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quinta-feira, 11 de maio de 2023

Um gigante da literatura visitou a URSS do deus Estaline e denunciou a fraude.

 


 


 

Nunca entendi como um documento histórico e documental como o que André Gide escreveu por ocasião da sua viagem à URSS, em 1936, jamais tenha conhecido tradução portuguesa. Posso perceber que o Estado Novo não consentiria que um dos maiores vultos da literatura contemporânea, alicerçado em ideologia anticapitalista, que tenha feito o elogio fúnebre de Máximo Gorki, em plena Praça Vermelha, perto de Estaline e outros consagrados da época, viesse dizer abertamente que guardava a esperança a despeito das monstruosidades que observara, algumas bem próxima das que podiam ser praticadas pelo regime de Adolfo Hitler. Teria sido o maior embaraço para a nossa despótica censura. Mas que em democracia tenha preciso chegarmos em 2023 para conhecer este primor da escrita e a tremenda denúncia deste espírito independente é para mim incompreensível. É urgente conhecer e guardar nas estantes Regresso da URSS, por André Gide, Publicações D. Quixote, 2023.

Antes de mais, o primor literário, temos aqui observações esplendentes do consagrado Prémio Nobel da Literatura de 1947. Oiçam só: “Garanto que há qualquer coisa de trágico na minha aventura soviética. Enquanto entusiasta convicto, fui para admirar um novo mundo, e ofereceram-me, para seduzir, todas as prerrogativas que eu detestava no antigo.” Dirá no prefácio que houvera da sua parte admiração e amor pela URSS. “Ali, ocorria uma experiência sem precedentes que nos enchia os corações de esperança, e da qual esperávamos um progresso imenso, um impulso capaz de arrastar toda a humanidade. Nos nossos corações e nos nossos espíritos, ligávamos decididamente o destino glorioso da URSS ao futuro da própria cultura.” Visitou, percorreu largos troços do país, assediado pela classe política e pelo aparelho do partido comunista, preferiu ir conversar com gente política, o que permitiu ditar a seguinte observação: “Ali existe o bom e o mau; direi mesmo: o excelente e o pior. O excelente foi obtido muitas vezes à custa de um enorme esforço. O esforço nem sempre obteve, em toda a parte, aquilo que pretendia obter. Pode por vezes pensar-se: ainda não. Por vezes, o pior acompanha em dobro o melhor. E passa-se do mais luminoso ao mais sombrio com uma brusquidão desconcertante. Acontece com frequência que o viajante, de acordo com convicções pré-estabelecidas, seja apenas sensível a um ou ao outro. Demasiadas vezes, os amigos da URSS recusam-se a fazer o mal, ou pelo menos a reconhecê-lo; de modo que, demasiadas vezes, a verdade sobre a URSS é dita com ódio, e a mentira com amor.”

Não esconde a alegria profunda que usufruiu no contacto direto, em acampamentos infantis ou estaleiros, por exemplo, afirma mesmo que em nenhum outro lugar contacto com quem quer que seja se estabelece de forma tão fácil. Observou as numerosas filas em que centenas de pessoas esperam pacientemente; constata a indolência de muitos, uma massificação sem gosto, móveis feios; e não esconde o seu completo desapontamento com a falta de liberdade de opinião, a fábrica de manipulação montada pelo comunismo: “Na URSS, é aceite à partida e uma vez por todas que, sobre qualquer questão, não pode haver mais do que uma opinião. Além disso, as pessoas têm uma mente tão condicionada que esse conformismo se torna fácil, natural, insensível, ao ponto de não parecer que haja qualquer hipocrisia nisso.” E refletindo sobre tantos padrões de falta de qualidade dirá que a felicidade dos operários russos é feita de esperança, confiança e ignorância. Mais adiante, dirá mesmo que o cidadão soviético vive numa extraordinária ignorância do estrangeiro. “Convenceram-no de que tudo no estrangeiro, em todos os domínios, corre muito pior do que na URSS. Esta ilusão é habilmente mantida, pois é importante que todos, por menos satisfeitos que estejam, se congratulem com o regime que os preservem dos piores males.”

Deu-lhe para perceber que estava à assistir à reconstituição de camadas da sociedade ou mesmo de classes, via-se à vista desarmada o aburguesamento, o espírito pequeno-burguês. E procurou observar as diferentes tiradas ou palavras de ordem, o uso inflacionado de contrarrevolucionário. “O menor protesto, a menor crítica está sujeita às piores penas.” E empregará uma frase que lhe merecerá pesadas críticas quando o livro foi publicado: “Duvido que em qualquer outro país, mesmo na Alemanha de Hitler, o espírito seja menos livre, mais limitado, mais receoso (aterrorizado), mais submissivo.”

Todo este discurso de André Gide irá pôr os comunistas franceses em rebuliço, como é que aquele gigante literário, convidado pelo deus Estaline a discursar sobre Máximo Gorki se atreveu a escrever: “A efígie de Estaline está em toda a parte, o seu nome em todas as bocas, e os louvores que lhe são feitos surgem também sem falta a todos os discursos. A duração, amor ou medo, não sei; sempre e em toda a parte ele está presente.” A receção do seu escrito foi alvo de um vendaval. Gide atrevera-se a fazer reparos, ao nível de um qualquer “contrarrevolucionário”: fizera críticas demolidoras à guerra antirreligiosa, ao condicionalismo férreo das mentalidades, a maus-tratos a trabalhadores agrícolas. Gide não perdeu tempo, respondeu aos insultos, apreciou algumas críticas de boa-fé, e para surpresa do leitor verificará que o genial escritor de Os Moedeiros Falsos estava altamente documentado, como se não tivesse viajado à procura de ver a esperança, e reponta com os moralistas que o criticam: “Uma análise superficial, um julgamento apressado, foi dito do meu livro. Como se não fosse precisamente a primeira impressão, na URSS, o que nos encantou! Como se não fosse ao olhar mais profundamente que encontrámos o pior. É no fundo do fruto que o bicho se esconde. Mas quando digo que esta maçã tem bicho, acusam-na de não ver claramente ou não gostar de maçãs. Se me tivesse contentado em admirar, não me teriam feita essa censura; e nesse caso, seria merecida.”

E rebate as acusações que lhe fazem, ponto por ponto, deita por terra as infantilidades dogmáticas, lembra que esse colosso do cinema que era Serguei Eisenstein foi obrigado a uma autocrítica idiota, teve que parar um novo filme por não estar de acordo com as exigências da doutrina; desmonta a propaganda de que estava a pôr termo ao analfabetismo, de que o operariado era altamente participante, todo um embuste, os sovietes já não funcionavam, e volta-se para os comunistas franceses para os acusar de não terem mentido aos operários.

Não se deve ler a primeira narrativa de Gide sem se ler a sua resposta aos críticos, a altíssima qualidade da sua escrinha não desfalece, desmonta as mentirolas sem humilhar os fanáticos.

Trata-se de um relato magistral na denuncia da monstruosidade do estalinismo. Gide foi à URSS atraído pelas questões sociais e não esconde a desilusão de ver a esperança tão maltratada.

De leitura obrigatória. 


Mário Beja Santos 





quinta-feira, 30 de março de 2023

Aqueles anos de terror e horror em que o comunismo preparou a sua implosão.



 



 

Anne Applebaum faz parte de um núcleo muito restrito de investigadores de primeiríssima água que se debruçam desde o Pós-Guerra na Europa de Leste até à análise sistemática das tendências antidemocráticas que varrem atualmente o continente europeu – é uma historiadora especializada na história do comunismo e na Europa pós-comunista, sem alinhamentos e de um rigor indiscutível. A Cortina de Ferro, A Destruição da Europa de Leste 1944-1956, por Anne Applebaum, Bertrand Editora, 2023, é um documento impressionante, possui o rigor que é timbre da melhor historiografia, abala-nos a consciência pelos alicerces, em mais de 600 páginas iremos acompanhar migrações dramáticas no continente europeu, a asfixia das sociedades civis na Europa de Leste, entre a RDA e a Bulgária, acompanhar a execução do planeamento soviético para destruir qualquer veleidade ao retorno a democracias parlamentares, à execução dos opositores ao projeto totalitário, uma longa viagem que nos levará às convulsões em Berlim em 1953 e à revolução de Budapeste em 1956.

Estaline experimentou este projeto logo em 1939, depois de a Alemanha de Hitler e a URSS terem assinado o pacto germano-soviético, em que se acordou a divisão da Polónia, Roménia, Finlândia e Estados Bálticos. Logo o leste da Polónia, o leste da Finlândia, as nações bálticas, Bucóvina e Bessarábia (Moldova), foram incorporadas na União Soviética. Os territórios orientais da Polónia ainda hoje fazem parte da Ucrânia e da Bielorrússia. Quando a Alemanha de Hitler baqueou e chegou o Exército Vermelho, este fazia-se acompanhar de oficiais do NKVD, desde 1939 que já havia experiência em deportações em massa para os Gulag, havia que ensinar a sovietizar as populações locais.

O que se conta em primeiro lugar é o cataclismo que a guerra provocou, com a sua violência étnica, a chegada e o comportamento dos vencedores, as expulsões de populações, dá-se um quadro claro do que era a representatividade comunista nestes países, de um modo geral diminuta, no fim da guerra verdadeiramente prestigiado só havia Tito, fora o único movimento comunista que dera luta sem tréguas ao invasor alemão; vamos, igualmente, ficar a saber as mudanças que se operaram nas polícias políticas nos países submetidos à URSS e como o NKVD as instruía, como de forma programada se liquidou o Exército Nacional polaco, o símbolo da resistência da Polónia ao nazismo.

Anne Applebaum centrou o seu trabalho nos acontecimentos polacos, húngaros e checoslovacos, será nestes territórios que iremos acompanhar a sua narrativa sobre o que aconteceu em limpeza étnica, como se moldou a nova juventude aos ideais soviéticos, como se destruiu a liberdade de opinião e se procurou reduzir a oposição política a pó. Insista-se nesta observação da autora: “o Exército Vermelho levara agentes da polícia secreta treinados em Moscovo para todos os países ocupados, tinha posto comunistas locais no comando das estações de rádio nacionais e começado a desmantelar as associações juvenis e outras organizações cívicas. Prenderam, assassinaram e deportaram as pessoas que julgavam antissoviéticas e executaram uma brutal operação de limpeza étnica.” A resposta dos aliados ocidentais veio tardia e revelou-se incapaz de remover a chamada Cortina de Ferro, mesmo com o Plano Marshall, a operação de salvar Berlim e o desencadear da Guerra Fria, o comunismo soviético implantara-se. O descontentamento virá depois, logo na economia, revelou-se incapaz de competir com o fulgor da explosão que se deu no Ocidente, a começar pela Alemanha. A autora dá-nos conta dos conflitos em torno da chamada reforma agrária, como a nacionalização da distribuição e do retalho convidou ao mercado negro, como os planos quinquenais, a despeito de inequívocas melhorias, foram insuscetíveis de agradar às populações.

Veremos passados em revista os chamados inimigos e os chamados reacionários, os conflitos com as igrejas, e assim iremos chegar aos inimigos internos e a autora lembra-nos uma observação de um carrasco soviético, Lavrentii Beria: “Uma pessoa que é espancada fará o género de confissão que os agentes do interrogatório quiserem, admitirá que é um espião inglês ou americano ou seja o que for que nós quisermos. Mas nunca será possível saber a verdade desta maneira.” Moscovo irá decidir ao longos dos anos quem deve dirigir cada um dos países, o destino de cada um destes líderes é passado em revista, dá-se especial atenção à tragédia de Gomulka, o dirigente polaco umas vezes incensado outras vezes acusado de desviacionismo de direita, a eterna questão dos judeus infiltrados na direção comunista; o estalinismo ir-se-á progressivamente refinando à medida que estes países conquistados da Europa de Leste não dão uma imagem satisfatória do homem novo ou o homem soviético, tudo se tentou no ensino para mudar os programas e pôr as crianças desde os bancos da escola a conhecer as delícias de uma próxima sociedade sem classes dirigida pela vanguarda proletária, todas as classes de pensamento foram abaladas, como observa a autora: “A partir de 1948, as autoridades da Alemanha de Leste, bem como as da Hungria e as da Checoslováquia, lançaram um ataque mais sistemático contra as faculdades de filosofia, história, sociologia e direito, que foram todas elas transformadas em veículos de transmissão de ideologia, como eram na União Soviética. A história tornou-se história marxista, a filosofia, filosofia marxista, o direito tornou-se direito marxista e a sociologia com frequência desapareceu de todo.” Os académicos foram fugindo, não só das ciências sociais e humanas, mas também os físicos, matemáticos e técnicos; os comunistas sonhavam com a proletarização do corpo estudantil, seria a base da nova intelligentsia socialista, o processo deu os seus fiascos, os estudantes tinham colapsos nervosos, atenda-se que na esmagadora maioria homens novos da classe operária sem instrução secundária não conseguiam acabar os cursos por não terem suficiente capacidade para tomar notas nas aulas.

O leitor que se prepare para este livro de uma importância excecional, que nos permite conhecer como foi montado o mito do realismo socialista, o planeamento de cidades ideais, quem eram os opositores passivos nos diferentes países de Leste e como, depois de 6 de março de 1953, anunciada a morte de Estaline, e com as novas mudanças na hierarquia soviética, o indizível aconteceu, primeiro em Berlim, depois em Budapeste, e a historiadora comenta: “Mesmo quando parecem enfeitiçados pelo culto do chefe ou do partido, as aparências podem ser enganadoras. E mesmo quando parece que estão totalmente de acordo com a mais absurda propaganda, o feitiço pode repentinamente, inesperadamente, dramaticamente, ser quebrado.”

Foi um regime que durou mais de 30 anos nessa Europa de Leste, regularmente os seus próceres interrogavam-se porque é que a propaganda não resultava, porque é que o terror era insuficiente, quais as mudanças nacionais que a URSS aprovaria. Em Moscovo, o dogmatismo impediu ver a aceleração do mundo, Gorbachov tentou remediar o irremediável, perante um mundo atónito caiu o Muro de Berlim e a Europa de Leste cedo começou a apagar as marcas da utopia comunista. Escusado é dizer que ainda há sequelas à vista.

De leitura obrigatória.


                                                                                                            Mário Beja Santos

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Uma punição de Estaline que custou milhões de vidas aos ucranianos.

 




 

A historiadora Anne Applebaum conduziu uma impressionante investigação à fome deliberada dos camponeses ucranianos, e o relato Fome Vermelha, A Guerra de Estaline Contra a Ucrânia, Bertrand Editora, 2022, é uma das mais impressionantes câmaras de horrores posta em letra de forma. Estaline, ao contrário de Lenine, decretou a coletivização dos campos, forçou os camponeses a desistir das suas terras e a aderir a quintas coletivas. Um conjunto de colaboradores do ditador enviou-lhe mensagens urgentes de toda a URSS, descrevendo a crise. Mas Estaline não só queria pôr de joelhos essa Ucrânia que aspirava a soberania e ao respeito pela identidade nacional, como precisava de todas aquelas toneladas de cereais para exportar, decretou a rapinagem de tudo quanto se pudesse trazer das casas dos camponeses, era preciso ter dinheiro para comprar as máquinas que levassem à industrialização acelerada. “O resultado foi uma catástrofe: pelo menos 5 milhões de pessoas morreram à fome entre 1931 e 1934 por toda a URSS. Entre estes, contam-se mais de 3,9 milhões de ucranianos.” Ainda hoje os ucranianos estudam e comemoram este extermínio, o Holodomor, o extermínio pela fome. Mas o pesadelo foi mais longe, como refere a historiadora: “Enquanto os camponeses morriam no campo, a polícia secreta soviética lançou em simultâneo um ataque contra as elites intelectuais e políticas ucranianas. À medida que a fome se espalhava, foi desencadeada uma campanha de calúnia e repressão contra intelectuais, professores, curadores de museus, escritores, artistas, padres, teólogos, funcionários públicos e burocratas ucranianos. Qualquer pessoa ligada à efémera República Popular Ucraniana, que existiu durante alguns meses, a partir de junho de 1917, qualquer pessoa que tivesse promovido a língua ou a história ucraniana, qualquer pessoa com uma carreira literária ou artística independente, era suscetível de ser publicamente vilipendiada, presa, enviada para um campo de trabalho ou executada.” Como um rolo compressor encetou-se a sovietização da Ucrânia e a neutralização de qualquer contestação à unidade soviética. Como nos informa a autora, o livro abre em 1917 com a revolução ucraniana e o movimento nacional ucraniano que foi aniquilado em 1932-1933. Termina no presente, com uma discussão sobre a política de memória em curso na Ucrânia. É um livro que reflete um quarto de século de investigação, acesso aos arquivos de Kiev, e cresce o número de estudos, o movimento nacional ucraniano foi reavivado em 1991, ao recusar-se fazer parte de uma federação russa a Ucrânia fez implodir a URSS.

O mínimo que se pode dizer desta investigação é que é um trabalho admirável, escalpeliza a questão ucraniana, as suas aspirações à soberania, desvela a revolução de 1917 e a hostilidade do país aos bolcheviques, mas estes voltaram, a Ucrânia submeteu-se, era vital para Moscovo manter este celeiro disponível para impedir as fomes. A Nova Política Económica de Lenine não dava os resultados desejados. 10 anos após a revolução, o nível de vida na União Soviética era ainda mais baixo do que sob o jugo dos czares. Estaline irá instituir a repressão policial, começou pelos comerciantes de cereais, a expulsão dos kulaks, abriu-se caminho para a coletivização, e montou-se um processo intimidatório para pôr fim a qualquer forma de ucranianização, inventaram-se conspirações, espionagem, sedições em marcha, chegara a hora de requisição dos alimentos. Com a coletivização, estalou a revolução nos campos, inventaram-se novas conspirações, fizeram-se listas negras para castigos, fomentou-se a paranoia do inimigo, em 1930 os camponeses ucranianos revoltaram-se, foram esmagados. E temos o retrato do fracasso da coletivização, os camponeses em fuga, Estaline exige aumentar as exportações de cereais, usa-se mesmo os cereais como arma política: “Em 1920, exigiram, em troca dos cereais, que a Letónia reconhecesse a República Socialista Soviética da Ucrânia. Em 1922, o Governo soviético informou o Secretário dos Negócios Estrangeiros britânico, lorde Curzon, de que, a menos que a Grã-Bretanha assinasse um tratado de paz com a Rússia soviética, podiam cortar o fornecimento de cerais aos mercados britânicos.”

E chegou a hora do cataclismo, os camponeses têm que entregar tudo, o próprio partido comunista ucraniano estava dividido, Estaline vivia obcecado com a perda da Ucrânia, intensificaram-se as requisições, as listas negras, a vigilância das fronteiras. Encontrou-se um bode expiatório, para uso interno da URSS: era o sentimento nacionalista ucraniano, antissoviético, que levava ao fracasso das requisições, havia inimigos por toda a parte, procedeu-se a uma purga dentro do partido comunista ucraniano, desapareceram instituições, foram proibidas as representações teatrais em ucraniano, fuzilou-se a intelectualidade, publicou-se uma lista de autores banidos, os periódicos ucranianos receberam listas de palavras que não deviam ser usadas. Seguem-se buscas e confiscações, morre-se em casa, nas ruas, no trabalho. A descrição da autora é impressionante, logo a explicar-nos o que é a inanição: “Na primeira fase, consome as reservas de glicose do corpo. Instalam-se as sensações de fome extrema, a par de pensamentos constantes sobre comida. Na segunda fase, que pode durar várias semanas, o corpo devora as proteínas, canibalizando tecidos e músculos. À medida que os desequilíbrios extremos começam a provocar retenção de líquidos, a pele acaba por ficar mais fina, os olhos distendidos, as pernas e a barriga inchadas. Os mínimos esforços levam à exaustão. Ao longo do processo, vários tipos de doenças podem acelerar a morte: escorbuto, formas clássicas de desnutrição proteica-calórica, pneumonia, tifo, difteria e um amplo leque de infeções de pele provocadas, direta ou indiretamente, pela escassez de alimentos.” O leitor que se prepare para ouvir testemunhos de sobreviventes, quadros de horror de toda a espécie, até mesmo de canibalismo. Os pais matavam os filhos ou atiravam-nos a um poço.

Sobreviveu-se com dor, comia-se de tudo, desde comida podre a cães, gatos e ratos, fazia-se sopas de urtigas e comia-se pão com amaranto; a população vivia bloqueada, procurou fendas e interstícios como a troca de joias por comida. A fome ucraniana atingiu o auge na primavera de 1933. Estaline dizia publicamente que os agentes do antigo regime iam desaparecer. À cautela, fez-se uma operação de encobrimento. E a autora dá-nos conta como o Holodomor passou a fazer parte da história ucraniana. “Se o estudo da fome ajuda a explicar a Ucrânia contemporânea, mas também explica algumas atitudes da Rússia contemporânea, muitas das quais se enquadram em padrões de comportamento mais antigos.” Todo o discurso do ódio continua a demonizar as pretensões do Kremlin, instrumentaliza-se a linguagem para pôr as pessoas umas contra as outras. Milhões de pessoas foram exterminadas, a nação continua no mapa, os ucranianos de hoje discutem e debatem o seu passado. Os arquivos estão abertos: o extermínio pela fome mostra até que ponto o presente é moldado pelo passado.


                                                                                                              Mário Beja Santos





sexta-feira, 8 de abril de 2022

A Mãe de Brejnev (2ª parte) (publicado em 24/2/2014 - reposição)

 

 
 






Prosseguindo o périplo pela Mão da Pátria (ou Mãe de Brejnev), pedia apenas que vissem o vídeo acima. Dura só 46 segundos e dá uma ideia muito aproximada da estátua de que estamos a falar – e até que ponto, já lá iremos, tudo isto nos pode ajudar a compreender o que nestes meses, dias e horas está a ocorrer na Ucrânia. No momento em que escrevo estas linhas, não se duvide, está a jogar-se ali o futuro da Europa, por muitas e muitas décadas. Quem não quiser ver o vídeo, tem aqui uma galeria de imagens do local onde se situa a Mãe da Pátria, o Complexo Memorial da Grande Guerra Patriótica. Em alternativa, vai infra uma selecção inquestionavelmente excessiva da estátua, concebida no início dos anos setenta por Yevgeny Vuchetich mas só inaugurada em 9 de Maio de 1981, sob a presença tutelar do secretário-geral do PCUS, Leonid Brejnev. Começamos com umas imagens dos planos de edificação, da autoria do arquitecto Vasyl Borodai, para nos fixarmos depois na escultura, que merece ser bem vista. É irreal de gigantesca.
 
 


 
 
 
 



 
 

 
 

O que impressiona e surpreende é que, no desenho, pouco parece ter mudado relativamente à estatuária monumental clássica do realismo soviético, da década de trinta. Em quarenta anos, naquilo que parece ser uma metáfora do regime que serviam, nada evoluiu ou mudou na concepção daquelas figuras tão majestosas e serenas. A estátua de Vuchetich em Berlim, do soldado com uma criança ao colo, foi inaugurada em 1949. Mas, na substância, a traça permanece a mesma nesta Mãe da Pátria, que foi oficialmente aberta ao público em 1981. Existem dois elevadores acessíveis ao público, que levarão os turistas até a uma plataforma situada ao nível de 36 metros. Mas é possível ir mais acima. Do alto, contempla-se Kiev e os seus arredores, a curva do Dniepre. E para quem diz que tudo aquilo, à semelhança de outra obra de Vuchetich, A Mãe-Pátria Chama!, em Volgogrado, pode estar na iminência de ruir, a página oficial do Complexo da Guerra Patriótica é peremptória, garantindo que a estátua é constantemente monitorizada e perfeitamente segura. Curiosamente, o nome de Vuchetich não é citado a propósito da estátua, só se fala de Borodai. Porquê? Resposta aparentemente fácil: porque era ucraniano, nascido em Dnipropetrovsk em 1917, membro da Academia de Artes da Ucrânia, herói da Grande Guerra Patriótica, secretário da Sociedade Artística da Ucrânia, galardoado com o Prémio Lenine. Simplesmente, Vuchetich também era ucraniano (e, por sinal, também de Dnipropetrovsk, à semelhança da recentissimamente reabilitada Yuliya Tymoshenko). A página oficial do Complexo de Guerra Patriótica alude fugazmente ao  nome de Vuchetich quando fala da planificação geral do monumento. Mas a paternidade da estátua é atribuída a Borodai. Vejamos a matriarca a partir dos céus, com fotografias e um vídeo a terminar a excursão:
 




 

 
 
 
 
 
 

Num breve parêntesis sobre a Ucrânia, que está na ordem do dia, devemos recordar que, até há pouco, Kiev possuía um dos MacDonald’s  mais frequentados do mundo: junto à estação de comboios, era o terceiro MacDonald’s mais visitado em todo o planeta, atendendo cerca de dois milhões de pedidos por ano. Para quem gosta destes números, lembre-se também que os ucranianos são dos povos que mais bebem álcool em toda a Terra , ficando apenas atrás dos moldavos, dos russos, dos húngaros e dos checos. Nos processos-crime, a taxa de condenações situa-se também em valores elevados (90%), bastante acima da média europeia, com uns tolerantes 30 a 40%. Quando formalmente se libertou da tutela soviética, existiam na Ucrânia quase 20 milhões de porcos. O número reduziu-se significativamente, e, apesar da fama, um ucraniano consome hoje, em média, 18 quilos de carne de porco por ano, três vezes menos do que um alemão. 
Quanto à estátua Mãe da Pátria, seria de esperar que existissem milhares de recriações e pastiches, mas encontrei pouca coisa, apenas uns postais e as habituais medalhas comemorativas. Existe, todavia, uma escultura que segue de perto a Mãe de Brejnev. Chama-se Sabre de Luz, foi feita em 1992-1994 por Hartmut Skerbisch (1945-2009) e está situada junto ao edifício da Ópera de Graz, na Áustria. É uma obra muito desenxabida, na minha modesta opinião.   
 
 
 



Hartmut Skerbisch, Lichtschwert («Sabre de Luz»)
 


Além de uma performance algo apatetada de um grupo de rapazolas, que fez desaparecer e reaparecer a estátua ao jeito de David Copperfield, em Março de 2011 algumas activistas do Grupo Femen decidiram manifestar-se no seu habitual modo provocatório:


 

 

Parece existir, portanto, alguma indefinição quanto à autoria da estátua. A Wikipedia e outras fontes atribuem-na a Vuchetich. A página oficial do Complexo de Guerra Patriótica pende sem duvidar para o nome de Vasyl Borodai. Aliás, se virmos este vídeo, de onde consta a já insuportável comparação fanfarrona com a Estátua da Liberdade, parece ser essa a versão oficial. Mais ainda: em alguns locais, como aqui, e sobretudo no site de Borodai, reclama-se para este, sem pestanejar, a criação da Mãe da Pátria, chegado-se a exibir o modelo e muitos pormenores da edificação. Ora, isso é natural, uma vez que os trabalhos de construção só se iniciaram após a morte de Vuchetich. Mas, a ser verdade que a estátua foi concebida por Borodai, cai por terra a ideia de que o autor da famosa e esmagadora A Mãe Pátria Chama!, de Volgogrado, é o mesmo de  A Mãe da Pátria, de Kiev. 
 
 





 
 
 
 

Da autoria de Borodai é, indubitavelmente, a estátua aos fundadores de Kiev, que fica nas imediações do Memorial à Grande Guerra Patriótica.

Ladya, assim se chama o monumento. Erguido à glória dos quatro irmãos que, segundo a lenda, fundaram Kiev: Kiy, Sckek e Koriv, juntamente com a sua irmã Lybid. O mito fundador da capital da Ucrânia pode ser lido em vários lugares, como este.
 

 
Vasyl Borodai, Ladya



Os ucranianos têm tal afecto por esta lenda que, em Kiev, possuem duas estátuas que a evocam. A mais recente, na Praça da Independência, situa-se no preciso local onde tanta gente foi morta nos últimos dias.



A estátua dos Fundadores de Kiev, na Praça da Independência,
nos confrontos dos últimos dias

 
Outra, a original, nas imediações da Mãe-Pátria, foi concebida por Vasyl  Borodai, com arquitectura de Nikolay Feshenko. A estátua foi feita algo às pressas, a tempo de ser o ponto alto das comemorações dos 1.500 anos de Kiev, em 1982. De início, pensou-se em algo muito grandioso, talvez mesmo em colocar os founding brothers no cimo de um pedestal de 100 metros de altura. Na altura da verdade, foi-se para um orçamento mais modesto e razoável – e, ainda assim, a estátua foi inaugurada com numerosas imperfeições, com destaque para as figuras serem em cobre e não em bronze, como desejava Borodai. Há uma história comovente em torno desta escultura: a figura feminina, Lybid, foi inspirada na filha do escultor, Galina, também ela artista – pintora –, falecida prematuramente. Borodai homenageou a sua filha figurando-a como Lybid. Numa noite de Fevereiro de 2010, justamente por serem em cobre e terem ganho verdete, as figuras não resistiram ao frio gelado. Apenas uma das estátuas permaneceu intacta: a de Lybid.

 
Vasyl Borodai (1917-2010)
 
Vasyl e Lybid (ou Galina)


A inauguração, em 1982

 
 
Iniciaram-se de imediato os trabalhos de reparação, mas Vasily, na altura com 94 anos, não resistiu. Morreria 55 dias depois do desastre, devastado pela culpa, sem ter podido ver a reinauguração da sua obra, ocorrida em Maio desse ano.
 

A reparação da estátua, 2010
 
Quanto à disputa da paternidade da Mãe Pátria, é questão secundária. Dizem alguns, e talvez com razão, que Borodai concretizou aquilo que tinha sido idealizado pelo génio de Vuchetich. Assim, é possível chegar a acordo, alcançar a paz. Para mais, a aconselhar a harmonia, lembre-se que o local onde fica a tão amada Ladya, de gosto algo duvidoso, é um dos cenários por excelência das fotos casamenteiras dos habitantes de Kiev.
 
 
Borodai é ainda o autor de uma das muitas estátuas do poeta e artista Taras Shevtchenko, o autor da antologia poética Zobzar, o bardo nacional. Considerado o fundador da moderna literatura ucraniana, foi mais do que isso: foi ele que teve o sonho da Ucrânia que hoje, a esta hora, luta pela liberdade. Shevtchenko foi escravo, ou servo, quando criança. Em vida, foi poeta e pintor, figura maior do nacionalismo ucraniano. Quando morreu, foi sepultado em São Petersburgo, mas, por seu expresso desejo, os restos mortais seriam trasladados para os arredores de Kaniv, na sua Ucrânia natal. Não por acaso, as comunidades ucranianas espalhadas pelo mundo continuam a erguer-lhe estátuas por toda a parte. A de Nova Iorque, por sinal das mais esquálidas, é da autoria de Borodai.
É difícil dizer se a maior obra de Borodai é a severa Mãe da Pátria ou a delicada Ladya. Em tamanho, a primeira ganha, sem dúvida. No afecto do povo, vence a segunda. Uma evoca a destruição da guerra, outra o acto de criar uma cidade. Os noivos de Kiev preferem Ladya. E, ao contrário do que parece suceder com A Mãe da Pátria, existem reproduções por todo o lado:
 
 

 
Ladya não é, no entanto, a estátua de Kiev que melhor exprime o triunfo do amor sobre tudo o resto. Termino com história pequenina, falando de uma estátua de Kiev de que poucos falam. Nada tem de belicista; e, na sua simplicidade, é superior a todas as mitologias e ideologias. Esmaga por completo a esmagadora Mãe de Brejenev e tudo quanto lhe está associado, ontem como hoje: a cólera e a guerra, a avidez da terra, aquilo de que é feita a História.   
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Há mais de setenta anos, num campo de concentração, Luigi Pedutto conheceu Mokryna Yurzuk. Ele era italiano, prisioneiro de guerra. Ela era ucraniana, e tinha sido condenada a uma pena de trabalhos forçados, esta ali detida com uma filha pequena, nascida no campo nazi perto da aleia de Sankt Pölten, na  Áustria. Ela trazia-lhe comida, ele costurava sapatos e vestidos para a impressionar. Tinham ambos vinte anos. Apaixonaram-se, como acontece aos melhores mamíferos. Nos tempos de repouso, caminhavam juntos, de mãos dadas, no mais puro dos silêncios: nenhum entendia o que o outro dizia. Quando o campo foi libertado, em 1945, Mokryna foi levada de volta para a Ucrânia. Luigi quis ir atrás dela, mas impediram-no (aqui, aqui, aqui, aqui).
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Passaram anos, passaram décadas, casaram ambos, enviuvaram, legando ao futuro diversos  filhos e netos. Luigi ligou-se à finança, Mokryna trabalhou numa exploração agrícola colectiva na Ucrânia. Dois países, dois destinos: um no capital, outro no colectivismo. Graças a um programa de televisão, reuniram-se em Moscovo, em 2004. Abraçaram-se ao fim de décadas, como talvez nunca o tivessem feito.  
 
 
Luigi e Mokryna, o reencontro em 2004

Kiev, Maio de 2013
 

 
 No ano passado, em Maio, foi erigida uma estátua em Kiev em sua homenagem. Num local romântico, numa ponte do Parque Khreschatyi, onde os pares de namorados fazem entre si juras de amor eterno. Muitas vezes, incumpridas. Neste caso, a jura durou sete décadas. Ela encontrava-se demasiado debilitada para poder viajar, mas os seus familiares disseram que estava feliz por o seu amor servir de exemplo a outros casais. A neta afirmou que a avó lhe contara, vezes sem conta, aquele amor de guerra, mas jamais imaginaria que voltaria a reencontrar o rapaz italiano, que é um hoje um homem feito.
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Com 90 anos, vestido em uniforme de gala do exército italiano, Luigi Pedutto falou na cerimónia, comoveu-se. Lágrimas de quem esperou. «Quando tinha nove anos», afirmou, «o meu professor disse-me uma vez: lembra-te que, por tudo o que de mau passares na vida, serás recompensado». «Sinto que fui recompensado por tudo aquilo que passei».
 
Luigi Pedutto, Kiev, Maio de 2013
 
 
Durante 62 anos, Luigi esperou por ela, guardando uma pequena fotografia e uma medalha com uma mecha do seu cabelo. Um dia, decidiu escrever uma carta para um programa de televisão na Rússia, na esperança de a localizar. Vivia numa pequena aldeia na região de Dnipropetrovsk. Exactamente: a terra natal de Timoshenko e dos dois escultores que ergueram A Mãe da Pátria. Depois de se reencontrarem, pediu-a em casamento. «Quando a pedi em casamento, ela riu-se», diz Pedutto. Mas a senhora já visitou a sua terra natal, Castel San Lorenzo, em Salerno, de que foi feita cidadã honorária. Luigi viaja por vezes até à Ucrânia, levando-lhe azeite e queijo parmesão para preparar spaghetti. Falam num estranho dialecto, que mistura ucraniano, italiano e russo. Pensam um dia visitar juntos a estátua que, em Kiev, imortalizou o seu amor de décadas.   
 
 
 
 Há um movimento na América de que só se aproveita o nome: True Love Waits.  Luigi Pedutto ainda não perdeu a esperança de que, um dia destes, Mokryna Yurzuk aceite casar com ele.
 
 
António Araújo