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Na
capa da revista do jornal Sol (01.03.2013)
anuncia-se mais uma entrevista com João Tordo, a propósito do seu último
romance: «Hoje até o pasteleiro escreve livros». No interior, verifica-se que
não foi bem isto que Tordo Jr. afirmou, mas o sentido anda lá muito perto. Com
seis títulos no mercado, João Tordo considera-se um escritor ou, nas suas
palavras, «um autor dos anos 2000». Que tem publicado livros, disso ninguém
duvida. Mais até, decidiu fazer da escrita uma profissão. Aliás, é como uma
actividade profissional que Tordo pretende que a escrita seja exercida – e, já
agora, protegida. Trata-se de uma profissão dura e madrasta, esta das letras.
Ao contrário do que acontecia antigamente, hoje em dia os praticantes deste
ofício não têm sequer tempo para conviver entre si. «Temos vidas diferentes e
com esta profissionalização da carreira viajamos muito. Vemo-nos nos encontros
de escritores. Tenho pena de que a boémia entre escritores tenha desaparecido.
Já não há partilha de ideias e não há zangas. Tenho poucos amigos escritores». Apesar
disso, refere: «conheço todos os prémios Saramago, excepto o Paulo José
Miranda».
A seguir, evoca com nostalgia a geração
de Cardoso Pires, Lobo Antunes e Saramago, escritores que – esclarece-nos Tordo
– «não têm estilos iguais». Bons tempos, esses. «Nesses tempos, os escritores
tinham a benesse de não ter de competir com a porcaria toda que se anda a
vender. Hoje parece que todos são escritores: da apresentadora de televisão ao
gajo dos blogues, ao pasteleiro. É um disparate. Eu não me vou meter na
profissão dos outros. O excesso de produtividade editorial que marcou os anos
90 e estes últimos anos tem de parar».
Eis, portanto, João Tordo, o artesão
das palavras, a afirmar que, nos belos tempos de José Saramago e Cardoso Pires,
estes gozavam da «benesse» de não terem que competir com pasteleiros ou apresentadores
de televisão. «Eu não me vou meter na profissão dos outros». Ficamos portanto com a
tranquila garantia de que Tordo-escritor nunca será Tordo-pasteleiro, por muitos
pastelões que produza. Em contrapartida, crê-se que o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Centro (STIHTRSC)
deveria dar instruções estritas aos seus associados para que não escrevam nada, mesmo fora das horas de expediente. O escritor premiado não aprecia a
concorrência desleal dos fabricantes de bolas com creme. Há mesmo, segundo ele,
um «excesso de produtividade editorial» e esse excesso, sendo excessivo, «tem
de parar». Como?
Bem, em primeiro lugar convém
esclarecer este jovem «autor dos anos 2000» que Torga e Agustina também tiveram
de competir com novelas cor-de-rosa ou com O
Livro de Pantagruel – e, ao menos, tiveram o pudor de não se compararem nem queixarem da concorrência.
Mas que pretende, ao cabo e ao resto, João Tordo? Que só os escritores possam
escrever e publicar? Mas, afinal, quem são os «escritores»? Uma seita iniciática
de illuminati, um clube selecto de
acesso reservado? Um sindicato monopolista com carteira profissional e privilégios corporativos? Uma casta
superior de brâmanes, uma guilda da Idade Média?
Como se vê, João Tordo oscila entre a
extrema autoconfiança, que lhe advém da presunção de se julgar um «escritor»
comparável a Cardoso Pires, e o cúmulo da insegurança, que o faz temer a
refrega com o que escrevem apresentadores televisivos ou profissionais da
confeitaria e panificação. Para quem está nos top’s de vendas, causa dó tanto medo da concorrência.
O
problema da Literatura, na visão de Tordo, resolvia-se de uma forma simples:
proibia-se que outros escrevessem. De facto, assim tudo seria facilitado, desde
que fosse Tordo, ou algum outro iluminado, a decidir quem poderia ou não entregar-se à nobre arte da escrita.
Deste modo, evitar-se-iam os «fenómenos de vendas de livros escritos a metro» e
teríamos apenas «bons livros».
Mais
adiante na entrevista, o que lhe repugna, afinal, é o facto de os livros de Dan
Brown surgirem nos escaparates ao lado das grandes obras literárias. «As
pessoas que lêem aqueles calhamaços tipo Dan Brown só vão ler aquilo. É bom que
haja mais gente a ler mas temos de ter atenção ao quê». Atenção, atençãozinha,
é necessário definir um cânone, se possível por via administrativa, através de
uma inspecção-geral, tutelada pelo Ministério do Bom-Gosto. Uma ASAE literária,
será isto que pretende? Para este escritor, é inconcebível, obsceno até, que os livros de pasteleiros e as obras de Saramago sejam comerciados no mesmo lugar.
Concede, porém: «Percebo que seja nas livrarias. Mas que façam figura nos
escaparates com os outros livros parece-me uma coisa quase obscena». Tudo se
reduz, portanto, a uma questão de marketing.
O grande problema das letras portuguesas não está no facto de se produzirem
livros como os de João Tordo. A questão magna, o drama verdadeiro, está, pois, na
ausência de um cordão sanitário ou de um perímetro de segurança que proteja a
integridade de Os Cus de Judas dos avanços
galopantes de Harry Potter.
Um pouco mais à frente, lamenta-se Tordo
da vida dura que abraçou. «Nós, os escritores, pelo menos os da minha geração,
somos tudo menos ricos. E temos que fazer muita coisa para sobreviver». Acrescenta:
«faço um bocado de tudo para conseguir sobreviver». O quê, pastéis de nata? Então,
afinal, João Tordo não quer que os pasteleiros escrevam livros mas reconhece
que, além da escrita, anda a fazer biscates por fora? Que dirão os músicos, por
exemplo, já que Tordo confessa que voltou a tocar contrabaixo com o seu grupo
Loafing Heroes? «Eu não me vou meter na profissão dos outros»?
O desastre prossegue. Depois de se
lamentar da perigosa concorrência dos pasteleiros, o jovem autor reconhece com
orgulho que foi galardoado em 2009 com o Prémio Saramago. E, João, quanto a idas a festivais
literários? «Não conseguia fazer isso em série. Conheço escritores que passam a
vida no aeroporto. Gosto de ter o meu tempo pessoal e para escrever. (…) Nos
próximos meses, vou viajar muito, devido ao livro novo». Afinal, pelos vistos,
os escritores, os grandes escritores como João Tordo, são premiados, são
amplamente publicitados, passam a vida em aeroportos rumo a festivais
literários, andam em tournées
promocionais das suas obras. Porquê tanto receio da concorrência dos desgraçados
dos pasteleiros?
«A minha forma de expressão partiu
inteiramente de mim», diz Tordo. Será isso, porventura, o que o distingue
doutros colegas de ofício cujo nome invoca, como Oscar Wilde, José Saramago,
Borges ou Shakespeare. Neste último livro, Tordo explora o tema dos duplos.
Agora, a compita já não é com os pasteleiros. Agora, João Tordo pede meças ao
Bardo do Avon: «O Shakespeare escreveu sobre tudo, é difícil encontrar um tema
novo. Mas há novas formas de se abordar o tema. É aí que se distinguem os
escritores». É aí, nesse ponto crucial, que João Tordo se diferencia de
William Shakespeare. Com modéstia, remata à trave: «um livro escrito por mim
dificilmente poderia ser imitado, tenho o meu próprio estilo». Isto, claro,
além de ser um cidadão do mundo («Viajo muito»), um prosador de sucesso («se é
que se pode chamar a isto sucesso») e, enfim, um bom escritor: «Vendo livros
porque, acho, sou um bom escritor».
Este
seu último livro foi escrito numa residência literária no Canadá. Ao que
consta, William Shakespeare não ganhou o Prémio Saramago, nem os pasteleiros de
Lisboa escrevem em residências literárias no estrangeiro. Mas não é com eles que Tordo
concorre. Quem João Tordo verdadeiramente ameaça é outra classe profissional:
os palhaços.
António Araújo