Nunca entendi como um documento histórico e documental
como o que André Gide escreveu por ocasião da sua viagem à URSS, em 1936,
jamais tenha conhecido tradução portuguesa. Posso perceber que o Estado Novo
não consentiria que um dos maiores vultos da literatura contemporânea,
alicerçado em ideologia anticapitalista, que tenha feito o elogio fúnebre de
Máximo Gorki, em plena Praça Vermelha, perto de Estaline e outros consagrados
da época, viesse dizer abertamente que guardava a esperança a despeito das monstruosidades
que observara, algumas bem próxima das que podiam ser praticadas pelo regime de
Adolfo Hitler. Teria sido o maior embaraço para a nossa despótica censura. Mas
que em democracia tenha preciso chegarmos em 2023 para conhecer este primor da
escrita e a tremenda denúncia deste espírito independente é para mim
incompreensível. É urgente conhecer e guardar nas estantes Regresso da URSS,
por André Gide, Publicações D. Quixote, 2023.
Antes de mais, o primor literário, temos aqui observações
esplendentes do consagrado Prémio Nobel da Literatura de 1947. Oiçam só:
“Garanto que há qualquer coisa de trágico na minha aventura soviética. Enquanto
entusiasta convicto, fui para admirar um novo mundo, e ofereceram-me, para
seduzir, todas as prerrogativas que eu detestava no antigo.” Dirá no prefácio
que houvera da sua parte admiração e amor pela URSS. “Ali, ocorria uma
experiência sem precedentes que nos enchia os corações de esperança, e da qual
esperávamos um progresso imenso, um impulso capaz de arrastar toda a humanidade.
Nos nossos corações e nos nossos espíritos, ligávamos decididamente o destino
glorioso da URSS ao futuro da própria cultura.” Visitou, percorreu largos
troços do país, assediado pela classe política e pelo aparelho do partido
comunista, preferiu ir conversar com gente política, o que permitiu ditar a
seguinte observação: “Ali existe o bom e o mau; direi mesmo: o excelente e o
pior. O excelente foi obtido muitas vezes à custa de um enorme esforço. O
esforço nem sempre obteve, em toda a parte, aquilo que pretendia obter. Pode
por vezes pensar-se: ainda não. Por vezes, o pior acompanha em dobro o melhor.
E passa-se do mais luminoso ao mais sombrio com uma brusquidão desconcertante.
Acontece com frequência que o viajante, de acordo com convicções pré-estabelecidas,
seja apenas sensível a um ou ao outro. Demasiadas vezes, os amigos da URSS
recusam-se a fazer o mal, ou pelo menos a reconhecê-lo; de modo que, demasiadas
vezes, a verdade sobre a URSS é dita com ódio, e a mentira com amor.”
Não esconde a alegria profunda que usufruiu no contacto
direto, em acampamentos infantis ou estaleiros, por exemplo, afirma mesmo que
em nenhum outro lugar contacto com quem quer que seja se estabelece de forma
tão fácil. Observou as numerosas filas em que centenas de pessoas esperam
pacientemente; constata a indolência de muitos, uma massificação sem gosto,
móveis feios; e não esconde o seu completo desapontamento com a falta de
liberdade de opinião, a fábrica de manipulação montada pelo comunismo: “Na
URSS, é aceite à partida e uma vez por todas que, sobre qualquer questão, não
pode haver mais do que uma opinião. Além disso, as pessoas têm uma mente tão
condicionada que esse conformismo se torna fácil, natural, insensível, ao ponto
de não parecer que haja qualquer hipocrisia nisso.” E refletindo sobre tantos
padrões de falta de qualidade dirá que a felicidade dos operários russos é
feita de esperança, confiança e ignorância. Mais adiante, dirá mesmo que o
cidadão soviético vive numa extraordinária ignorância do estrangeiro.
“Convenceram-no de que tudo no estrangeiro, em todos os domínios, corre muito
pior do que na URSS. Esta ilusão é habilmente mantida, pois é importante que
todos, por menos satisfeitos que estejam, se congratulem com o regime que os
preservem dos piores males.”
Deu-lhe para perceber que estava à assistir à
reconstituição de camadas da sociedade ou mesmo de classes, via-se à vista
desarmada o aburguesamento, o espírito pequeno-burguês. E procurou observar as
diferentes tiradas ou palavras de ordem, o uso inflacionado de
contrarrevolucionário. “O menor protesto, a menor crítica está sujeita às
piores penas.” E empregará uma frase que lhe merecerá pesadas críticas quando o
livro foi publicado: “Duvido que em qualquer outro país, mesmo na Alemanha de
Hitler, o espírito seja menos livre, mais limitado, mais receoso
(aterrorizado), mais submissivo.”
Todo este discurso de André Gide irá pôr os comunistas
franceses em rebuliço, como é que aquele gigante literário, convidado pelo deus
Estaline a discursar sobre Máximo Gorki se atreveu a escrever: “A efígie de
Estaline está em toda a parte, o seu nome em todas as bocas, e os louvores que
lhe são feitos surgem também sem falta a todos os discursos. A duração, amor ou
medo, não sei; sempre e em toda a parte ele está presente.” A receção do seu
escrito foi alvo de um vendaval. Gide atrevera-se a fazer reparos, ao nível de
um qualquer “contrarrevolucionário”: fizera críticas demolidoras à guerra
antirreligiosa, ao condicionalismo férreo das mentalidades, a maus-tratos a trabalhadores
agrícolas. Gide não perdeu tempo, respondeu aos insultos, apreciou algumas
críticas de boa-fé, e para surpresa do leitor verificará que o genial escritor
de Os Moedeiros Falsos estava altamente documentado, como se não tivesse
viajado à procura de ver a esperança, e reponta com os moralistas que o
criticam: “Uma análise superficial, um julgamento apressado, foi dito do meu
livro. Como se não fosse precisamente a primeira impressão, na URSS, o que nos
encantou! Como se não fosse ao olhar mais profundamente que encontrámos o pior.
É no fundo do fruto que o bicho se esconde. Mas quando digo que esta maçã tem
bicho, acusam-na de não ver claramente ou não gostar de maçãs. Se me tivesse
contentado em admirar, não me teriam feita essa censura; e nesse caso, seria
merecida.”
E rebate as acusações que lhe fazem, ponto por ponto,
deita por terra as infantilidades dogmáticas, lembra que esse colosso do cinema
que era Serguei Eisenstein foi obrigado a uma autocrítica idiota, teve que
parar um novo filme por não estar de acordo com as exigências da doutrina;
desmonta a propaganda de que estava a pôr termo ao analfabetismo, de que o
operariado era altamente participante, todo um embuste, os sovietes já não
funcionavam, e volta-se para os comunistas franceses para os acusar de não
terem mentido aos operários.
Não se deve ler a primeira narrativa de Gide sem se ler a
sua resposta aos críticos, a altíssima qualidade da sua escrinha não desfalece,
desmonta as mentirolas sem humilhar os fanáticos.
Trata-se de um relato magistral na denuncia da
monstruosidade do estalinismo. Gide foi à URSS atraído pelas questões sociais e
não esconde a desilusão de ver a esperança tão maltratada.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos