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segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Κωνσταντίνος e a tentação da política.

 




Por estes dias, reuniram-se em Atenas sete chefes de Estado para despedir um cidadão privado.

A sua morte, aos 82 anos, no seu país natal, mas com passaporte estrangeiro, motivou um comunicado seco do governo conservador de Atenas, que ficou a milímetros de saudar a morte de Konstantínos, com uma frieza que muito provavelmente custará votos a Kyriakos Mitsotakis nas próximas eleições.

Antigo campeão olímpico, o último rei simultaneamente filho de rei e genro de rei – e também o último da sua dinastia em resultado dos erros que cometeu – chegou à sepultura como um cidadão privado e estrangeiro. A decisão de recusar a Constantino II um funeral de Estado, decidida em reunião do Conselho de Ministros, levantou tal polémica que Mitsotakis teve de emendar a mão e permitir honras adicionais ao cidadão privado.

Na manhã do funeral e durante várias horas, milhares de cidadãos passaram pela pequena capela ao lado da Catedral Ortodoxa de Atenas, beijando devota e quase clandestinamente a sua urna, envolta nas cores, mas não na bandeira grega. Nem na morte Constantino II conseguiu que o seu país ultrapassasse as feridas de um reinado curto, mas traumático para os gregos e para o rei.

Nascido em plena Segunda Guerra Mundial, filho dos Príncipes Herdeiros Paulo e Frederica, Constantino viveu os seus primeiros anos num exílio depauperado, entre a Pretória e o Cairo, com a mãe e as irmãs Sofia, futura Rainha de Espanha, e Irene. O fim da Guerra encontrou uma Grécia cada vez mais republicana e comunista, que resistia ao regresso da Família Real. A manutenção da Monarquia foi validada em referendo em 1946, o que permitiu o regresso do impopular Rei Jorge II e do seu irmão, o Príncipe Herdeiro. Jorge II morreria, sem filhos, no ano seguinte; Paulo sucedeu-lhe como Rei dos Helenos e Constantino tornou-se herdeiro do trono, diádokhos, aos 6 anos.

A Grécia era uma peça importante no xadrez internacional e a guerra civil que se seguiu e terminou em 1949 foi um dos primeiros episódios da Guerra Fria, com insurgentes comunistas apoiados pela União Soviética e o governo apoiado pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos. A vitória militar das forças governamentais deixou latentes tensões que iriam perdurar por muitos anos e explicam em parte a instabilidade que sempre marcou o país, com evidências recentes no consulado de Tsipras-Varoufakis.

Paralelamente a estas tensões, Paulo e Frederica criaram uma corte faustosa, onde se sucediam bailes, cruzeiros e muito raffinement. A Rainha da Grécia encontrava sempre uma nova ocasião para celebrar e fazia-o com esplendor que trazia para o Mediterrâneo pompas dignas das cortes no Norte, de onde, aliás, eram originários os reis gregos. O custo desta pompa haveria de começar a ser visto como incomportável para um país onde tanta gente passava dificuldades, ao que Frederica de Hannover sem hesitação poderia ter respondido com a célebre frase atribuída a D. Maria Pia de Sabóia, Rainha de Portugal: “quem quer rainhas, paga-as”. A factura foi pesada para ambas.





A vida pública da Família Real era acompanhada de constante apoio político dos Estados Unidos da América. Frederica era uma fervorosa anti-comunista e, como tal, encontrava sempre abertas as portas da Casa Branca. Os comunistas gregos pagavam na mesma moeda e chamavam-lhe prussiana e nazi. Se dessa acusação a Rainha se poderia livrar, já da sua tentação de interferir na política grega será mais difícil defendê-la.

Em 2003 a revista “Socialist Worker”, tentando angariar manifestantes para a possível visita de George W. Bush a Londres, publicava um artigo (“How we wrecked tyrants’ visits in the past”) em que recordava com orgulho os protestos que marcaram a visita de Estado de Paulo e Frederica a Londres, 40 anos antes. Foi, de facto, uma visita de raro tumulto em Inglaterra, com o peso que tal acarretava para a Rainha Isabel II, visto ter o seu marido nascido Príncipe da Grécia e ter uma relação próxima com os tios, que se iria estender às gerações seguintes. Os manifestantes reclamavam a libertação de prisioneiros comunistas e insultavam especialmente Frederica, impassível no seu desfile das melhores jóias, com os vitupérios habituais.

Três anos antes, em 1960, o herdeiro do trono, Constantino, conquistara a primeira medalha olímpica de ouro para a Grécia em quase 50 anos. Este feito colocava-o numa posição de quase herói nacional, visto que o seu mérito desportivo era merecedor de especial reconhecimento e de orgulho dos seus compatriotas. Mais dado ao desporto do que aos estudos, Constantino daria mais uma alegria à mãe ao abandonar os romances menos ortodoxos e anunciar o noivado com a filha mais nova do Rei da Dinamarca, Ana Maria.

O golpe mais duro para Frederica chegou com o diagnóstico de um cancro ao Rei Paulo. Importaram-se médicos e especialistas para Atenas mas ao fim de uns meses, a 6 de Março de 1964, o Rei morria com apenas 62 anos, deixando viúva uma rainha que adorava sê-lo.

Constantino tornou-se Rei dos Helenos aos 23 anos, jurando diante do governo socialista de Georgios Papandreou “em nome da Santíssima Trindade consubstancial e indivisível, proteger a religião dominante dos Helenos, de respeitar a Constituição e as leis da nação helena”.


Premonitoriamente, a capa da Paris Match que noticiava a morte de Paulo mostrava Constantino II fazendo continência com o bastão de marechal. A um canto da capa, mas em primeiro plano, estava Frederica. A influência da Rainha-Mãe, mas sobretudo o seu exemplo, foram porventura o que de pior podia ter acontecido a um rei impreparado e ingénuo, num reino que não era para novos.

Seis meses depois da subida ao trono, o casamento de Constantino II da Grécia e Ana Maria da Dinamarca tornou Atenas no foco da atenção mediática do mundo. Foi a última grande união dinástica entre duas casas reais reinantes, o princípio do fim de um mundo em que o amor podia coincidir com o dever, mas em que este se sobrepunha. Durante dias sucederam-se bailes, cortejos, paradas militares, o cintilar ofuscante de diamantes e o desfile de condecorações de cores garridas, de reis, rainhas, príncipes e princesas rodeados de genuíno entusiasmo popular, como não mais se veria.

O grande casamento de Atenas foi a glória final da Rainha Frederica, a última matchmaker da Europa do século XX. O fim da cerimónia, onde os cânticos e o incenso faziam recordar o fausto oriental de Constantinopla, viu chegar um momento teatral, quase patético, em que Frederica fez uma vénia à nora, a nova Rainha, que lhe devolveu a vénia. Era uma metáfora do que estava para vir. Se apenas Frederica se tivesse retirado, como a vénia implicava, em vez de interferir…







Os três anos que se seguiram foram um turbilhão político. E a tentação da interferência na política, talvez a mais perigosa tentação para os reis constitucionais, foi a perdição de Constantino. Recusou nomeações de ministros e forçou a demissão Georgios Papandreou, o socialista que ancorava a estabilidade. Sucederam-se meses de manifestações contra o rei, com Constantino a nomear governos que sucessivamente caíam no Parlamento por falta de apoio. Ora, na Grécia a única dinastia que foi acabou destituída foi mesmo a da Família Real, sucedendo-se no cargo de primeiro-ministro filhos, netos e sobrinhos de antigos primeiros-ministros: Constantino haveria de se cruzar com os Papandreou várias vezes ao longo do resto sua vida.

Para resolver a crise, Constantino marcou eleições para o fim de Maio de 1967. Não se chegaram a realizar. Um golpe de Estado, a 21 de Abril, orquestrado pelo exército com o argumento de que estavam a prevenir o regresso do comunismo, seria o golpe de misericórdia ao reinado de Constantino. A incapacidade do Rei para rejeitar de imediato o golpe e se distanciar foram vistas como conivência, assim como a fotografia em que o Rei surge à frente dos coronéis da Junta Militar na escadaria do Palácio Real. O habitualmente sorridente Constantino II acreditou ingenuamente que a sua expressão facial na fotografia, fechada e dura, seria sinal suficiente do seu desagrado e da rejeição do governo dos militares. A percepção generalizada foi a contrária.

Este episódio haveria de inspirar o cunhado de Constantino, Juan Carlos I de Espanha, a lidar com a tentativa de golpe de 23 de Fevereiro de 1981. A condenação internacional perante o golpe de Estado caiu também sobre o Rei, de todos os quadrantes, incluindo a sua família dinamarquesa que deixou claro que não seria bem-vindo em Copenhaga enquanto a situação perdurasse. Constantino tentou, sem sucesso, que os Estados Unidos interviessem em seu favor e acabou por ensaiar um contragolpe em Dezembro, que falhou. Constantino, Ana Maria e os seus dois filhos, incluindo o recém-nascido herdeiro, partiram para Roma.

A Grécia é o país que mais vezes referendou a forma de Estado no século XX, tornando-se numa monarquia sucessivamente validada pelo povo. Constantino II alimentou por isso e durante muitos anos a ideia de que o seu exílio não era definitivo, como não havia sido para o seu avô Constantino I, e para o seu tio, Jorge II, que tinham recuperado o trono depois de o perderem. Formalmente, aliás, Constantino manteve-se como rei até 1973, quando o seu alegado envolvimento numa nova tentativa de golpe contra a Junta Militar levou a que fosse proclamada a república e feito um plebiscito para a legitimar.

Quando a democracia foi restaurada, em 1974, o inesperado aconteceu novamente. O líder da direita tradicionalmente monárquica e antigo primeiro-ministro, Konstantinos Karamanlis, marcou um novo referendo, mas não só não fez campanha pela monarquia, como se recusou a autorizar que o Rei regressasse para fazer campanha, permitindo-lhe apenas uma mensagem ao país, a partir de Londres. Constantino admitiu os seus erros, fez a profissão de fé na democracia e prometeu que a mãe não se intrometeria na política – os cartazes da propaganda republicana tinham apenas a fotografia de Frederica e anunciavam: “Vem aí!”. A república teve uma vitória retumbante com quase 70% dos votos.



Constantino viveu as suas décadas de exílio expectante, cada vez menos convencido de que regressaria do exílio para uma pátria que o receberia como o herói olímpico a quem os pecados seriam perdoados. Permitiram-lhe regressar por um par de horas, em 1981, para enterrar a mãe, a Rainha Frederica, no cemitério de Tatoi. O complexo de Tatoi seria, aliás, o pretexto da grande batalha de Constantino contra o Estado grego.

Em 1992, o Primeiro-Ministro Konstantinos Mitsotakis, sobrinho-neto, primo e pai de primeiros-ministros, chegou a acordo com Constantino para lhe devolver a propriedade de Tatoi, que o antigo rei considerava privadas, a troco das terras no resto da Grécia. Constantino regressou a Atenas no ano seguinte, mas a pressão política sobre o governo de Mitsotakis foi tal que lhe pediram para voltar a sair. No ano seguinte, as eleições ditaram o regresso ao poder de Andreas Papandreou, antigo primeiro-ministro, filho e pai de primeiros-ministros e um velho conhecido de Constantino – fora afinal à volta do alegado envolvimento de Andreas Papandreou em conluios durante o governo do pai que começara a crise em 1965. Papandreou fez aprovar legislação a reverter o acordo com Mitsotakis e a retirar a nacionalidade grega a Constantino. O Rei não se conformou. Pôs uma acção no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que viria a ganhar em forma de indemnização, mas sem recuperar Tatoi.

Só muito mais tarde e muito discretamente pôde Constantino regressar para viver os seus últimos dias, tranquilos, na terra que o rejeitou por ampla maioria. Ironicamente e novamente em vésperas de eleições, foi a um novo Mitsotakis, Kyriakos, filho e sobrinho-bisneto de primeiros-ministros, que coube tomar as decisões sobre o funeral do antigo monarca, arriscando desta vez ir em sentido contrário das decisões do pai e mantendo-se longe dos monárquicos e do funeral.

A gentileza e bonomia de Constantino II fizeram com que à sua volta se continuassem sempre a reunir os reis europeus, que o tratavam como um dos seus. Em Atenas, embalado pela polifonia ortodoxa, incensado pelo Arcebispo de Atenas, Constantino foi rodeado por esses reis por uma última vez. Ao lado das mais importantes condecorações gregas, dinamarquesas e espanholas, estava a sua maior glória, a medalha de ouro olímpica. Georges Menant, que assinava a peça de Atenas para o Paris Match quando Constantino subiu ao trono, terminava o texto dirigido ao novo rei com “Régnez en paix, Sire. Les dieux feront le reste.” Os deuses gregos não foram generosos para Constantino.


Ademar Vala Marques

Janeiro 2023







quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O Retrato de D. Manuel II com os trajes da Ordem da Jarreteira.

 




No Turf Club em Lisboa, na sala de entrada que abre sobre o jardim, encontra-se um retrato a óleo de El Rei D. Manuel II, de corpo inteiro, envergando o manto e insígnias da Ordem de Jarreteira, tendo ao pescoço a insígnia das Três Ordens (Cristo, Aviz e Santiago) e ao peito a placa da Ordem da Torre e Espada. Ao lado do Rei estão, sobre uma mesa, a Coroa Real de Portugal e o Cetro.

O retrato é obra do pintor britânico George Hillyard Swinstead (1860-1926), membro da Royal Society, autor de ampla obra pictórica, tanto de retratos de figuras da sociedade inglesa da época como de paisagens e pinturas de género.

Não podemos deixar de nos interrogar acerca de quando este retrato terá sido pintado e por que motivo o foi por um pintor britânico e não por um bom retratista português da época. Alem disso também nos assalta a curiosidade de saber por que razão se encontra agora no Turf Club.

Teremos de voltar atrás no tempo para encontrarmos resposta a estas perguntas.

El Rei D. Manuel II foi investido na Real Ordem da Jarreteira do Reino Unido em fevereiro de 1909, pelo Rei Eduardo VII. A amizade deste Rei por El Rei D. Carlos tinha sido intensa e verdadeira. A sua indignação pelo assassinato deste seu parente e seu filho primogénito, dois cavaleiros da Ordem da Jarreteira, foi notória. Quis por isso e no mais curto espaço de tempo, distinguir o jovem sucessor, D. Manuel II, com o acolhimento na Ordem e com a distinção que esse acolhimento significava. D. Manuel sentiu profundamente o valor dessa distinção e durante toda a sua vida não faltou nunca às celebrações da Ordem, na capela de S. Jorge e no castelo de Windsor, todos os meses de junho.


George Hillyard Swinstead (1860-1926), aqui fotografado no seu estúdio


  

David Knights-Whittome no seu estúdio em Sutton. A pose que adota relembra-nos que o fotógrafo seria também o pintor dos cenários das fotografias que tirava.


Ainda durante a vida do rei D. Carlos e no seguimento das visitas que efetuou a Londres, chegou ao conhecimento do Rei a alta qualidade dos trabalhos do fotógrafo britânico, David Knights-Whittome, fotógrafo da Casa Real britânica e membro da Royal Photographic Society. Tendo-se iniciado na fotografia em 1897, ao fotografar o elenco de uma produção local da peça “The Sign of the Cross”, abriu em 1904 um estúdio em Sutton, Surrey, localizado no número 18, The High Street. A sua arte terá encontrado sucesso comercial já que em 1911 irá abrir um segundo estúdio, desta feita no número 24 da Station Road, em Epsom, também em Surrey.

Era um fotógrafo famoso, cujos trabalhos eram muito apreciados e disputados quer pela Família Real quer pela alta sociedade daquele país. São muito conhecidas as suas fotografias de grupos da sociedade britânica em “house-parties” nas quais figuram muito frequentemente o Rei Eduardo VII, bem como o Marquês de Soveral. Foi, alem disso, o fotógrafo oficial da coroação do Rei Jorge V, bem como da cerimónia de investidura do então Príncipe de Gales em Carnarvon. Foi fotógrafo da rainha Alexandra e fotografou o Rei Afonso XIII de Espanha e a Rainha Vitoria Eugénia bem como os Reis da Dinamarca e Noruega. Na sua Inglaterra natal é ainda lembrado pelas centenas, talvez milhares, de retratos que tirou a jovens militares ingleses durante a I Grande Guerra, muitos dos quais seriam, provavelmente, os primeiros e únicos registos fotográficos das suas jovens vidas.



Fotografias dos jovens Príncipes, na entrada do Palácio das Necessidades, perto dos seus aposentos. Em ambas as fotografias são visíveis as dedicatórias à sua mãe, Rainha D. Amélia.


O Arquivo e Biblioteca de Sutton, Inglaterra, onde se guardam mais de dez mil dos seus negativos em placas fotográficas, merece uma nota da nossa parte pela história fascinante do seu repetido abandono, esquecimento e redescoberta. Tendo sido encontrado praticamente intacto em 1978 (cerca de 60 anos depois do fotógrafo abandonar a sua arte) no antigo estúdio em Sutton, foi novamente votado ao esquecimento nos arquivos e caves da Biblioteca de Cheam e posteriormente dos Civic Offices, instituições locais sem os recursos ou pessoal para assegurar a devida preservação do importante legado histórico que lhe havia chegado por mero acaso do destino. Apenas em 2014, graças a uma bolsa no valor de perto de 100 mil libras da Heritage Lottery Fund, foi possível catalogar, digitalizar e preservar a coleção, publicitando-a sob o título “The Past on Glass”.

Em 1905 David Knights-Whittome dirigiu-se a Lisboa a fim de fotografar o rei D. Carlos, o seu filho primogénito e herdeiro, D. Luís Filipe, e o Infante D. Manuel. Não chegou até nós a fotografia do rei D. Carlos, mas sim as duas fotografias dos seus filhos tiradas no túnel de entrada do Palácio das Necessidades. Os dois príncipes irão oferecer essas fotografias, com dedicatórias, a sua mãe a Rainha D. Amélia e encontram-se hoje no gabinete de trabalho da Rainha no Palácio da Pena. Irá ainda fotografar as salas do Palácio das Necessidades, nomeadamente a nova sala de banquetes, bem como a entrada dessa mesma sala, mais pequena, e que servia para as refeições diárias da família real.




Em cima, a Sala Azul ou Sala dos Embaixadores, e em baixo parte da Sala de Banquetes recém-terminada e utilizada pela Família Real como Sala de Jantar diária. As fotografias são de David Knights-Whittome, presumivelmente em 1905, no Palácio das Necessidades.






Ainda nesse ano verificamos que retratou com todo o detalhe e com o seu alto sentido artístico, o interior do palácio de Monserrate, em Sintra, com as preciosidades que aquelas salas encerravam. Certamente a convite do seu proprietário, Sir Frederick Cook, Visconde de Monserrate, que não deixou escapar a oportunidade de solicitar o desempenho de tão prestigioso artista. Fotografou também os membros da família Cook e os grupos de amigos que frequentavam a sua bela casa, esplêndido recheio e maravilhosos jardins.

Regressou mais tarde a Lisboa, em 1909, quando já reinava D. Manuel II. O jovem Rei havia ingressado em junho desse ano na prestigiada Ordem da Jarreteira da Grã-Bretanha. Quiçá o Rei terá reencontrado David Knights-Whittome nas cerimónias da Ordem, na qualidade de fotógrafo oficial da Casa Real britânica. Nesse encontro poderá ter tido origem o convite do Rei.

Conhecemos uma carta do fotógrafo, de setembro de 1909, dirigida a um Mr. King, Cônsul britânico em Lisboa, pedindo a sua intercessão para que as autoridades alfandegárias não abrissem as caixas que continham as placas fotográficas de vidro, pois estas ficariam irremediavelmente perdidas se fossem expostas à luz. Nessa mesma carta encontramos uma anotação do Marquês de Lavradio, Secretário do Rei, clarificando que “Este photographo vem tirar retratos a S.M. El Rei”.

Segundo Lourenço Correia de Matos, cuja informação agradeço, David Knights-Whittome formulou, a 4 de março de 1910, em carta dirigida ao Marquês de Lavradio, um pedido para ser fotógrafo da Casa Real. O pedido viria a ser despachado a 13 de abril e o alvará passado a 27 desse mês.


Sir Frederick Cook e Lady Mary Cook, no Palácio de Monserrate, Sintra, numa foto de David Knights-Whittome.


Sala de Jantar no Palácio de Monserrate, igualmente numa foto de David Knights-Whittome.



Fotografias do Rei D. Manuel II, vestido com os trajes da Ordem da Jarreteira. As legendas, bem como a menção ao fotógrafo, em inglês, indicam que estas fotos terão tido circulação em Inglaterra.


As fotografias, das quais conhecemos vários exemplares, em diferentes posições, teriam agradado muito a El-Rei e eventualmente, durante as sessões de pose, D. Manuel II terá dito ao fotógrafo ou este terá sugerido, que seria adequado fazer-se pintar, com os vistosos trajes da Ordem da Jarreteira, num belo retrato a óleo. O artista terá mesmo sugerido o nome de um pintor inglês, seu amigo, também ele conhecido autor de retratos de importantes personalidades, e também de paisagens e cenas de género. Tratava-se de George Hillyard Swinstead, membro da Royal Academy of Art. A sugestão terá sido aceite pelo Rei e assim o pintor deslocou-se posteriormente a Lisboa para começar os esboços preparatórios do retrato, a ser terminado com base nas fotografias de Knights-Whittome. Dá-se então a revolução de outubro que derrubou a Monarquia e implantou a República em Portugal. 

O jovem Rei viu-se obrigado a deixar o país e dirigir-se a Inglaterra para estabelecer residência. De início, e com a sua mãe, a Rainha D. Amélia, assim que chegaram, instalaram-se na mansão de seu tio, o Duque de Orléans, em Woodnorton.  Nesta casa, terá ainda pousado, uma ou duas vezes, para o pintor.  E o quadro ficou pronto! No entanto, D. Manuel terá tido que participar ao pintor e ao fotógrafo que, dada a sua instabilidade financeira, ainda sem notícias acerca do destino dos seus bens em Portugal, não lhe seria possível completar os pagamentos do retrato. Todavia, o antigo perceptor dos Príncipes F. Keraush, que havia acompanhado o Rei no exílio, dirige uma carta ao fotógrafo em fevereiro de 1911, incluindo um cheque de 10 libras e 16 xelins para pagamento de 12 fotografias de D. Manuel com os trajes da Ordem da Jarreteira.


Carta de David Knights-Whittome guardada no Arquivo de Sutton, em que o fotógrafo pede a intervenção do Cônsul Britânico em Lisboa no sentido de garantir que as placas fotográficas não serão abertas na Alfândega de Lisboa.


David Knights-Whittome posa em frente ao retrato de D. Manuel II, possivelmente no estúdio de George Hillyard Swinstead. Escrita na própria fotografia encontramos uma possível nota do fotógrafo, “unfinished”. Foi a digitalização e publicação desta fotografia, guardada no Arquivo de Sutton, que desencadeou o presente estudo.



Também no Arquivo de Sutton existe correspondência entre o fotógrafo e o pintor em que ambos lamentam a pouca sorte que tiveram ao arriscar o que chamam “um considerável empreendimento financeiro” e que afinal se revelou ter um desfecho ingrato.

Começa então a epopeia do retrato, com o pintor, assim como o fotógrafo, a dirigem várias cartas a diversas personalidades, inglesas e americanas que conhecem ou conheceram o Rei, tentando convencê-las a comprar a pintura sem, no entanto, conseguirem qualquer resultado positivo. Tentam igualmente interessar diferentes e conhecidas casas leiloeiras, igualmente sem sucesso. Obtêm mesmo uma resposta da Christie´s que lhes diz que a tentativa de venda em leilão de um tal retrato não oferecia quaisquer perspetivas favoráveis.

Depois de uma constante e persistente campanha para vender o retrato, sem qualquer êxito, os dois autores entram num profundo desânimo.   Então, o pintor já desinteressado do destino que o retrato pudesse vir a ter, ofereceu-o ao fotógrafo que o guardou na sua casa.


Rei D. Manuel II e o Marquês de Soveral durante a Visita de Estado a Londres em 1909. Fotografia de David Knights-Whittome.




Knights Whittome acabou por abandonar, por volta de 1918, a profissão de fotógrafo, não sem antes se ter alistado para contribuir para o esforço de guerra da Grã-Bretanha. Foi promovido a tenente na Royal Garrison Artillery e serviu como oficial comandante da “New Holland Gun station” de 1916 a 1919. Após o final da Grande Guerra muda-se com a família para Wimbledon e posteriormente para Bournemouth, onde a mulher tinha uma loja. Mudando-se uma última vez, para St. Albans, é lembrado pelo seu grande envolvimento cívico na comunidade local, servindo tanto no City como no County Council, vida política que culminaria com a sua eleição para “Mayor” de St. Albans (1940-1941), onde viria a falecer em 1943.

Através de correspondência guardada no arquivo do Turf Club em Lisboa podemos verificar que muitos anos mais tarde, creio que podemos afirmar ter sido em 1960, surge um anúncio no diário britânico “The Times” pondo à venda o retrato em causa.

Estabelece-se então uma correspondência entre o Vice presidente do Club, Júlio Jardim de Vilhena, e a anunciante, Mrs. W.V.Pett, em que  Vilhena manifesta o  interesse do Club em adquirir o retrato para a sua galeria de retratos reais.







Mrs. Pett, Margaret Jacinth Pett, fora casada com um dos dois filhos do fotógrafo, Ronald John, Oficial da Royal Air Force, falecido durante a Segunda Guerra Mundial, e casara posteriormente com um senhor Pett.  Sabemos, através de um neto do fotógrafo, Michael Knights-Whittome, que em 1943 quando este falece sem deixar testamento, a sua mulher, Sarah Elizabeth (Draper), vivia ainda em St. Albans. Michael Knights-Whittome partilhou ainda lembrar-se efetivamente do grande retrato, nas escadas da casa da família, onde habitava a avó, e que este, pela sua dimensão e solenidade lhe causara um certo temor e uma impressão duradoura que guarda, 80 anos volvidos.

Na mesma altura, também o filho mais velho do casal Knights-Whittome, Maurice, terá tentado assistir na venda do quadro, que se continuava a revelar difícil. Algures entre essa época e 1959 o retrato terá então passado para a posse de Mrs. Pett, talvez por esta ter expressado interesse nele, por a venda que se revelava cada vez mais improvável, ou porque a mudança de casa obrigaria a deixar alguns dos objetos mais volumosos, e sem ligação direta com a família (como o retrato de um antigo Rei estrangeiro).

Guarda-o então no armazém duma empresa que restaurava e conservava pinturas, James Bourlet & Sons, na Nassau Street em Londres. Cedo manifesta pressa em vendê-lo e, segundo diz na correspondência guardada no Club, fizera diligências nesse sentido junto da Fundação da Casa de Bragança, sem resultados favoráveis. Afirma ainda que segurara pintura em 500 guinéus (10.030 libras 2021), mas que estava pronta a reduzir o preço para 300 guinéus (6.018 libras 2021). Após um período de deliberação em que a compra é levada a aprovação dos sócios, e durante o qual Mrs. Pett se revela impaciente, preço foi aceite pelo Turf Club.

Por uma carta de James Bourlet & Sons, de fevereiro de 1961, dirigida ao Visconde de Asseca, então Presidente do Club, hospedado no Claridge’s Hotel em Londres, ficamos a saber que Asseca havia visitado este estabelecimento e concordado com os custos que seriam os seguintes:

i)   i) Limpeza do quadro e envernizamento – 18 libras (1961) – 344 libras (2021)

 

ii) ii) Embalagem do retrato e envio em nome do Visconde de Asseca para Sena Sugar Estates na Avenida da India em Lisboa – 18 libras e 10 xelins (1961) – 344 libras (2021)

 

ii) iii) Seguro para o transporte – 351 libras (1961) – 6.705 libras 2021


 


Carta da Sra. Margaret Jacinth Pett, datada de 20 de novembro de 1960, relatando outras manifestações de interesse ao anúncio e expressando o desejo de o vender ao Turf Club.


November 20th

Dear Sir,

Thank you for your letter dated November 14th. I hope you are in the process of contacting your members before reaching a decision on purchasing the portrait of King Manuel. I should be grateful if you would kindly let me know as quickly as conveniently possible, as I have had several replies to my advertisement, but have delayed coming to any conclusion with them until I hear from you.

I do hope you will decide to purchase the portrait as I feel a club would be an ideal place for it.

Yours sincerely,

Jacinth Pett





Não encontrei referência explicita quanto à data da inauguração do quadro no Club, mas desde os primeiros anos da década de 60, do século XX, que o retrato de El-Rei D. Manuel II adornou, durante muitos anos, a pequena sala de jantar denominada “Sala dos Reis”. Além deste retrato pendem nas suas paredes os retratos de El-rei D. Luís, de El-rei D. Carlos, de D. Duarte Nuno, Duque de Bragança e D. Duarte Pio, Duque de Bragança.

Sendo um interessante conjunto, com harmonia e dignidade, é o retrato de D. Manuel II, pela dimensão, técnica e composição, que mais nos impressiona. Sabemos agora, finalmente, que a sua história corresponde ao impacto que causa aos visitantes. Na verdade, mostrando unicamente uma das suas personagens, serve de crónica pictórica ao Portugal do início do século XX. Deixa transparecer um jovem Rei, com ambição, orgulhosamente investido da dignidade estrangeira da Jarreteira que lhe haviam conferido, mas sem esquecer a herança e responsabilidade que o acompanhavam sempre, manifestada nas Ordens portuguesas e na coroa que repousa, com as suas consideráveis dimensões reais, ao seu lado. Como o país que se predispunha a ser a sua única casa, o destino do quadro torna-se incerto, acompanha brevemente o exílio e aparenta abandonar qualquer ligação a Portugal. Permanecerá longe, não por desinteresse do retratado, mas pela conturbada conjuntura, e depois de perto de meio século e incontáveis esforços da família do fotógrafo, retorna finalmente ao nosso país. Ao voltar, encontra um Portugal muito diferente daquele que deixou em 1910, mas encontra ainda uma acolhedora casa no Turf Club.

 

 

 

 

AGRADECIMENTOS

 

Agradeço ao Presidente do Turf Club, Conde do Cartaxo, que autorizou e apoiou a investigação no arquivo documental do Club.

Ao Embaixador João da Rocha Páris – Visconde da Torre – que colaborou na pesquisa e seleção dos textos pertencentes ao arquivo do Club permitindo que se juntassem assim dois lados da correspondência que 60 anos e muitos quilómetros separaram.

A Abby Matthews, Project Officer do The Past on Glass e responsável pelo Arquivo de Sutton, cuja descoberta e publicação dos negativos originais e correspondência permitiu desencadear a investigação.

A Michael Knights-Whittome, neto do fotógrafo, que ajudou a clarificar a ligação da família ao retrato.

Ao Dr. Hugo Xavier, Conservador do Palácio Nacional da Pena, agradeço a indicação da curiosa fotografia da sala de jantar no Palácio das Necessidades, inédita, e que constituiu o primeiro trabalho de David Knights-Whittome com que me cruzei.

Last but not least ao meu colega Ricardo Mateus Pereira pela sua fundamental participação neste estudo através da pesquisa e consulta de variadas fontes. 



Manuel Côrte-Real 

 






sexta-feira, 25 de março de 2022

Nájera.

 


 

 

Nájera

 



 

Aqui jaz uma rainha fatal, raptada, malquerida e (quase) esquecida.

 

Naquele tempo se dizia, que ElRey andava em poder della enfeytiçado, e ceguo do juizo…

 

Ruy de Pina, Crónica do Rei D. Sancho II

 

No meio dos declives de terra avermelhada onde brotam as uvas que hão-de verter os famosos vinhos de La Rioja, bem perto do rio Ebro que divide a velha Castela do rebelde País Basco, está Nájera. Foi capital e nome de reino, para ser hoje uma urbe pouco interessante atravessada pelo rio Najerilla, afluente do Ebro, que separa a parte antiga do que não se distingue de qualquer outra cidade espanhola. Vale, contudo, uma visita.

                                                                                              

Ali, num mosteiro que é testemunho da glória passada, jaz uma rainha de Portugal, a primeira femme fatale da nossa História. Bela, cativante e manipuladora, acabou vilipendiada pelos cronistas, negada pelos historiadores e, como tal, quase obliterada por uma posteridade para a qual não deixou mais legado do que o seu sepulcro. Este, com armas lusas esculpidas em toda a volta, é esclarecedor quanto às dúvidas que se levantaram sobre se foi ou não rainha de Portugal: Mencía Lopez de Haro não as tinha.








 

Nájera surgiu como que apoiada num pequeno promontório rochoso e foi um centro importante da idade média quando o rei de Pamplona decidiu, no ano de 923, criar um reino para o seu filho, García Sánchez I, ainda antes de este lhe suceder no reino principal, o que aconteceria pouco depois. O novo rei fixou capital em Nájera, em detrimento de Pamplona, no que seria o início de um reino com existência relativamente efémera mas sobretudo instável, com fronteiras tão oscilantes como a denominação: ora Nájera, ora Pamplona, ora Navarra.  

 

Apesar de ter durado menos de 200 anos, o Reino de Nájera haveria de ser berço de várias dinastias. Os seus reis estão entre os ancestrais dos reis de Navarra, Castela e Aragão e, como tal, também dos reis de Portugal.

 

Não por acaso, na belíssima e inacabada Genealogia do Infante D. Fernando estão representados alguns reis de Nájera. Pintados pelo impecável punho do miniaturista Simon Bening a partir de desenhos enviados de Lisboa por António de Holanda, a folha dos reis de Aragão vale mais pela indiscutível beleza do trabalho artístico do mestre holandês do que pelo rigor genealógico. Mas lá está ao centro, Sancho Garcés III, el Mayor, em cujo reinado o Reino de Nájera-Pamplona atingiu o seu apogeu, ocupando uma vasta área do norte da Península.

 

Folha da Genealogia do Infante D. Fernando, desenhada por António de Holanda e pintada por Simon Bening, dedicada aos Reis de Aragão, onde constam os Reis de Nájera. O original está na British Library.

 

O Mosteiro de Santa María la Real de Nájera foi fundado pelo filho de Sancho, o rei García Sánchez III e pela mulher deste, depois de o rei ter descoberto uma imagem da Virgem numa gruta escavada na rocha. Foi a partir da rocha que se construiu o mosteiro e foi essa a capela, escavada ao jeito de Petra, mas mais modesta, que os monarcas escolheram para sepulcro familiar.

 

A igreja que hoje acolhe os visitantes, assim como o Panteão Real desta dinastia Jimena (em honra do fundador, Jimeno de Pamplona), são muito posteriores a esta fundação, mas nem por isso menos notáveis. Os reis e infantes de Nájera ficaram depositados na gruta durante séculos: insolitamente estavam lá também os regicidas do último rei da dinastia Jimena (e filho do fundador do mosteiro), atirado de um penhasco pelo irmão e pela irmã, durante uma caçada.  

 

Os despojos do reino foram então divididos entre Navarra e Castela, mas a cidade de Nájera ficou para Castela e iniciou-se um período de declínio do mosteiro. No século XV, a ruína ditou a demolição do templo original e a sua reconfiguração, surgindo então a ideia de criar um Panteão Real[i], ideia apoiada pelos Habsburgo, que procuravam legitimar-se como herdeiros dos Reis de Navarra após a conquista da Alta Navarra pelo Rei Fernando II de Aragão, el Católico, em 1512. Tanto o neto deste, o Imperador Carlos V (Carlos I de Espanha) como o filho deste, Felipe II de Espanha (e I de Portugal), visitaram Nájera e a marca Habsburgo está presente na heráldica do exterior e do interior do Mosteiro.

 

Ali surgiram então figurados, lado a lado, os poucos reis de Nájera, em túmulos com imagens jacentes esculpidas mais de 400 anos depois da morte de todos eles. Os fundadores, de joelhos e em oração, flanqueiam a entrada à gruta original, num conjunto imponente e peculiar.

 

O panteão está construído na galilé da igreja. A palavra galilé tem origem em Galileia e a sua associação à arquitectura religiosa resulta do modelo beneditino de Cluny (o mosteiro esteve vinculado a Cluny desde que Nájera foi incorporada em Castela), que definia a galilé como o espaço de reencontro com Deus no rito funerário, tal como a Galileia onde Jesus se reencontrou com os discípulos depois da Ressurreição. O local onde estão é, afinal, propício: o novo panteão foi quase uma ressurreição para os reis antigos de Nájera-Pamplona ou Navarra, depois de quatro séculos amortalhados numa gruta de pedra.

 

Fora desta galilé e da igreja, há mais túmulos. O extraordinário claustro gótico plateresco (o estilo arquitectónico espanhol equivalente e contemporâneo do manuelino) recorta-se em belíssimos arcos rendilhados, de um esmerado trabalho do início do século XVI. Num dos topos, encontramos a Capela de la Vera Cruz, conhecida originalmente como a Capela de la Reina Doña Mencía.

 









  

* * *

 

Se a integração no Reino de Castela em 1076 teve como consequência a crescente irrelevância do mosteiro e a sua degradação, Nájera não perdeu importância estratégica. A cidade passou a estar associada ao Senhorio de Biscaia, que pertencia à Casa de Haro e passou a ser a sede da família, que escolheu o mosteiro para seu panteão familiar, ficando as suas sepulturas modestamente longe da gruta real. 

 

A dinastia dos Haro é uma sucessão intercalada de Diego López e de Lope Díaz. Em 1214, Lope Díaz II de Haro, dito o Cabeça Brava, 6.º Senhor de Biscaia, sucedeu a seu pai, Diego López II, figura polémica na corte castelhana e possível inspiração de uma lenda a que voltaremos.

 

Lope Díaz II elevara o patamar da Casa de Haro ao casar-se com uma filha, ainda que ilegítima, do Rei Alfonso IX de Leão, D. Urraca Alfonso. É deste casamento que nasce, por volta de 1214, Mencía – ou Mecía, ou Mécia, como é hoje conhecida entre nós –, que só não é mais vilipendiada rainha portuguesa porque tivemos depois D. Leonor Teles, dita aleivosa, e D. Carlota Joaquina, dita horrenda ou piolhosa.

 

Saber quão justo ou injusto é o tratamento do Rei D. Sancho II de Portugal pelos historiadores é um desafio dificultado pelas escassas fontes coevas independentes. Os sucessos militares e diplomáticos dos primeiros anos do seu reinado são consistentemente obliterados em favor da narrativa da denegação de justiça, muito alicerçada nas queixas que os bispos fizeram ao Papa e que levariam à deposição de facto do rei português.

 

D. Sancho terá casado com Mencía Lopez, da Casa de Haro, em 1241, no ano seguinte a ela enviuvar[ii]. As crónicas medievais – que têm de ser lidas criticamente, porque os cronistas não procuravam a isenção, antes agradar a quem encomendou a crónica – pretendem claramente assumir uma ligação entre os males do reino e o desleixo de D. Sancho com o seu casamento com D. Mécia, ao qual parecia opor-se a tia do Rei, Rainha de Castela, viúva do avô de Mécia. O casamento terá sido uma inflexão no reinado daquele que, assim o dizem todas as crónicas, “começou de seer muy boo Rey”.

 

Aquela que será provavelmente a mais antiga crónica portuguesa, vertida como cópia na IVª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra e que se presume anterior a 1282[iii], terá sido escrita possivelmente ainda no reinado de D. Afonso III e estabeleceu a narrativa que será seguida posteriormente e que define, até aos nossos dias, a imagem da Rainha D. Mécia:

 

Morto ElRey Dom Affomso Reynou sseu filho Dom Sancho. E começou de seer muy boo Rey e de Justiça Mais ouve maãos conselheiros. E despois da alli em diante Nom foy Justiçosso. E ssaio de mandado Da Rainha dona Biringeira sua tia E cassousse com Miçia Lopez. E des alla foi pera mal.

 

Livro de Linhagens[iv] de D. Pedro, Conde de Barcelos, dos primeiros anos do século XIV, a que voltaremos para mais pormenores, é praticamente uma transcrição deste, introduzindo noutras passagens a circunstância de ser o segundo casamento da filha do Senhor de Biscaia:

 

Reynou seu filho dom Sancho, e começou muy bem de seer muy boo rrey e de justiça , mas ouve máaos comsselheyros , e dès alli adeamte nom fez justiça. E sayo de mamdado aa rrainha dona Birimguella sa tia e casousse com Miçia Lopez, e dès àlli foy pera mall.

 

Já no século XV Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal ou Crónica de 1419, atribuída a Fernão Lopes, é também especialmente clara nesse sentido, com uma clara relação de causa-efeito:

 

Segundo alguns dizem, começou de ser boo Rey, e depois por sua synpreza e maos comselheyros ya-se a terra toda a perder, fazendo-se todo mal em ela, e sayo-se do mandado da raynha Berengena, sua tya, e casou-se com Dª Meçia Lopez, filha de dom Lopo de Biscaya. (…) E daly em diante foy aimda o Reyno majs pera mal, em guisa que matavom e roubavom, furtando e poendo foguo, asy os grandes como os pequenos.”[v]

 

As três crónicas têm o agravamento dos problemas do reino como resultado, de alguma forma, do casamento do rei. Embora o relato de Ruy de Pina na sua Coronica do muito alto, e esclarecido principe D. Sancho II quarto Rey de Portugal[vi] seja um testemunho tardio, escrito quase 300 anos depois dos acontecimentos traumáticos do reinado de D. Sancho II, parece basear-se, por semelhança de redacção, nas crónicas anteriores[vii]. É o mais completo e nenhuma das crónicas excede a de Ruy de Pina, escrevendo no início do século XVI, na verve misógina:

 

ElRey D. Sancho por maaos concelhos dalguũs seus nom fieis, e danados Cõselheyros (…) e muito contra sua honra, e com grande escandalo, e nojo dos do Regno, cazou com Dona Mecia Lopes, Dona fermosa, e viuva, filha de Dom Lopo, senhor de Biscaya, que era parenta sua dentro no quarto graao, aquaal fora jaa cazada, com Dom Alvaro Pires de Castro (…), e posto que ElRey Dom Sancho pelos Prelados, e poovos, Senhores, e pessoas de titulo de seu Regno muitas vezes fosse requerido, amoestado, e aconselhado, que se apartasse desta molher, e recebesse outra qual, aa sua honra, e conciencia convinha, elle, ou por feitiços, de que diziam que era ligado, ho nom pode nunca fazer, nem consentir, porque naquele tempo segundo has couzas passavam, muy clara, e geralmente se dizia, que ElRey andava em poder della enfeytiçado, e ceguo do juizo seem se poder apartar”.

 

O tom do cronista é arrebatador de tanto desprezo por Mécia Lopez, cuja única virtude era ser “formosa”. Diz que Sancho se desonrou ao casar, causando “escândalo e nojo” ao reino, que o Rei estava enfeitiçado e “em poder” de D. Mécia e “cego do juízo”, rejeitando todos os apelos, admoestações e conselhos para se afastar da castelhana e se casar com alguém digno da sua condição.

 

Embora possa parecer que o pecado capital fosse o ter sido já casada com D. Álvaro Pérez de Castro, Mordomo-Mor de Alfonso IX de Leão e destacado comandante dos exércitos castelhanos de Fernando III de Castela e Leão, não parece haver nessa condição de viúva razão de escândalo nos padrões da época – o que justifica a ausência de referência nas crónicas mais antigas.

 

D. Mécia teria sido, aliás, uma heroína lendária nas campanhas militares do primeiro marido, defendendo um castelo indefeso depois de enganar uma guarnição muçulmana[viii]. Com o grupo de mulheres que ficara no castelo, vestiu armadura, pegou em armas e colgou-se nas ameias, simulando que o castelo estava defendido por homens de armas e dando tempo para que os verdadeiros soldados do marido fossem chamados de volta.

 

Terá sido como homenagem à heroicidade de D. Mécia que Doña Mencía é nome de uma vila com uns parcos 5000 habitantes, no sul de Espanha, entre Córdoba e Granada, numa zona que o marido liderou as tropas de Fernando III, el Santo, durante a Reconquista, embora por lá pareça faltar a memória histórica da razão exacta pela qual o nome foi atribuído – além de Mencía ser apenas referida como mulher de Álvaro Perez de Castro e nunca como Rainha de Portugal.

 

D. Sancho II e D. Mécia eram, como escreveu Ruy de Pina, parentes, num grau que apesar de ser impeditivo do casamento, era susceptível de dispensa, o que acontecia com frequência e normalidade. D. Mécia era trineta de D. Afonso Henriques e D. Sancho era bisneto do primeiro rei de Portugal.

 

Esta consanguinidade não explica a repugnância que cercou Mécia, embora a pretensa endogamia viesse a ser, de facto, argumento para anulação do casamento, a pedido do irmão do Rei D. Sancho, o Infante D. Afonso, Conde de Bolonha e futuro D. Afonso III. Como se verá adiante, o argumento do Infante parece ter sido apenas conveniente para os seus propósitos de garantir que o irmão não tinha descendência legítima e, como tal, bastante oportunista.

 

Das elencadas, a razão que melhor poderia explicar a recusa nacional da nobre castelhana seria o facto de o casamento não servir os interesses do reino e a ascendência de Mécia, pouco digna do trono português. Na Crónica de 1419, Fernão Lopes refere que o casamento foi “cousa os povos ouverom por estranha por ser ligua de tam baixo lugar segundo o que pertencia a seu estado”. As três primeiras rainhas – Mafalda de Sabóia, Dulce de Aragão e Urraca de Castela – eram filhas de chefes de casas reinantes e a Casa de Haro, por importante que fosse, não ombreava com estas.

 

Restam ainda como plausíveis causas do ódio que gerou a beleza e a sensualidade de Mécia Lopez. A mulher de D. Sancho II é apresentada, em diversos escritos, como uma mulher cativante e dominadora, uma verdadeira mulher fatal capaz de controlar o rei por artes que, não sendo certamente de magia, podiam ser de sedução.










  

* * *

 

Em Santa María la Real de Nájera, D. Mécia Lopez aparece esplendidamente vestida para a eternidade, de vestido, capa e touca de biscainha. Um desenho do túmulo feito em meados do século XIX, antes de ser irremediavelmente danificado o rosto da estátua jacente, mostra uma rainha muito bela e sobretudo muito jovem como certamente não era quando morreu, por volta de 1271, com cerca de 56 anos – um recorde de longevidade em que bateu, por larga distância, as suas três antecessoras, nenhuma das quais chegou aos 40. Desta vida relativamente longa restam relatos de alguns episódios curiosos e com um pormenor inusitado.

 

Dos escritos de D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos (1287-1354), filho bastardo do Rei D. Dinis e excepcional cronista dos primeiros anos das monarquias hispânicas, chega-nos a informação mais próxima dos acontecimentos, mas também uma certa intenção no que respeita àquilo que da dama da Casa de Haro que se alçara a Rainha de Portugal se saberia para a posteridade.

 

No seu Livro de Linhagens, o Conde de Barcelos incluiu os Haro mas associou à família uma extraordinária lenda, da qual fará eco muito posterior Alexandre Herculano no seu repositório das lendas portuguesas[ix]: a Lenda da Dama Pé-de-Cabra. Herculano inspirou-se no essencial da lenda contada no século XIV, acrescentando cenas e personagens em abundância.

 

Segundo a versão original, um antepassado da Rainha D. Mécia, Diego López, ter-se-ia enamorado de uma dama belíssima que encontrara nos campos e com quem casara depois de jurar que não mais faria o sinal da Cruz, como que abjurando a sua fé.

 

Descobriria que, apesar de toda a formosura e perfeição, a dama tinha pés-de-cabra – quase uma incarnação de belzebu. Isso não teria impedido que tivessem filhos e uma vida feliz, até ao dia em que, tendo lançado um osso para debaixo da mesa, uma cadela da casa matou com tal violência o cão de D. Diego que este se benzeu e invocou Nossa Senhora – “samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!” – o que fez com que a mulher se levantasse e desaparecesse correndo, levando a filha.

 


 Desenho do sepulcro da Rainha D. Mécia, feito em meados do século XIX, antes de a face da estátua jacente ser irremediavelmente danificada. Doña Mencía López de Haro, Valentin Carderera dibujó; Rufino Casado litografió, Biblioteca de La Rioja (Biblioteca Virtual de La Rioja > Doña Mencía López de Haro ; Don Diego López de Salcedo)

 

A história continua com o filho do casal a procurar a mãe nos montes, para que o ajudasse a libertar o pai, que caíra cativo dos muçulmanos, em Toledo, nas guerras da Reconquista. A mãe, que adivinhou ao que o filho ia, deu-lhe um cavalo, garantindo-lhe que o pai se libertaria. A lenda do Conde de Barcelos termina com a libertação de D. Diego; a de Herculano traz mais aventuras com o cavalo endiabrado, reagindo à santificação da mesma forma que reagira a dama de pé-de-cabra.

 

O Conde de Barcelos era neto de D. Afonso III, cujo papel central na deposição do irmão abordaremos brevemente. Esta associação de uma lenda de magia negra e de pacto com o demónio à família de D. Mécia dificilmente poderá ser inocente. Mesmo que a lenda existisse, associá-la à família de uma Rainha de Portugal num livro de linhagens só poderia ter como efeito desqualificá-la a ela e aos Haro aos olhos futuros.

 

Mas as histórias relacionadas com D. Mécia Lopez nas crónicas de D. Pedro Afonso não ficam por aqui. No mesmo Livro de Linhagens, o filho de D. Dinis descreve com requintes uma cena de ciúmes durante o cerco de Paredes de Nava, numa época em que Mécia seria ainda solteira mas cortejada pelo que viria a ser o seu primeiro marido, D. Álvaro Perez de Castro. Mécia é retratada na sua tenda, “as faldras da tenda alçadas contra a vila”, a jogar “acedrenche” (xadrez) com D. Martim Sanches, filho ilegítimo de D. Sancho I e como tal tio de D. Sancho II, descrito como estando “en manto e en saya”, ou seja, num momento de descontração.

 

Este momento de verdadeiro voyeurismo medieval, terá irado Álvaro Perez de Castro, que se dirigiu à tenda para confrontar o casal de jogadores, surpreendidos em cena suspeita, em pleno cerco. Vendo que Martim Sanches estava desarmado, não o feriu. Mas irremediavelmente ferida ficou a imagem de D. Mécia que, ainda solteira, é retratada em jogos de sedução, com cavaleiros a defrontarem-se pela sua atenção.

 

* * *

 

Se as crónicas medievais procuraram denegrir D. Mécia Lopez e a Casa de Haro, pior estaria ainda para vir na historiografia nacional. Com o argumento de que D. Mécia não surge a confirmar os documentos da Chancelaria de D. Sancho II, Frei António Brandão sugeriu, em princípios do século XVII, que o casamento nunca teria acontecido e que D. Mécia nunca teria sido rainha. Isso contradiz directamente as crónicas medievais, que a tratam por rainha, mas também diversos documentos, como a bula do Papa Inocêncio IV que manda anular o casamento ou outros que mencionam os castelos que eram “das arras” da Rainha, ou seja, do seu dote.

 

Só no século XIX a historiografia portuguesa, com base nas fontes documentais, tentou reabilitar, de alguma forma, a figura da mulher do quarto Rei de Portugal. Alexandre Herculano[x] e Frederico de La Figanière[xi] empenharam-se especialmente no assunto e ficou esclarecido, pelo menos para a maioria, que Mécia Lopez de Haro foi de facto Rainha de Portugal[xii].

 

Tendo existido casamento, foi também certamente tudo o que não se pode considerar um conto de fadas. O tempo de casados de D. Sancho e D. Mécia foi vertiginoso em acontecimentos – todos eles decisivos no processo de deposição do rei e da guerra civil que se seguiu.

 

O casamento coincide com um período de instabilidade no reino, que alguns chamam de anarquia. Certo é que, instado pelo Papa a fazer justiça, D. Sancho terá continuado perdido e enfeitiçado. E no Concílio de Lyon, em que o Papa Inocêncio IV estava em modo de deposição de reis e já tinha deposto o Imperador do Sacro Império – nem mais nem menos do que o genial Frederico II, o Stupor Mundi a que o Papa chamou Anticristo –, ordenou-se que o irmão do rei, o Infante D. Afonso, Conde de Bolonha por casamento, tomasse o governo do Reino de Portugal das mãos do rei D. Sancho II.

 

Sem explorar razões ou descrever passos da sangrenta guerra civil, as traições dos alcaides[xiii] e os avanços e recuos de ambos os lados, vale a pena olhar os dois momentos fundamentais que envolvem a Rainha D. Mécia, ambos dramáticos.

 

O testamento de D. Afonso II, pai de D. Sancho II e do Infante D. Afonso, estabelecia de forma clara e pela primeira vez, uma ordem de sucessão baseada na primogenitura, com preferência pelos varões – ou seja, as infantas poderiam suceder no trono, mas apenas depois de esgotados os infantes e as respectivas linhas. Os Reis de Portugal estariam casados há já 4 anos, sem descendência, mas a possibilidade de a Rainha D. Mécia engravidar e dar um herdeiro a D. Sancho existia.

 

O infante D. Afonso era, ainda, o herdeiro legítimo do irmão e, perante a legitimação papal para que tomasse o poder em Portugal, quis garantir que o irmão não tinha descendência que colocasse em causa essa legitimidade. Fê-lo por duas vias: uma, legal, mas dramática e suprema; outra, simultaneamente genial e digna de um thriller, embora a D. Sancho tenha porventura parecido o clímax da sua tragédia pessoal.

 

Primeiro foi o pedido ao Papa para que anulasse o casamento dos Reis, com o argumento de que o casal real não tinha sido dispensado do grau de consanguinidade. A Chancelaria Papal não hesitou e foi expedida bula em Fevereiro de 1245, dirigida ao arcebispo de Compostela e ao bispo de Astorga, ordenando que verificassem a existência de tal casamento “cum nobili muliere Mentia Lupi[xiv] e que lhe aplicassem a pena de divórcio. A bula não deixa lugar a dúvidas: o pedido partiu do irmão do rei, o Conde de Bolonha e futuro D. Afonso III.

 

Apesar desta anulação pretendida, se nascessem filhos haveria sempre uma sombra de dúvida quanto à legitimidade de D. Afonso, pelo que o infante, no ano seguinte a invadir o Portugal por ordem do Papa e dar azo a uma violenta luta fratricida, parece ter posto em prática um plano audacioso: raptar a Rainha, naquele que será o verdadeiro golpe de misericórdia no irmão, tolhendo-lhe para sempre o orgulho e a capacidade de liderança.

 

É, uma vez mais, pela pena do Conde de Barcelos, no Livro de Linhagens, que surge o relato. D. Sancho II teria sido traído por um seu vassalo e, em Coimbra, a cidade que lhe era fiel, foi-lhe roubada a mulher, humilhação suprema para um marido, para um guerreiro, e sobretudo para um rei:

 

elrrey jazia dormindo em sa cama e filharomlhe [roubaram-lhe] a rrainha dona Miçia sa molher dapar delle e levaromna pera Ourem.” [xv]

 

O Rei estaria dormindo na sua cama e D. Mécia foi-lhe roubada do lado e levada para o Castelo de Ourém, que era da Rainha por lhe ter sido dado no dote – o que justifica a crença de alguns de que D. Mécia poderá, de alguma forma, ter estado implicada ou ter sido conivente com o espectacular rapto, embora o cronista real o desminta e diga que a Rainha foi contra sua vontade. Apesar do desmentido do Conde de Barcelos, no final do século XIX ainda Francisco da Fonseca Benevides jurava a pés juntos que D. Mécia teria de estar implicada, admoestando-a pela eternidade:

 

Não é demais o indelevel labéo de deslealdade que sobre ella pesa, manchando sua memoria a grande culpa de haver trahido seu amante, marido e rei, vendendo-se ao usurpador; acto infame e indigno que exclue toda a indulgencia.[xvi]

 

Indo em perseguição, D. Sancho foi recebido em Ourém com flechas, apesar de se ter apresentado com pendão e escudo, ou seja, como Rei de Portugal. Incapaz de reaver a mulher, D. Sancho era também certamente incapaz de reaver o Reino. Exilado em Castela, morreria ainda Rei de Portugal em Toledo, em Janeiro de 1248. Foi sepultado na catedral, perdendo-se o seu túmulo com os séculos dos séculos.

 








 

* * *

 

Voltemos a Nájera. O túmulo já não nos mostra o belo rosto de D. Mécia, que um artista nos idos de oitocentos teve a bela ideia de imortalizar. Mas o sepulcro da Rainha é ainda um singular exemplo de como, através da heráldica, a marca de Portugal se encontra um pouco por toda a Europa, até nos sítios mais recônditos, como esta pequena cidade.

 

Na face posterior do túmulo surge, destacado numa escultura bastante mais tosca do que a estátua jacente da rainha, o símbolo da Casa de Haro: o lobo, do nome/apelido tradicional da família Lope/Lopez, que leva na boca um cordeiro. De cada lado do túmulo há também dois escudos com as armas de Haro, dois lobos com cordeiros na boca, com bordadura com cruzes de Santo André. E é igualmente nas laterais do túmulo que encontramos as armas nacionais portuguesas, duas vezes de cada lado, tal como as usava D. Sancho II – ainda sem os castelos que D. Afonso III incluirá[xvii] e com os escudetes do meio virados para o centro.

 

Mécia foi sepultada, não há dúvidas, como Rainha de Portugal. Mas está ausente, radicalmente excluída, do testamento do Rei – sinal de que o rapto de Coimbra terá sido também o golpe de misericórdia na relação conjugal.

 

É, contudo, duvidoso que o divórcio ordenado pelo Papa tenha sido cumprido, tendo em conta o que resta da memória de D. Mécia. A castelhana nunca deixou de se intitular rainha e de ser tratada como tal, como provam diversos documentos em que outorga ou é mencionada depois de regressar a Castela[xviii].

 

No seu Rainhas de Portugal, apesar do desprezo com que trata a fatal biscainha, Benevides reproduziu um documento de 1246, que entretanto parece ter-se extraviado da Torre do Tombo, o único original em que outorgava como Rainha ainda em vida de D. Sancho II, com selo próprio – o primeiro selo de uma Rainha de Portugal[xix]. D. Mécia era, numa das faces, representada de corpo inteiro, com diadema na cabeça; na outra face do selo, as armas nacionais e em ambas a inscrição que sugere: “SIGILLUM DN MECIE REGIN PORT”.

 


Facsímile reproduzido por Francisco da Fonseca Benevides no seu Rainhas de Portugal, estudo historico, Tomo I, 1878. O documento, o único original em que D. Mécia outorgava como Rainha de Portugal em vida de D. Sancho II, parece ter-se extraviado da Torre do Tombo.

 

 

Cópia do selo da Rainha D. Mécia, reproduzido por Francisco da Fonseca Benevides no seu Rainhas de Portugal, estudo historico, Tomo I, 1878. O selo, como o documento em que estava aposto, parece ter-se extraviado da Torre do Tombo.

 

Uma escritura em que vende uma vila em Castela, em 1257, revela-nos que, quase dez anos depois da morte de D. Sancho, D. Mécia mantém um séquito significativo[xx], que incluía mordomo, capelães e clérigos, intendente, monteiro e alfaiate, que assinam como testemunhas. Revela-nos ainda que a posse da vila que era vendida, havia sido uma troca “que me dió el Rey don Alfonso en cam[io] con outras villas por Torres é por Oren é por los outros Castiellos de las mis Arras de portogal, que yo dí con todo(s) los mios derechos, que yo y avia é devia a[ver][xxi].

 

Fica a dúvida sobre que “Rey don Alfonso” lhe terá dado a vila em Castela, visto que tanto o Rei de Portugal como o Rei de Castela, à época, se chamavam Afonso: Afonso III de Portugal e Alfonso X de Castela. Terá Alfonso X (que auxiliou D. Sancho II, sem sucesso, na guerra civil) compensado a rainha exilada pela perda do dote português? Ou terá sido D. Afonso III que, querendo de volta os importantes castelos da cunhada, encontrou forma de a compensar com terras no reino vizinho? A referência da D. Mécia na escritura de que cedeu os castelos “com todos os seus direitos, que tinha e devia ter”, parece indicar no sentido do rei português. Herculano sugeriu “arranjos feitos entre as duas coroas” na sequência do casamento de D. Afonso III com D. Beatriz de Castela.

 


Primeira página da cópia do documento no Cartulário de Nájera onde os executores do testamento da “Reyna D.ª Mencía” instituem as capelanias e as missas “cada dia hasta la fin del Mundo” por alma da defunta.

 

Desconhece-se o conteúdo do testamento da Rainha D. Mécia, que terá morrido em 1271, mas infere-se de várias passagens das crónicas espanholas que terá deixado os seus bens ao herdeiro do trono de Castela, o Infante D. Fernando de la Cerda (cuja morte prematura, em 1275, iria complicar a sucessão de Alfonso X, como referido no texto sobre o Mosteiro das Huelgas de Burgos).

 

Conhecem-se ainda dois documentos, no Cartulário de Nájera, que mencionam a “Reyna D.ª Mencía”. Um é o testamento da irmã, em 1266, em que a consorte de D. Sancho II é referida diversas vezes como proprietária de imóveis em Nájera. O segundo documento é datado de 1275 e é a instituição da memória da Rainha no Mosteiro de Santa María la Real de Nájera pelos executores do seu testamento. Fundam-se quatro capelanias e ordenam-se missas pela sua alma “cada dia hasta la fin del Mundo”.

 

O mundo, está visto, ainda não acabou – não obstante as ameaças russas dos últimos tempos, que poderiam indicar que está para mais breve. Mas as missas por D. Mécia já não são rezadas há muito, esgotados os maravedis que as deviam pagar. Fica, contudo, partindo de Nájera, a memória desta biscainha, rainha de tempos conturbados, de beleza tão perturbadora que lhe chamaram feitiço, a primeira mulher fatal da nossa História de país independente, que desencaminhou um rei e o fez perder um reino. Descansa em paz, esperando as orações e as visitas do povo que lhe mostrou o caminho de regresso.

 

Ademar Vala Marques

Março 2022

 

(Fotografias de Janeiro 2022)

 

 

 

 



[i] Barrón García, Aurelio Á., “La galilea y el panteón real de Nájera: Juan Martínez de Mutio, Alonso Gallego y Arnao de Bruselas”, BSAA arte, 84 (2018).

[ii] FERNANDES, Hermenegildo, D. Sancho II, Círculo de Leitores, 2006.

[iii] A possibilidade de a IVª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra ser uma cópia de uma crónica anterior foi explorada por Filipe Alves Moreira em Afonso Henriques e a Primeira Crónica Portuguesa.

[iv] BARCELOS, Conde de, D. Pedro Afonso, Livro de Linhagens, in Portugaliae monumenta historica, Academia das Ciências de Lisboa, 1856.

[v] ZIERER, Adriana, Mécia, Matilde e Beatriz: Imagens Femininas Refletidas nas Rainhas de Portugal do Século XIII, Revista Mirabilia 3, Dezembro 2003; EFFGEN, Augusto Ricardo, A construção de modelos e contramodelos régios na obra de Fernão Lopes (século XV), Niterói, 2009.

[vi] PINA, Rui de,  Chronica do... principe D. Sancho II quarto Rey de Portugal, Lisboa Occidental : na officina Ferreyriana, 1728.

[vii] ALVES MOREIRA, Filipe, A Crónica de Portugal de 1419: Fontes, Estratégias e Posteridade, Faculdade de Letras do Porto, 2010.

[viii] Embora o feito heróico seja habitualmente atribuído a D. Mécia, há autores que referem ter sido a primeira mulher de D. Álvaro Perez de Castro, Condessa de Urgel, a defender o castelo de Martos. V. GUTIÉRREZ PÉREZ, José Carlos, El asedio de Martos por el rey Al-Ahmar y la defensa  de la condesa Aurembiaix de Urgel. Mito o realidade, 2011.

[ix] HERCULANO, Alexandre, Lendas e narrativas, Tomo II, Lisboa, Casa da Viúva Bertrand, 1858.

[x] HERCULANO, Alexandre, História de Portugal, Tomo Segundo, 1854.

[xi] FIGANIÈRE, Frederico Francisco de la, Memorias das Rainhas de Portugal, 1859.

[xii]

[xiii] O cancioneiro nacional dá uma visão muito próxima e crítica dos alcaides que traíram D. Sancho II e se bandearam para o lado de D. Afonso. Para uma descrição pormenorizada da trova “A lealdade da Bezerra pela Beira muito anda” v. SANTOS, Herlânder Gonçalves dos, D. SANCHO II - Da deposição à composição das fontes literárias dos séculos XIII e XIV, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009.

[xiv] BERGER, Elie, Les Registres d’Innocent IV, Paris, 1897. Alexandre Herculano também transcreveu a bula na sua História de Portugal, designadamente na nota que dedica a Mécia Lopez de Haro e em que se empenha longamente a rebater os argumentos daqueles que, no seguimento Fr. António Brandão, questionaram a existência do casamento entre D. Sancho e a biscainha. 

[xv] BARCELOS, Conde de, D. Pedro Afonso, Livro de Linhagens, in Portugaliae monumenta historica, Academia das Ciências de Lisboa, 1856. O relato completo: “E este Reymom Veegas de Portocarreyro suso dito seemdo vassallo del rrey dom Samcho Capello e seu naturall de Portugall veo huuma noite a Coymbra com companhas de Martim Gill de Soverosa , o que vemceo a lide do Porto , hu elrrey jazia dormindo em sa cama e filharomlhe a rrainha dona Miçia sa molher dapar delle e levaromna pera Ourem sem seu mandado e sem sa vontade. E quando o elrrey soube lamçou em pos elles e nom os pode alcamçar salvo em Ourem que era emlom muy forle e tiinhao a rrainha dona Miçia suso dita em Arras. E chegou elrrey hy e disselhe que lhe abrissem as portas ca era elrrey dom Samcho , hu elle levava seu preponto vestido de seus synaaes e seu escudo e seu pemdom ante ssy : e derom lhe muy gramdes sectadas e muy gramdes pedradas no seu escudo e no seu pendom , e assy se ouve ende a tornar.

[xvi] BENEVIDES, Francisco da Fonseca, Rainhas de Portugal, estudo historico, Tomo I, 1878.

[xvii] METELO DE SEIXAS, Miguel, Quinas e Castelos, sinais de Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019.

[xviii] Em 1898, o historiador e arqueólogo espanhol Miguel Fita y Colomé publicou no Boletim da Real Academia de História a transcrição de um conjunto de documentos até então inéditos sobre a Rainha D. Mécia. FITA Y COLOMÉ, Fidel, Doña Mencía, reina de Portugal. Documentos inéditosin: Boletín de la Real Academia de la Historia vol. 33, 1898.

[xix] Há notícia de um outro selo, usado pela Rainha depois da morte de D. Sancho, com armas de Haro e de Portugal. GUDIEL, Geronymo, Compendio de algunas historias de España, 1577.

[xx] Fernández, Luis, Colección Diplomática del Real Monasterio de Santa María de Benavides, Publicaciones de la Institución Tello Téllez de Meneses, n.º 20, 1959.

[xxi] O texto, citado por Fidel Fita y Colomé, continua com a enumeração dos castelos das arras: “Estos son los Castiellos de las mis Arras: Sintra, Ablantes, Penniella, Laymoso, Aguilar de sosa, Cellorico de basto, Linar[es], O[liv]era, N[emao], Faria, Çevera, Vermuy.