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domingo, 8 de dezembro de 2019

Asilo Político em Tempos de Salazar.



 
 

 
Apresentação de Asilo Político em Tempos de Salazar,
de Luís Bigotte Chorão
 
 
          Além de agradecer ao Autor a honra que me dá, uma vez mais, de vir falar no lançamento de um livro seu, é para mim difícil fugir à óbvia e previsível tirada de me proclamar, com o maior gosto, apresentador oficial dos livros do meu querido amigo Luís Bigotte Chorão.
 
          Espero que o Luís me dê o oneroso e operoso privilégio de continuar a apresentar os seus livros, o que, dado o ritmo e o volume da sua produção, se vai convertendo quase numa ocupação a tempo inteiro.
 
Mas essa carreira profissional de apresentador dos livros do Luís Bigotte Chorão, devo esclarecer os presentes, até porque entre a distinta audiência pode estar alguém da Autoridade Tributária, essa carreira profissional, dizia, é excepcionalmente remunerada – e a pronto – pela amizade de uma pessoa que todos nesta sala, e a quem saúdo, reconhecem como um cultor único, absolutamente único, daquilo a que Raïssa Maritain chamou, num livro hoje pouco lido, les grandes amitiés.
 
Dispenso-me de lhe fazer o retrato a sépia ou de tentar dar-vos sequer um esquisso tosco da personalidade do nosso Autor, que conhecem tão bem ou melhor do que eu, abstendo-me também de falar da sua produção pretérita, até porque não quero roubar o tempo nem esgotar a paciência dos presentes que vieram cá, obviamente, para ouvir o Dr. José Pacheco Pereira, a quem saúdo muito calorosamente.
 
Nas apresentações de livros – e falo, uma vez mais, como apresentador profissional ao serviço do Doutor Bigotte Chorão – há dois erros diametralmente opostos em que caem os apresentadores.
 
O primeiro erro que muitos apresentadores cometem é o de se tornarem arguidos, vendo no autor um catedrático arguente, e sentirem-se, portanto, na necessidade de, perante o autor e perante o auditório, fazerem a prova plena, por vezes a prova pleníssima, de que leram o livro de fio a pavio, que percorreram todas e cada uma das notas de rodapé, que compulsaram a bibliografia nacional e estrangeira, que atentaram nos dados surpreendentes trazidos pela obra. Pois bem, este livro tem uma tal abundância de informações novas, uma erudição de tal forma esmagadora, o autor, como é seu bom costume, fez um trabalho de tal forma exaustivo nos arquivos, no levantamento da bibliografia, até no contacto com protagonistas ou seus descendentes – como é o caso da família do embaixador Ernesto Pablo Mairal – que um apresentador fazer a prova de que leu este livro é uma tarefa muito árdua.
 
De todo o modo, e à cautela, e para vos poupar à maçada de relatar o muito que aprendi aqui, fiz questão de, numa longa conversa telefónica com o autor, na tarde do passado sábado, lhe ter apresentado, espero eu, provas concludentes de que o livro foi lido no muito que nos traz, como, por exemplo:
 
- uma importantíssima carta enviada por Salazar a Juscelino Kubitschek, e a resposta deste, não menos interessante, e, a par disso, outras provas do envolvimento pessoal e directo de Salazar em todo o processo (por exemplo, corrigindo uma importante carta do ministro Marcello Mathias para o embaixador argentino, de Março de 1959);
 
- a revelação da enigmática personalidade que Álvaro Lins trata com as iniciais L.C.F., e o papel do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira no apoio moral e amigo e até técnico-jurídico ao embaixador brasileiro, que era, ele próprio, convém dizê-lo um jurista de mérito, formado na prestigiada universidade do Recife;
 
- a correspondência trocada entre Álvaro Lins e Henrique Galvão, que demonstra até que ponto se dera em Lins uma transformação ideológica profundíssima (recordemos de onde vinha – e para onde foi!) e que para essa evolução a passagem por Lisboa foi o momento-chave – aliás, uma passagem pela capital de um país que sempre amou, ao contrário do que tentará dizer a propaganda salazarista;
 
- a desmontagem do mantra mirabolante de que teria havido uma concertação ou uma conjura entre os embaixadores brasileiro e argentino, mas ao mesmo tempo a consciência de que o apoio de Lins a Mairal foi essencial para este ter actuado como actuou após Henrique Galvão lhe ter pedido asilo;
 
- a percepção clara de que o asilo de Delgado e Galvão foi um momento de uma importância política crucial na evolução do regime, e que a partir daí nada seria como dantes; explicando melhor, e acho que esta é a razão pela qual este livro, talvez não parecendo (os mais desprevenidos julgarão, porventura, que este é um livro apenas sobre o asilo de Delgado e Galvão, esmagador nos pormenores, que encerrou definitivamente esta micro-questão), é um livro fundamental que dá um contributo decisivo e um impulso totalmente inovador para a compreensão da oposição ao salazarismo e para o diagnóstico do salazarismo naquela altura. E a questão é a seguinte: a historiografia deste período, ou se quisermos a historiografia das oposições ao Estado Novo, salienta, e bem, as eleições de 1958, o golpe da Sé (sobre o qual, pasme-se, não há ainda uma monografia!), etc., e o pedido de asilo de Delgado e Galvão, mas falando agora sobretudo de Delgado, é encarado como um intermezzo ou um fugaz percalço de chancelaria sobre o trânsito do General Sem Medo de Portugal para o Brasil, quase uma bizantinice jurídico-diplomática destituída de relevância política, um simples sobressalto episódico, que se arrastou por três meses, um pouco mais do que era devido, mas que no final se resolveu a contento de ambas as partes e, portanto, não é por aqui que passa o essencial do percurso biográfico ou político do general Delgado (ou do capitão Galvão). Ora, o que este livro mostra é que, muitas vezes na surdina das chancelarias ou dos corredores da diplomacia, no silêncio dos gabinetes perfumados, a questão do asilo de Delgado e de Galvão tem uma importância – uma importância política – essencial, fulcral, para compreendermos até, e não estou a exagerar, porque é que Humberto Delgado teve o fim trágico que teve às mãos de uma brigada da PIDE. E para compreendermos, de caminho, até que ponto a questão dos asilos se transformou num instrumento de fazer oposição ou uma saída de escape para a oposição que era feita. Até à publicação deste livro, e acreditem que não estou a exagerar por amizade ao autor, tudo isto esteve na penumbra por duas razões: a primeira, e mais óbvia, é que o essencial deste caso se jogou, como disse, em telegramas confidenciais, em cartas secretas ou muito reservadas, discretíssimos diálogos singulares, em discussões infindas sobre tecnicalidades jurídicas ou aspectos quase caricatos, como, por exemplo, o que resultou na saída do ex-candidato presidencial num táxi, da embaixada do Brasil. Em contraste com a estridência, ou com a estridência possível, da actividade oposicionista, tudo aqui se processou na suave penumbra das chancelarias ou dos chamados contactos ao «mais alto nível». E, por isso, o que sobra dessa memória está hoje soterrado em arquivos silenciosos, arquivado na memória de protagonistas extintos ou em vias de extinção, protegido pelo sigilo de Estado e pelas regras da civilidade diplomática. Esse é um dos motivos pelos quais a importância política deste caso permaneceu em larga medida na penumbra ou, pior ainda, esteve ensombrada por reminiscências que, por deliberada má fé ou erosão do tempo, acabam por contaminar uma leitura adequada dos acontecimentos, como sucede, por exemplo, com a afirmação de Franco Nogueira, que Luís Bigotte Chorão contesta, e bem, de que teria havido um grave desentendimento entre o embaixador Álvaro Lins e o general Humberto Delgado. Assim, o facto de a memória deste caso estar soterrada – e só agora ver a luz do dia na sua plenitude, ou na plenitude possível – torna este livro ainda mais valioso, pois a menorização deste episódio decorria, em larga medida, de ignorância dos factos, agora finalmente vencida.  O segundo motivo que leva, ou levava, à menorização dos asilos prende-se com uma visão historiográfica das oposições ao salazarismo que sobrevaloriza, por assim dizer, os grandes confrontos já conhecidos ou os confrontos que tenham uma dimensão pública notória e que tenham, se quisermos, causado escândalo e fragor, geralmente envolvendo um número elevado de pessoas (como a campanha de 58) ou de pessoas que, pela sua posição ou outras características (por exemplo, conspirações de militares), poderiam abalar o Estado Novo ou até mesmo, no limite, precipitar a sua queda.
 
 
 
 

Se quisermos, o estudo do oposicionismo tem estado concentrado (1) em grandes movimentos, legais, para-legais ou conspirativos; (2) em gestos com elevado potencial subversivo, como assaltos a bancos, desvios de aeronaves, de navios; (3) em acções de partidos, de movimentos, de grupos mais ou menos inorgânicos; (4) em momentos emblemáticos de grande simbolismo, que vão sendo alvo de um trabalho regular de rememoração ou comemoração por parte dos seus protagonistas ou afins. Ficam, portanto, de fora gestos protagonizados por indivíduos singulares ou isolados, que na aparência não têm um potencial subversivo muito elevado ou pelo menos comparável ao das acções colectivas, grupais ou tribais que acima enunciei.
 
Ora, é justamente o que sucede nos pedidos de asilo que são protagonizados por um homem solitário, um atirador isolado, um sniper que pede abrigo e amparo e, com isso, transfere o seu problema do nível mais micro (um indivíduo só) para o nível mais macro (as relações entre dois Estados soberanos no contexto internacional). Ou seja, não há níveis «meso», níveis intermédios, o tema do asilo passa da acção individual para a esfera geopolítica sem passar por fases ou escalões de mediação, como seriam os tribunais, o Estado, a sociedade civil, associações, grupos ou partidos, o que quer que seja.
 
É isso que confere ao asilo um potencial de dano infinitamente superior ao gesto ou ao poder de quem o pratica ou solicita, o asilo é uma bomba atómica fabricada e detonada por um homem só.    
 
Simplesmente, do ponto de vista historiográfico – e se a historiografia estiver muito concentrada, como está a nossa, no nível «meso», do Estado, dos partidos ou grupos, das igrejas, das organizações – esta dimensão letal, de David contra Golias, do asilo diplomático acaba por passar ao lado.
 
A par da ignorância ditada por aqui não existirem fontes muito sonoras, mas sim papéis confidenciais que só a paciência e o labor de pessoas como o Luís são capazes de resgatar, a par dessa ignorância há também um enviesamento cognitivo, digamos assim, da historiografia das oposições que leva a perder de vista o alcance, o tremendo alcance, de um caso como o destes dois asilos – e dos que se lhe seguiram.

 
 
- outro ponto que referiria, se tivesse de provar que li o livro de fio a pavio, é uma das imagens de marca do Luís Bigotte Chorão, a atenção aos aspectos jurídicos que, se num caso como este são fundamentais, como é óbvio, têm um valor importantíssimo para a reconstrução de redes de influência e movimentações ao mais alto nível do Estado e com uma influência que os historiadores – todos os nossos historiadores, à excepção do Luís Bigotte Chorão – têm desprezado ou, se quisermos, menosprezado. Existem, naturalmente, distintíssimos historiadores e distintíssimos historiadores do Direito, muito dos quais se encontram nesta audiência. O que escasseia é quem perceba a importância histórica e histórico-política não das leis ou de aspectos estritamente jurídicos (códigos, sentenças, etc) mas de dimensões ligadas ao periodismo jurídico (por exemplo, a composição das redacções das grandes revistas jurídicas e o que isso nos diz para a compreensão das teias e redes de elites), aos corpos universitários ou outros (e o Luís é um atento leitor das listagens de antiguidade dos magistrados, da composição dos corpos dirigentes da advocacia e demais profissões forenses, dos elencos dos órgãos universitários, etc. etc.), e, a par disso, de colóquios ou realizações ligadas ao ensino e à investigação do Direito e que à distância nos parecem de pouco alcance mas que na Lisboa paroquial de um país periférico dominado por juristas tinham uma importância enorme, que dificilmente poderá ser sobrevalorizada. Veja-se, por exemplo, e cá estou a demonstrar a leitura do livro, o modo como o Luís «descobre» a amizade entre Cavaleiro de Ferreira e Álvaro Lins através do colóquio Luso-Brasileira ou a importância do Congresso Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional, reunido em Madrid em 1951, e em que estiveram os mais eminentes jus-internacionalistas. Ou a importância dos textos que Marcelo Caetano escreveu sobre o asilo, bem como de um estudo – ou de dois, um deles permanece por descobrir – que o embaixador Carlos Fernandes dedica ao assunto.
 
– a propósito deste parecer do embaixador Carlos Fernandes, feito na sequência de um estudo que foi publicado na revista O Direito, não resisto a contar o seguinte: na conversa que tive com o Luís no passado sábado, em que ele me instruiu sobre os elogios que devia fazer à obra e sobre os pontos fracos que devia ocultar, nessa conversa às tantas envolvemo-nos numa discussão sobre a probabilidade de o famoso parecer do embaixador Carlos Fernandes não ter existido e de ser, porventura, um lapso de memória do diplomata, pois o facto é que o famigerado parecer não aparece em lado nenhum. Estávamos a trocar argumentos e contra-argumentos, falando de um livro do embaixador (Recordando o Caso Delgado e Outros Casos), e, às tantas, ao fim de alguns minutos eu digo ao Luís - «se alguém estiver a escutar esta conversa sobre um parecer com dezenas de anos de um embaixador, uma conversa entre dois sujeitos de meia-idade, um eminente jurista do Banco de Portugal, outro um modesto servidor da Presidência da República, se alguém, ou serviço secreto ou assim, estivesse a escutar esta conversa a meio de um sábado à tarde chuvoso que pensaria?, perguntei eu. Respondeu o meu querido Luís, de imediato: «dois tarados!»
 
Pois é esta insanidade dos papéis, esta insanidade feliz dos papéis, que faz a delícia e é o traço distintivo da historiografia de Luís Bigotte Chorão, atrevendo-me eu a dizer – e o Dr. Pacheco Pereira perdoar-me-á – que hoje têm diante de vós um trio de tarados dos papéis velhos dos quais, se permitem, eu sou o menos qualificado e, logo, o menos tarado de todos.
 
Já agora, e um pouco a talhe de foice, ou como diria o jurista Luís a latere, eu geralmente orgulho-me da dimensão quilométrica da minha biblioteca, mas hoje encontro-me aqui um pouco esmagado e entalado entre duas das maiores bibliotecas privadas do país, quase me apetecendo lembrar a anedota que se contava de Ronald Reagan, creio que era dele, de que tinha apenas dois livros na biblioteca e um deles já tinha acabado de colorir...
 


 
Mas, enfim, desculpem, regresso a temas sérios, porque o livro, além do mais, é um livro de enorme seriedade intelectual.
 
E, por isso, perante esse livro eu poderia cometer o outro grande pecado dos apresentadores. O primeiro como vimos, é quando o apresentador toma as vestes de arguido perante o autor-arguente e sente a obrigação de fazer a prova, a prova diabólica, de que leu o livro. O segundo pecado é o oposto, é quando o apresentador enverga as vestes doutorais de arguente e coloca o autor á prova, esquadrinhando as falhas, as omissões, até as gralhas, os defeitos de tipografia. A propósito de gralhas e erros de escrita, seja-me permitido, já agora, contar uma petite histoire, creio que verídica e creio que passada com o Professor Adelino da Palma Carlos, julgo que no seu doutoramento, mas o Luís corrigir-me-á. Na sua discussão de doutoramento, perante um catedrático que não parava de apontar ao candidato as gralhas da sua tese terá o Adelino Palma Carlos objectado, com a corajosa frontalidade que muitos de nós conhecemos, que estava ali a fazer exame para professor de Direito e não para revisor da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 
   
Portanto, e porque o Luís não está a prestar provas académicas nem a fazer exame para revisor da Casa da Moeda, e, já agora, porque se dá a feliz coincidência de, dos três membros desta mesa, nenhum ser historiador académico, não irei cometer o segundo erro dos apresentadores, o de se figurarem desastradamente como arguentes universitários.
 
Mas cometerei, e assumidamente, o terceiro erro, o erro maior e mais grave das apresentações de livros, que é o que ocorre quando o apresentador não fala do livro que está escrito e publicado, pronto a ser comprado e assinado no final da cerimónia, mas fala antes de um livro-outro, o livro que o apresentador gostaria que o autor escrevesse ou, pior ainda, o livro que o apresentador gostaria de ter escrito mas não escreveu, nem nunca seria capaz de escrever.

 

 
Não vou, como é evidente, dizer o que não está no livro mas deveria estar, não é nada disso, mas apenas apresentar alguns tópicos muito sumários e telegráficos sobre coisas em que me pus a pensar a partir da leitura do livro do Luís e que, como é óbvio, são reflexões sem qualquer sentido.
 
1 – A primeira tem um pouco a ver com a leitura que fiz do último livro de Jared Diamond, Como se Renovam as Nações, e uma recensão que publiquei sobre ele a semana passada no Público.
 
O livro de Diamond – e, antes e melhor do que eu, esse problema foi notado há um par de semanas por Niall Ferguson no Times Litterary Supplement – o livro de Diamond faz uma analogia um pouco excessiva entre comportamentos individuais e comportamentos colectivos, estaduais ou nacionais, e resvala num certo antropomorfismo que, como sabem, marcou muito as noções de corpo da nação, etc.  A dado passo, Jared Diamond quase chega, ou chega mesmo, a dar conselhos de autoajuda ou de coaching para as nações em crise, dizendo que devem ser resilientes, autoconfiantes e algo do género.
 
Pois o livro do Luís Bigotte Chorão não comete obviamente este erro, eu é que o vou cometer – como disse, as minhas reflexões são muito desastradas – ao ligar a questão do asilo, acima de tudo, a uma questão de honra, de honra nacional e de honra individual, da honra dos protagonistas e dos intervenientes.
 
Esta é a tal dinâmica David e Golias a que atrás me referi. Um indivíduo solitário, mesmo que apoiado por uma organização mais ou menos vasta, assim, que entra numa embaixada e pede socorro sob a forma de asilo está a abrir um problema de honra internacional – e o direito internacional, juridicamente precário, com uma codificação incipiente, com poucas leis unanimemente aceites e de escassa força vinculativa (por exemplo, sobre o asilo, em que havia uma «tradição» sul-americana diversa da «tradição» europeia e em que se buscaram afanosamente «precedentes», exaustivamente recenseados neste livro como o dos integralistas brasileiros e o embaixador Martinho Nobre de Melo, o que permitirá ao autor, como  desejamos, escrever em breve uma obra sobre os asilos diplomáticos no século XX português), o direito e as relações internacionais são muito feitos à base da imagem, da reputação, da honra de cada Estado soberano, e, ao longo dos séculos, é isso que tem alimentado as guerras e feito milhões de mortos, o pundonor nacional.
 
Um indivíduo que pede asilo cria um problema tão grande ou maior ao país anfitrião do que ao Estado de onde está a fugir. Pela simples razão de que, com o seu gesto, coloca duas honras nacionais em disputa e abre, portanto, uma guerra, mas uma guerra travada dentro do território do seu país. E aqui até poderíamos inverter os termos da célebre fase de Clausewitz, dizendo que não é tanto a guerra que é a continuação da política por outros meios, mas a diplomacia que se torna a substituição da guerra por outros meios, tentando remendar ou reparar o orgulho ferido de uma nação – que vê o seu cidadão pedir o refúgio não de uma ONG ou de uma igreja mas de outra nação.
 
A partir daí, a partir desse momento, todo o relacionamento bilateral entre os Estados – tudo, pescas, comércio, cooperação militar, visitas oficiais, como a de Kubitschek a Lisboa – tudo, mas tudo, passa a ser feito em torno e à luz do caso do cidadão A ou B, chame-se Humberto Delgado ou Julien Assange, que colocou um pauzinho na engrenagem, como dizia a música de 1972 do José Mário Branco. Depois de resolvida a questão, num sentido ou noutro, há cerimónias e gestos reparadores, como o convite a Juscelino nas comemorações do quinto centenário do Infante, proclamações de eterna amizade, banquetes, trocas de condecorações, mas as feridas demoram a sarar e fica um espinho encravado ou um pauzinho na engrenagem durante muito tempo.
 
Aprofundando um pouco este meu exercício de psicologia barata, há um livrinho hoje esquecido, e provavelmente justamente esquecido, que se chama Games People Play, precisamente sobre os jogos nos relacionamentos interpessoais, amorosos, entre pais e filhos, com figuras de autoridade, nestas liturgias das apresentações de livros, etc., etc.
 

 
E eu pus-me a reler o livro do Luís um pouco nesta perspectiva da honra, do ultraje, dos jogos e artifícios, das encenações e ritos que são gerados em torno do pundonor nacional e há coisas que são, de facto, muito curiosas e até nos permitem ler o livro do Luís sob um novo olhar. Por exemplo, é muito típica a reacção de menorização do caso, tratado como um «incidente», justamente para tentar minimizar o seu impacto na honra nacional. Porque o asilo, sendo um acto solitário, é um gesto público, amplamente publicitado, um psicodrama que se desenrola a um tempo no silêncio das chancelarias mas, a outro tempo, sob os holofotes da imprensa e dos noticiários. Mesmo que num dos Estados envolvidos haja censura à imprensa, os ecos do outro lado, do que se passa no outro Estado, acabam por se disseminar, bem como o efeito bombástico em fóruns ou areópagos internacionais. É aí que se cria, e uma vez mais cá estamos num domínio bélico e psicológico, uma comunidade de inimizade ou, melhor dizendo, duas comunidades ou fraternidades, alinhando uns Estados a favor de uma nação, outros a favor da outra, para não falar das respectivas opiniões públicas. Este era um ponto essencial para o modo de fazer oposição no pós-guerra, com uma permanente busca da atenção da opinião pública internacional para a ditadura portuguesa e com a tentativa de trazer a Portugal nomes influentes como Aneurin Bevan, Pierre Mendès France, Joe Grimond. Também qui, no caso do asilo de Delgado, há uma intervenção externa, a da Comissão Internacional de Juristas e de Norman Marsh, e igualmente do escritor Erico Veríssimo, vindo a Lisboa onde se encontrou com as notabilidades culturais da oposição, mas o que me parece curioso, a menos que tenha sido erro meu de percepção, é que os Estados Unidos, que pouco antes haviam manifestado interesse na situação do general, depois não pareçam acompanhar o caso com muita intensidade.
 
Note-se que, sem haver propriamente uma combinação prévia, ao contrário do que quis fazer crer a propaganda, o Brasil e a Argentina se articularam através dos seus embaixadores. E Estados que estavam á margem, e até aí estavam silenciosos ou passivos, passam a intervir, a favor de um beligerante ou de outro (veja-se a posição do México ou da Guatemala sobre o memorando das Necessidades de Maio de 1959) – ou, tentando explorar uma oportuna «terceira via», procuram capitalizar alguma coisa para si e para a sua honra ou reputação, oferecendo-se como mediadores ou árbitros, na convicção correcta de que um mediador, por se situar numa posição supra partes, em termos de honra ou prestígio fica sempre acima dos dois beligerantes.
 
A propósito desta questão da honra ultrajada do Estado, neste caso do Estado português, na nossa conversa de sábado intuí talvez uma pequena divergência na leitura que eu e o Luís, ou melhor, que o Luís ou eu fazemos, mas não é uma questão de honra, garanto.
 
O Luís entende que o regime e Salazar caíram na cilada e, estupidamente, em vez de resolverem a questão Delgado em 48 horas, como pretendia o embaixador do Brasil, em vez de esvaziarem o balão e matarem a questão à nascença, por inércia e outras razões deixaram que o problema se avolumasse – e, de facto, nesta questão da gestão do asilo os timings são fundamentais, havendo quase sempre dois tempos – ou tudo se resolve em dias ou em numa semana, como os sequestros (e o asilo tem muito de sequestro…) ou então os peticionários ficam a apodrecer nas representações diplomáticas meses ou anos. Porquê? Uma vez mais, por orgulho e enquistamento para evitar perder a face, que o mesmo é dizer, hipotecar a honra.         
 
A minha pequena divergência com o Luís é que eu acho que esta leitura, a da resolução em 48 horas do caso Delgado, assenta num wishful thinking retroactivo ou retrospectivo e será talvez um pouco contaminada pela admiração que o Luís tem pelo embaixador Álvaro Lins e pelo desprezo que nutre por Oliveira Salazar. No fundo, e desculpar-me-ás, resolver a questão em 48 horas é o que tu achas, e muito bem (e que Paulo Cunha também achava), que teria sido mais inteligente fazer, essa era o modo como tu, Luís, um cavalheiro dialogante e pouco dado a melindres, terias resolvido o caso, uma vez mais, como é teu timbre, com inteligência e com aquilo que é muito mais raro do que a inteligência, o bom senso. É indubitável, aliás, que o arrastamento do processo não impediu que, depois, por um efeito mimético ou de contágio tenha existido uma vaga de asilados, que o livro muito bem descreve.
 
E aqui se vê, com alegria, que as personalidades do doutor Bigotte Chorão e do doutor Oliveira Salazar são muito diferentes, graças a Deus. Sem entrar ainda mais em psicologismos de café, o que se passa é que o entendimento que Oliveira Salazar tinha de honra nacional – e da sua honra pessoal, irmanada à da nação portuguesa – não se compadecia com um pragmatismo desse tipo.

 

 
Salazar terá sido dos dirigentes políticos mais pragmáticos da nossa História, mas o seu pragmatismo situava-se na defesa dos interesses pessoais, quando conciliam com os da nação (a neutralidade da 2ª Guerra era boa para Portugal porque, acima de tudo, era boa para a sobrevivência política do ditador em qualquer dos cenários). Aqui, no caso Delgado, e por se tratar de Delgado, estava ferida a honra de Portugal, mas também, ou primordialmente, a honra do Presidente do Conselho – e talvez isso nos ajude a iluminar o fim trágico do general, mas isso são contas de outro rosário.
 
Tento explicar-me: a concepção de honra nacional/pessoal de Salazar levou-o a actuar como actuou na questão de Goa, punindo o general Vassalo e Silva e os que não aceitaram oferecer-se em sacrifício pela pátria desonrada. Num regime que segregava décadas de nacionalismo a questão da honra colocava-se de uma forma muito específica, e, neste caso, ainda mais específica pois estava em causa o Brasil, com o qual tínhamos, muito mais do que hoje, uma relação que era próxima, mas também edipiana ou esquizofrénica, nos dois sentidos. O Brasil com uma significativa e influente colónia portuguesa, o Brasil – e esse ponto é decisivo – que passou a ser um actor de primeiro plano na questão da Índia, o que obriga Salazar a despir por momentos a farda, fardão do orgulho e da honra e a envergar com humildade as vestes do pragmatismo e a escrever a Juscelino Kubitschek – uma carta, como sempre, notável na sua forma e no seu estilo.
 
É a honra própria de uma nação, de uma comunidade de destino multissecular, ou assim imaginada e projectada, que leva ao orgulhosamente sós e que explica, em larga medida, a continuação por 13 anos de uma guerra colonial contra mundum, e quando dizem que Marcello Caetano recuou nos sonhos autonomistas por ter ido a Africa ou por ter sentido o vibrante apelo da população branca uma vez mais é o lado emocional da honra que avulta, pois, a par de considerações sobre o destino dos portugueses em África, Marcello sentia o frémito de uma honra construída por oito séculos de História que, de resto, ele conhecia como poucos. E, mais ainda, sentia o peso da honra imaculada que lhe fora legada pelo seu antecessor, que morrera com Angola ainda nossa. Marcello Caetano não quis ficar com a desonra, para o País e para ele próprio, de ser, como mais tarde lhe chamou a extrema-direita no pós-25 de Abril, o «coveiro do Império». No fundo, e em poucas palavras, no seu estertor, na sua agonia, o Estado Novo acabou por ser vítima da mitologia que ele próprio criou e segregou durante quase cinco décadas. Dirão os cépticos que estou a exagerar, que todos os Estados têm o seu conceito de honra e todos se comportam mais ou menos da mesma maneira. Concordo, em parte, mas permito-me acrescentar que a honra nacional autocrática e que a honra de um regime com um ADN nacionalista têm um conteúdo muito particular e que não eram muitos os Estados em que um governante carregava sobre os seus concidadãos, de uma forma tão vincada, a memória da honra pretérita, dizendo-lhes que só havia um motivo para chorar os mortos, que era não saber merecê-los, não estar à altura da sua honra, da sua honra sacrificial, tanto mais gloriosa quanto tombada e caída em combate.  
 
Desculpem se estou a perder muito tempo e a forçar esta nota da honra, mas ela é importante para perceber que não era só a honra nacional a estar envolvida mas também a honra de duas personalidades, digamos, agrestes, Humberto Delgado e Henrique Galvão, imensamente atreitos, até por formação e ética castrenses, a melindres e querelas de honra.
 
E, já agora, o asilo também coloca questões de honra – e a vida diplomática, tanto ou mais do que a vida militar, assenta muitíssimo nelas – dos embaixadores envolvidos. Daí ser fundamental, para compreendermos o espaço cénico onde estamos e o teatro que diante de nossos olhos se desenrola, daí ser fundamental conhecer a personalidade dos actores, e o livro, até por isso, merece ser louvado, pois percebe que numa questão como esta as questões pessoais ou psicológicas têm um papel decisivo, nuclear.
 
          É justamente por isso que, para usar uma expressão do livro, creio que consagrada também na prática diplomática, se tiveram de abrir «canais alternativos». Justamente para salvaguardar a honra dos diplomatas acreditados em Lisboa ou para fazê-los, digamos assim, e usando uma vez mais linguagem dramatúrgica, fazer sair de cena sem grandes custos para o seu prestígio. É por isso que a dado passo começam a ter intervenção decisiva os ministros dos negócios estrangeiros e o embaixador de Portugal no Brasil. Havendo, ainda assim – e, uma vez mais por uma questão de honra – de evitar que os canais alternativos não ofendessem o embaixador em Lisboa. Daí as proclamações reiteradas de que o embaixador Lins liderava o processo, tinha a confiança do seu governo, mesmo que depois as coisas no fossem exactamente assim (e é curioso que esse aval ao embaixador foi dado logo no início do caso pelo ministro Negrão de Lima, com a concordância do embaixador português no Rio). Na abertura de canais paralelos havia que proceder com cautela, para não fazer o embaixador perder a face nem para lhe causar melindres, o que, de certo modo, veio a acontecer com Lins. Em todo o caso, havia que manter a fachada e aparência de que dera ele que controlava as coisas, pois é disso que se faz, ou é também disso que se faz, aquilo a que Lawrence Durrell chamou cenas da vida diplomática.
 
Por tudo isto, e em suma, creio que dificilmente as coisas se poderiam ter processado de outra forma e de uma forma mais célere, pois a gestão e a digestão da honra exigiam impasses, compassos de espera, enquistamentos em querelas quase caricatas, mas que quando a honra está envolvida têm um valor substantivo e supremo, avanços e recuos, tudo para no final se chegar à solução que bem poderia ter sido resolvida em 48 horas se imperasse a racionalidade. Só que, quando o que está em causa a honra, não é a racionalidade que impera, mas, isso sim, a irracionalidade das paixões e dos orgulhos feridos. A psicologia da negociação é, de facto, uma filigrana ou uma ourivesaria muito complicada.
 
2 – Uma outra coisa em que me pus a pensar, e um pouco relacionada com a questão da honra nacional, é a seguinte: a concessão de um pedido de asilo é sempre um ultraje ao outro Estado porque, explícita ou implicitamente, envolve a declaração de que esse Estado não é um Estado de direito, ou não é uma democracia ou não é um regime que salvaguarde sequer a segurança dos seus nacionais.
 
          Se isso é visível no caso Delgado, torna-se ainda mais patente no caso Galvão. O regime afirmou repetidamente – e bem – que os dois casos eram distintos, como de facto eram, pois sobre Delgado nada impendia enquanto Galvão tinha sido condenado e apresentara-se na Avenida João Crisóstomo depois de uma rocambolesca fuga do Hospital de Santa Maria, cujos contornos nebulosos ou de tão inusitados nos fazem suspeitar ter havido alguma cumplicidade das autoridades, ou de algumas autoridades. É um pouco a ideia do Luís como me disse, e creio que não comento uma inconfidência, pois é também um pouco a minha e sobre isso o Ico Teixeira da Mota poderá esclarecer-nos melhor, mas a carta de Neves Graça, da PIDE, ao ministro da Justiça, de Novembro de 1958, e aqui publicada, é muito sugestiva.
 




 
          Galvão era um foragido à justiça, que para mais escrevera coisas bombásticas, literal e deliciosamente bombásticas, contra Salazar e, cá estamos de novo a usar esta palavra, contra a honra pessoal de Salazar, contra o seu orgulho e preconceito.
         
Note-se como emerge aqui um estranho e singularíssimo bouleversement, que, na perspectiva da imagem e do prestígio do regime de Salazar, aproxima tudo isto já não tanto de um simples bouleversement mas até mesmo de um conceito muito mais trágico e germânico, o conceito de Ernstfall, de emergência catastrófica.
         
          E o bouleversement é este: o mais importante da dupla, era o general que tinha sido o candidato presidencial, não era o capitão que escrevia livros sobre bichos e que fora comissário de uma exposição colonial e que em 1946 fizera um estrondoso aviso prévio sobre o trabalho forçado nas colónias. Mas é sobre Delgado, só sobre ele, que o governo português tenta serenar a Casa Branca, através do embaixador em Washington, Luís Fernandes, antes mesmo de o general, que estivera na América, pedir asilo aos brasileiros. 
 



 
          Simplesmente, e aqui voltamos ao David e Golias (ou àquela imagem extraordinária do homem sozinho frente aos tanques de Tiananmen), o David-Galvão contra o Golias-Estado Novo era um foragido à justiça e daí que permitir a sua ida para a Argentina seria pôr em causa a honra do poder político, mas também do poder judicial e mais do que isso, muito mais do que isso, implicaria admitir que Portugal, ao contrário do que fazia crer, e que era uma marca da sua honra perante o mundo ocidental do pós-guerra, não era um Estado de direito nem um regime respeitador dos direitos, liberdades e garantias. Deixar partir Delgado era deixar partir um dissidente, um dissidente trovejante, mas um dissidente. Deixar partir Galvão significava dizer que as suas condenações em sucessivas instâncias eram tão iníquas como os julgamentos-espectáculo ou julgamentos-fantoches da URSS de Estaline e dos seus países satélites. O livro termina, aliás, com uma citação do diário de Josué Montello em que se traça um paralelo entre a Rússia da «implacabilidade da polícia de Stalin, prendendo, matando, enterrando», por um lado, e,. por outro, o «meu querido Portugal», onde se ouvia o «gemido dos presos políticos» nas imediações da embaixada do Brasil, recordando Montello o nome de Álvaro Lins, um amigo com quem se desentendera e reconciliara.
 
          É que aqui, e prometo que é a última vez que uso a palavra honra, colocava-se também uma peculiar questão de honra, a honra da Guerra Fria, em que os dois blocos, não podendo digladiar-se directamente e à bomba, à bomba atómica, se envolviam em controvérsias de honra por todo o planeta – e a propaganda deste lado da Cortina de Ferro insistia, vezes sem conta, que o lado de lá não respeitava os direitos humanos.
 
          Portugal tornava-se assim o parente incómodo do bloco NATO, abria uma brecha nas muralhas do humanismo ocidental, e talvez eu esteja a exagerar e a levar longe de mais estas minhas congeminações, mas veja-se o que desperta, a um nível macro, o caso de um cidadão isolado. Não estou com isto a dizer que Galvão tenha sido um daqueles casos isolados que marcam a Guerra Fria, como o Soljenitsine ou o Vladimir Bukovski, que morreu há pouco, ainda que por cá pouco se tenha notado, até em termos mediáticos ou no frenesi parlamentar dos votos de pesar. Mas li há uns tempos a grande e monumental biografia do Nureyev da Julie Kavanagh – e realmente a importância que teve a fuga dele em Paris – uma coisa muito parecida com o asilo – é enorme, como tive ocasião de escrever há umas semanas numa crónica no Diário de Notícias.
 



 
          Henrique Galvão era um homem de muitos bailados, mas não era um Rudolf Nureyev, e o que eu pretendo dizer é que a ferida que abriu foi, num certo sentido, mais funda do que a de Delgado, bem mais funda do que julgamos.
 
          Daí que o regime, inclusiva por via de porta-vozes oficiosos como Marcello Caetano, tenha insistido vezes sem conta que Galvão fora condenado num processo justo por tribunais comuns, e, claro, que os partidários do capitão tenham dito que os tribunais que o condenaram eram, e cito, «tribunais fantasma».
 
          Ora, num Estado Novo obcecado pela imagem – pela imagem honrosa, desculpem… – pela sua imagem honrosa de legalismo nas formas e nos procedimentos, num regime que, a bem ou mal, sempre realizou eleições nos prazos impostos pela Constituição, o caso Galvão era muito mais afrontoso do que o caso Delgado, remetido este para meras considerações de divergência política.
 
          Tudo isto era um espelho e um reflexo do Estado Novo ou, se quisermos, tudo isto envolvia a imagem que o regime projectava não apenas no mundo bipolar da Guerra Fria, mas também para consumo interno, para tranquilizar a consciência dos conformistas e manter a sanidade da ordem pública.
 
          Até aqui, e realmente era uma personalidade diabólica…, Galvão se mostrava o mais subversivo dos subversivos, um homem capaz de subverter até as mais elementares regras de cortesia e civilidade, que teve a ventura de ser acolhido para a Argentina e que, a caminho para esse país, ao fazer escala no Brasil, disse à imprensa que onde gostaria de ficar era no país-irmão, rumando contrafeito para o Estado que generosamente o recebera… Não muito depois de se fixar nas pampas, já está a chamar à Argentina «um país de loucos».
 
          E é a irrequietude de Galvão, o seu desejo de ir para o Brasil, que começa a criar problemas na Argentina, como o livro mostra. Porque um asilado nunca deixa de o ser, ou seja, mesmo após ter desembarcado na Argentina Galvão continuava a ser um «problema». Possivelmente, problema maior até do que quando estava cá, pois agora escapava ao controlo das autoridades e da polícia política – uma polícia política que não hesitava sequer em ter sob escuta embaixadores de países estrangeiros, ouvindo as conversas de Lins com Assis Chateaubriand, uma polícia política que matava gente na sua sede, tendo sido a visão de uma morte na António Maria Cardoso, o suicídio de Raul Alves, presenciado por Heloísa Lins, que provocou o horror da mulher do embaixador Lins e uma corajosa intervenção de Gonçalves Cerejeira junto de Trigo de Negreiros (uma intervenção não tão corajosa como a da carta do bispo do Porto, que abalara o país por aquela altura, mas ainda assim uma intervenção frontal e digna de realce, até por não ser a única do Patriarca). Não quero exagerar, mas na trajectória de Lins – que, como nos recorda o Luís, acabou a acolher em casa um Carlos Marighella foragido e ferido à bala –  na trajectória de Lins o episódio passado com a sua mulher foi decisivo, talvez mesmo aquilo a que o fez mudar tão drástica e sobretudo tão rapidamente. Os italianos chamam a isto irruzione, dificilmente traduzível por irrupção, um acontecimento vulcânico, radicalmente transformador, e um homem que utilizou brilhantemente o conceito de irrupção, de Einbruch, foi Carl Schmitt naquele seu escrito sobre Hamlet ou Hécuba, ao qual já dediquei umas dezenas ou centenas de insanas páginas, mas, como dizia, creio que não é descabido pensar que a Einbruch anti-salazarista do embaixador Álvaro Lins foi o episódio presenciado por sua mulher Heloísa.
 
Repare-se na velocidade vertiginosa dessa irrupção: em 1957 Lins recebe a Ordem de Cristo e três anos depois, em 1960, já está a devolvê-la em termos cáusticos ao embaixador Manuel Rocheta, e a abandonar a diplomacia e a romper com Juscelino. 
 
          3 – Um último ponto que gostava de abordar telegraficamente – e desculpem, mas o Luís fez o hara-kiri de me dizer «tu tens o tempo que quiseres…» - prende-se com o paralelismo entre o asilo e o sequestro, e com aquilo que atrás referi da psicologia da negociação.
 
A leitura, há muitos anos, do livro A Sombra, de Pacheco Pereira, levou-me a ler um livro apaixonante, aí citado, que é Secrets, de Sissela Bok, filha de Gunnar e Ava Myrdal, um livro extraordinário sobre a ética do segredo e da revelação.
 
O asilo apela, como poucos, para esta ética de segredo e revelação. Porque convoca, no interior aveludado de uma embaixada, na discrição de uma representação diplomática, segredos vários, o sigilo dos Estados e da sua arcanna praxis, o segredo da raison d’État que levou Portugal a negar o asilo na metrópole enquanto o concedia nas lonjuras de Timor, o segredo e o silencioso drama do ser humano que pede refúgio, e a quem as regras e as praxes do asilo impõe a incomunicabilidade de sofrimento, mas também o resguardo da tensão dos diplomatas e dos protagonistas políticos, que têm de contactar-se e dialogar mantendo as aparências de normalidade numa situação que tem tudo menos de normal e que todos aspiram seja resolvida o mais brevemente possível. Os embaixadores e os adidos têm de manter-se imperturbáveis e fleumáticos, mesmo quando se encontram num impasse de enorme tensão, e precisamente porque se encontram num tempo suspenso de enorme tensão. E é aí, nesses momentos, que a dignidade e a gravitas do Estado soberano têm de ser preservadas ao máximo, na sua expressão mais majestosa, sereníssima.
 
Sobre os processos de negociação em casos como estes, ou em situações de sequestro e rapto, têm sido escritas bibliotecas inteiras, porventura bibliotecas maiores do que as livrarias privadas de Luís Bigotte Chorão ou de José Pacheco Pereira.
 
Muito se fala da síndrome de Estocolmo, em que o sequestrado se identifica com o seu raptor, mas será talvez mais perturbador ainda pensarmos que essa síndrome funciona num duplo sentido, e que a compaixão do sequestrador tantas vezes se comunica ao sequestrado, mesmo que não seja capaz de o resgatar ou salvar de um destino marcado.
 
O que me assombrou foi ver o modo como, neste caso dos asilos de Galvão e Delgado, a síndrome de Estocolmo actuou justamente nesse sentido, e é extraordinário ver a compaixão e a paixão do embaixador pelo destino daqueles dois homens efémeros, dois militares inflamados, intrépidos, à mercê do seu país sombrio, vivendo o pior dos exílios, o exílio na própria pátria, sequestrados por uma ditadura que sequestrara um povo inteiro. A carta que Lins escreve a Galvão, oferecendo-lhe a sua ajuda, tratando-o por «mártir» e «herói» exprime, também ela, um peculiar conceito de honra, mesclado com sentimentos de piedade cristã a que a formação de Lins não era alheia. Como é evidente, e ao contrário do que ventilou o regime, Lins não era um homem psicologicamente desequilibrado, mas o facto é que a síndrome de Estocolmo se inverteu, em certo sentido, e agora era ele que pedia asilo a Galvão, que se sentia sequestrado e aprisionado na sua impotência para ajudar mais aqueles que via agora como seus camaradas de armas.
 
Intersectado por «factores emocionais de extrema sensibilidade», como escreveu Juscelino a Salazar, tudo se processa, pois, num denso jogo de sentimentos, e, nas entrelinhas, o livro capta de forma luminosa essa dimensão humana e o rendilhado emocional que foi, ao cabo e ao resto, o elemento decisivo e fulcral de todo este caso, do primeiro ao último minuto deste drama.
 
E é também um jogo de sentimentos que aqui nos trouxe hoje, aqui, neste final de tarde de Dezembro, que nos trouxe aqui para felicitar e abraçar o autor por mais um livro seu, uma obra de enorme envergadura intelectual que é produto da razão mas também – não duvidem! –  da terna e imensa emoção que o meu querido Luís coloca em tudo que é seu – e que, a partir de agora, passa também a ser nosso.
 
Muito obrigado.