“Em nome dos acusadores particulares, convoco para prestar declarações Adolf Hitler, funcionário de partido, residente na rua Briener, nº 45, em Munique.” (despacho do juiz Ohnesorge do Tribunal de Moabit, em Berlim)
. Adolf Hitler, intervindo como testemunha |
Hans Litten |
“Neste momento estou de cama com gripe, a qual deve ser curada sem falta em 24 horas, pois amanhã vou ter o prazer de interrogar pessoalmente o Senhor Hitler.” (7 de maio de 1931, carta de Hans Litten para os pais)
O advogado Hans Litten, então com 28 anos, defendia um conjunto de operários que tinham sido agredidos por membros das S.A. (Sturm Abteilung), a organização paramilitar do Partido Nacional Socialista, que se distinguiu nas batalhas de rua com forças comunistas. Oficialmente, no entanto, depois do fracasso de uma tentativa de golpe de Estado em 1924, Adolf Hitler proclamara a via legal como único caminho a seguir pelo NSDAP para conquistar o poder. Ansiava pela imagem de um partido da ordem, dominador da ameaça comunista nas ruas e que, simultaneamente, prometia uma Alemanha forte, que ressurgiria no confronto com as potências que lhe impuseram o diktat de Versalhes.
Muitos viram com agrado a opção legal dos nazis, convictos de que se tornariam num partido nacionalista igual aos outros e, por isso, ou seriam domesticados ou desapareceriam. Hans Litten, no entanto, compreendeu que, na situação da Alemanha, a estratégia de Adolf Hitler poderia permitir a ascensão dos nazis ao poder.
Filho de um grande jurista alemão, reitor da Universidade de Königsberg, Litten escolheu o curso de direito por forte influência do pai, que continuaria uma dinastia de juristas Litten – família de origem judaica – garantindo a sua integração na sociedade alemã. Contudo, Hans Litten, que desde cedo demonstrou ser um indivíduo brilhante, abraçou o Direito, não para ascender socialmente, mas para servir causas. Mesmo com graves problemas financeiros, uma vez que o pai, que detestava a República de Weimar, deixou de o apoiar financeiramente quando compreendeu as intenções do filho, dedicou-se quase exclusivamente à defesa de operários vítimas das S.A. – ele próprio afirmava que a sua especialidade eram “os assassínios nazis”.
Hitler e Goering, com SA |
O intuito de Hans Litten era sobretudo político: demonstrar à classe média alemã, aos grandes empresários, aos partidos conservadores, às instituições religiosas, que o partido de Adolf Hitler mantinha uma pulsão violenta através da qual pretendia impor a sua vontade, sobretudo a partir do momento em que tomasse o poder. Por isso, a oportunidade de interrogar o próprio Adolf Hitler serviria para demonstrar que o lobo vestira a pele de cordeiro mas continuava a ser um lobo. Durante três horas revelou as contradições de Hitler, procurando tornar claro que a campanha violenta e sistemática dos nazis continuava, protagonizada pelas mílicias armadas das S.A..
Interrogatório:
Juiz Ohnesorge: “– A queixa pretende que o Sturm 33 foi organizado com o objectivo de praticar homicídios planeados e premeditados e que este plano era conhecido da liderança do partido e aprovada por ela. Conhece o Sturm 33? Conhece os seus líderes?”
Adolf Hitler: “– Não, é absolutamente impossível que qualquer Sturm em Berlim possa crer que lhe foi atribuída essa missão, que seria contrária aos princípios básicos do partido. O partido rejeita totalmente métodos violentos.
Advogado Litten: “– Afirma que o Partido Nacional Socialista não pratica ações violentas. Mas é ou não verdade que Goebbels lançou o slogan “o inimigo deve se espancado até ficar desfeito”.
Adolf Hitler: “– Isso não é para ser tomado à letra. Quer dizer que devemos derrotar e destruir as organizações inimigas, mas não que devemos atacar e matar os nossos inimigos.”
Advogado Litten: “– Quando nomeou Goebbels director de propaganda do partido, tinha conhecimento da passagem do seu livro na qual defendia a revolução, a queda do parlamento e do governo?”
Adolf Hitler: “– O partido não pode ser avaliado pelas declarações de qualquer membro mas apenas pelo seu programa. Nós devemos ser avaliados pelo princípio de que nos mantemos na legalidade, devido à convicção de que não existe outro caminho.”
Advogado Litten: “– Foi o Senhor Goebbels proibido de divulgar o seu livro?”
Adolf Hitler: “– Não sei.”
Juiz Ohnesorge: “–Prometeu ao Chanceler Brünning que dissolveria as S.A. em troca de participar no seu Governo?”
Adolf Hitler (extremamente nervoso): “– Insisto em que Brünning não me ofereceu qualquer lugar no seu Governo. Dissolver as S.A. significaria dissolver o partido. Os homens das S.A. são os primeiros homens do partido. Pedir-me para dissolver as S.A. para participar no governo seria como pedir-me para cometer suicídio ...
Advogado Litten: “– Senhora testemunha, é verdade que por ocasião da assim chamada revolta das S.A. no ano passado estava acompanhada de homens das S.S. armados na sua volta pelos restaurantes de Berlim?”
Adolf Hitler (de novo, furioso): “– Isso é completamente lunático. Em todas as cervejarias fui recebido com grande entusiasmo.”
O relato feito pela imprensa do interrogatório de Adolf Hitler termina aqui com a menção de que o Juiz o deu por terminado, de algum modo impedindo que o Führer do NSDAP se comprometesse ainda mais. A generalidade dos jornais deu conta da revelação da verdadeira natureza do partido e das suas forças paramilitares. Nada disso, contudo, alterou o curso da história. Bem a propósito, o nome do juiz era premonitório: ohnesorge significa ficar descansado. Os alemães pareciam estar descansados enquanto assistiam à ascensão de Adolf Hitler.
Mas Hitler não ficou descansado. Segundo vários relatos, não permitia que à frente dele fosse sequer mencionado o nome de Litten. Este, apesar de avisos vários, ficou na Alemanha do Chanceler Hitler.
Hans Litten nunca fora homem de compromissos ou de soluções fáceis. Profundamente religioso, para ele a religião era acima de tudo “responsabilidade perante Deus”. Defendia que o homem crente deve ter sempre a coragem de aceitar a culpa e a responsabilidade. Coerentemente, os seus valores exigiam dele “a totalidade da sua pessoa” o que supunha a possibilidade do sacrifício. Sem hesitações, cumpria o dever de agir sem consideração pelas consequências.
´
.
.
Na própria noite do incêndio do Reichstag, em Fevereiro de 1933, o homem cujo nome Hitler nunca esqueceu foi detido e enviado para a prisão de Spandau. Passou o resto da sua curta vida em vários campos de concentração, sem alguma vez ter sido sujeito a julgamento. Foi torturado inúmeras vezes. Apesar disso, os seus colegas de cativeiro que sobreviveram recordavam um homem profundamente culto, dotado de enorme coragem física e grande força interior. Em certa ocasião, numa sessão cultural permitida pela administração do campo e na qual estavam presentes alguns S.S., recitou a letra de uma velha canção: “Die Gedanken sind frei”
Die Gedanken sind frei, wer kann sie erraten,
sie fliegen vorbei wie nächtliche Schatten.
Kein Mensch kann sie wissen, kein Jäger erschießen
mit Pulver und Blei: Die Gedanken sind frei!
Und sperrt man mich ein im finsteren Kerker,
das alles sind rein vergebliche Werke.
Denn meine Gedanken zerreißen die Schranken
und Mauern entzwei: Die Gedanken sind frei!
(Os pensamentos são livres, quem os pode adivinhar?
Eles voam como sombras nocturnas
Nenhum homem os pode conhecer, nenhum caçador os pode atingir
Com pólvora e com chumbo. Os pensamentos são livres!
E se eu for atirado para a mais sombria masmorra
Será tudo em vão
Porque os meus pensamentos rasgam todas as portas
E todas as paredes. Os pensamentos são livres!)
Os S.S. não entenderam a provocação.
Hans Litten faleceu em 5 de Fevereiro de 1938, em Dachau, com 34 anos. Convencido de que não sairia do campo com vida, temeroso de revelar algo sob tortura, suicidou-se antes de mais um interrogatório.
Dachau |
Hans Litten, causídico de esquerda, nunca pertenceu a nenhuma organização partidária, tendo mesmo afirmado que “duas pessoas já seriam demais no meu partido”. Depois da guerra, o seu nome permaneceu pouco conhecido. Para uns, tinha sido o advogado dos operários comunistas que ameaçavam a ordem. Para outros, era um anti-estalinista – afirmara ao seu colega de escritório: “sou totalmente contrário a qualquer organização centralizada” –, que devia cair no olvido.
Importa, a propósito, recordar o destino de outro jurista ameaçado pelos nazis e que deixou a Alemanha antes de ser preso. O Professor Felix Halle era membro do Partido Comunista Alemão (KPD). Refugiou-se na União Soviética onde desempenhou várias funções jurídicas de destaque. Até ao momento em que foi considerado um trotskista contra-revolucionário e convenientemente eliminado numa purga estalinista. Foi executado no final de 1937, morrendo, portanto, antes do próprio Hans Litten. Seria reabilitado na RDA em 1956. Um pouco tarde demais…
O nome de Hans Litten também foi recuperado nos últimos anos. Depois da reunificação, os advogados de Berlim escolheram o nome de Associação Hans Litten. De dois em dois anos é atribuído o prémio Hans Litten pela “German and European Democratic Lawyers Association”. A Bundesrechtsanwaltskammer e a Rechtsanwaltskammer Berlin têm as suas sedes na Hans Litten Haus, que fica situada na Littenstrasse.
Em 2008, foi publicada a biografia de Hans Litten, intitulada Crossing Hitler, de Benjamin Carter Hett. Por último, no ano passado a BBC emitiu uma série intitulada The Man Who Crossed Hitler, que descreve os acontecimentos de 1931. Com um pouco de sorte, poderemos vê-la na nossa televisão. Lá pelas duas horas da manhã de qualquer dia de semana.
.
.
José Luís Moura Jacinto
The Man Who Crossed Hitler, BBC, 2011 |