma opção iconográfica que se compreende: trata-se de evocar a revolución de los cláveles, ainda muito impregnada na memória do chamado «grande público», o Leviathan dos nossos dias. De facto, na linguagem dos nossos dias, dir-se-á que o cravo é um eixo-forte do branding do april 25th, que, quando articulado com um lettering expansivo e um layout inovador, é especialmente vocacionado para o merchandising eficaz junto do target a que o produto-Moya se destina: mujeres al borde de un ataque de nervios.  
   

Manuel Moya, Las Cenizas de Abril, 2011
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Na edição portuguesa, a ficha técnica indica: «Design da capa: Atelier Henrique Cayatte com Susana Cruz». E, depois, diz-se: «Imagem da capa de Michel Maiofiss © Gamma-Rapho via GettyImages».

Michel Maiofiss é um nome conhecido da fotografia, com obras interessantes, algumas de altíssimo nível. Esta fotografia, usada na capa de Cinzas de Abril, chama-se, em tradução livre, Casal no Boulevard Saint Michel em Maio de 1968. De facto, basta olhar para a fotografia para percebermos que ela não tem nada mas nada a ver com o tão nosso 25 de Abril de 1974: os capacetes dos polícias, do lado direito, o rapazito louro, a correnteza dos edifícios amansardados, os candeeiros. Lisbonne? A imagem, aliás, é totalmente soixante-huitarde, com os paralelepípedos amontoados no chão. Sous les pavés


Michel Maiofiss, Casal no Boulevard Saint Michel em Maio de 1968


Manuel Moya, Cinzas de Abril, trad. port., 2012


Como é possível o atelier de Henrique Cayatte, com créditos firmados e milhares de/em trabalhos e outros milhares de/em encomendas,  ter feito um servicinho destes ?!! Não dramatizemos em excesso, porém. Não se trata de uma traição soez ao espírito de Abril. Calma, Vasco Lourenço, people é sereno. O que está em causa é, pura e simplesmente, uma asneira. Mas, convenhamos, asneira da gorda e da grossa, a qual pode, inclusivamente, induzir em erro os leitores, sobretudo os mais jovens. Para quê usar uma fotografia se ela ilustra um acontecimento que não teve nada a ver com o conteúdo e o tema, o tempo e o modo da obra capeada? Obra que, ademais, vive da História. Apenas por deleite estético, para usar uma fotografia bonita?  A capa da edição portuguesa é, sem dúvida, muito mais bonita do que a versão castelhana. Justiça seja feita. Mas a busca do «bonito» autoriza o vale-tudo, permite até o anacronismo confusionista – e trapalhão – de datas, pessoas e locais? Ao olhar para aquilo,  Cayatte não topou a água que metia o seu caiaque? Ninguém notou, ninguém morou, como canta a música de Chico, o da Hollanda?

Para mais, se os clientes queriam imagens, dispunham de centenas e centenas de imagens, tão ou mais «bonitas» do que esta, para colocar numa capa de um livro sobre o 25 de Abril. Se quisessem uma fotografia, pois tinham Eduardo Gageiro, tinham Alfredo Cunha, tantos e tantos outros. Mas não. O 25 de Abril, que tem uma iconografia riquíssima e poderosíssima, foi posto ao largo. Do Carmo. Preferiram ir a um banco de imagens e comprar uma foto. Paga-se, Visa Card ou PayPal, e já está. Em dois cliques do rato do PC (personal computer) sai uma capa bela que, no escaparate livreiro, provoca e convoca o olhar incauto.    
         .....A questão relaciona-se com um problema sério que tem sido muito discutido na blogosfera : o recurso, porventura excessivo, aos bancos de imagens. Sobre o chamado cover déjà vu, veja-se a crítica aqui. Um obrigado, André! Neste e noutros domínios bancários, tem-se, de facto, abusado do crédito. Para certos fins, é legítimo – e prático – utilizar bancos de imagens. É legítimo, mais do que legítimo, usar imagens da GettyImages ou da Corbis para fazer capas de livros – ainda que, por vezes, o uso excessivo das mesmas imagens crie situações caricatas que já mostrámos aqui. Há casos mais graves, ou ridículos: imagens consagradas de autores conhecidos são usadas em capas que nada têm a ver com o ambiente ou o local de origem. Pois lá temos, num livro sobre retornados de África, de Júlio Magalhães, uma fotografiazita da 2ª Guerra Mundial… É só uma calinada de uns 30 anos de distância, mas enfim. E, noutro livro do mesmo ficcionista, uma imagem da autoria do celebérrimo Alfred Eisenstaedt mostrando a despedida beijoqueira de um soldado na Pennsylvania Station, em Nova Iorque. E se depois as coisas, no confronto do estirador, não encaixam lá muito bem? Pois lá vai de manipular a fotografia. O PhotoShop está aí para quê ? Para pôr o Vasco Pulido Valente a sorrir, feliz? Ná, milagres é pedir demais. Mas para o dia-a-dia, para o desenrasca quotidiano, o PhotoShop serve na perfeição. Para compor as capas e disfarçar canhestramente os anacronismos, metem-se à martelada e escopro uns aviõezinhos, corta-se aqui, retalha-se acolá, dá-se um colorido artificial onde outrora imperava o preto e branco e, pronto, toca a andar prá frente. Ninguém nota, vamos lá mas é a despachar isto, ó rapazolas criativos, que o pessoal operário da tipografia está à espera e o Natal não tarda. Subsídio do dito é que só lá para 2015, e com sorte.
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Roger Viollet, Soldados mobilizados frente à Gare de l'Est, Paris, 25/8/1939






Alfred Eisenstaedt, Pennsylvania Station, New York City, 1944


A moda vem de fora, das melhores proveniências, como se pode ver aqui. No romance histórico, e porque o consumidor aprecia o requinte, é usual meter na capa uma pintura de época. Mas, uma vez mais, abusa-se… Para quem duvide, basta ver  o que Sarah Johnson tem detectado no absolutamente notável Reusable Cover Art in Historical Novels. Thank you, Sarah! Só um exemplo aos resultados desta prática:











  
 

Como disse, é legítimo usar imagens de instituições bancárias em livros «neutros», de economia, sociologia, medicina, nos manuais de auto-ajuda e conselhos de «vida prática». O que não parece legítimo ?

1) Manipular em excesso imagens – sobretudo as que possuem, em si mesmas, valor iconográfico ou artístico. Cuidados especiais merecem as imagens que não foram feitas para servir de capa a livros. Realçar um pormenor, destacar um aspecto particular (as mãos sapudas da Gioconda, por ex.), ainda vá. Agora, meter numa imagem, sobretudo fotográfica, elementos adicionais, artifícios e truques, isso não.   

         2) Descontextualizar imagens, como acontece, de forma caricata e risível, neste Cinzas de Abril.

De facto, é absolutamente inacreditável o que o Atelier Henrique Cayatte («com Susana Cruz») fez neste caso. Por ignorância histórica e indigência cultural? Por ser mais barato? Preguiça pura? Jantar ao lume, a novela das nove? Para despachar a coisa às três pancadas que está outro cliente à espera? Excesso de encomendas, sobrecarga de trabalho, muito ajuste directo? Avidez do ganho? Ou, em interpretação mais benévola, por busca da originalidade artística, na ânsia de ser «diferente»? Simplesmente, não é isto que faz a «diferença» de Henrique Cayatte, cujos muitos talentos, sublinhe-se, ninguém questiona.  

Há uma grande tradição de grandes ilustradores portugueses: Espiga Pinto, Almada, Vespeira, Sebastião Rodrigues, Maria Keil, quantos querem? É ver aqui, com o meu obrigado à Rita, daqui. Entre os mais jovens, abunda arte nova. Fotógrafos grandes, também os temos. E toda esta gente só pode sobreviver e mostrar a mestria que possui se as editoras levarem a sério a missão que, essa sim, faz a «diferença» relativamente a outras actividades culturais, como o coleccionismo de pacotes de açúcar, ao qual pode aderir por exemplo  em http://www.pacotinhos.net/, ou  em http://www.pacoteca.web.pt/. Isto sem demérito para os cultores desta ciência, designada sucrologia (do inglês, sucrology) ou glucosbalaitonfilia (catalão). Está em curso um aprofundado debate sobre se esta arrebatadora paixão se deve chamar simplesmente «glicofilia» ou, com mais rigor, «periglicofilia». No meio da crise de valores morais e do défice de princípios éticos, é sempre reconfortante encontrar pais de família portugueses que frequentam sítios como Pacotada.com 

Termino. Por favor, senhores, não coloquem imagens do  Maio de 1968, em pleno Boul’Mich, a ilustrar livros sobre o 25 de Abril. Paris em Lisboa, não. Qualquer dia é o quê? Fotos do Vietname em relatos da guerra de África? O Gungunhana a fazer de Jonas Savimbi? Já faltou mais. Em poucos anos, irão rarear ilustradores de talento, o trabalho gráfico vai cair na pior das desgraças, a da previsibilidade ou, como neste caso, a da asneirada nua e crua. Vivemos uma autêntica involução cultural. Dos grandes capistas passámos para os pequenos copistas. A mando e para o lucro dos vorazes capitalistas. Não, não foi para isto que se fez o 25 de Abril. Nem, de resto, o Maio de 68. Cinzas de Abril é o título do livro. Não poderia ser mais apropriado.  


António Araújo  


  

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Ele há coincidências - 1

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O livro Suite Française, de Irène Némirovsky, tem uma bonita capa nestas edições anglo-saxónicas (a capa do original francês é mais feiota). A acção passa-se durante a 2ª Guerra. O conteúdo do livro é fraquito, mas a capa é, de facto, muito bonita. Muito apelativa.  






Também muito bonita a capa de Os Retornados. Um Amor Nunca se Esquece, de Júlio Magalhães, editado pela Esfera dos Livros. A acção passa-se após a descolonização portuguesa. Décadas depois da 2ª Guerra, a imagem permanece. O vestido da senhora não parece muito do Portugal/anos 70, mas tudo se remedeia com o sagaz aditamento, no canto superior esquerdo, de um aviãozinho a rasgar o azul do céu. É, de facto, uma capa muito bonita. Muito apelativa. Ninguém lhe resiste.  






Roger Viollet, Soldados mobilizados frente à Gare de l'Est, Paris, 25/8/1939 




António Araújo