|
A inauguração, em 1982
|
Iniciaram-se
de imediato os trabalhos de reparação, mas Vasily, na altura com 94 anos, não
resistiu. Morreria 55 dias depois do desastre, devastado pela culpa, sem ter podido ver a
reinauguração da sua obra, ocorrida em Maio desse ano.
|
A reparação da estátua, 2010
|
Quanto
à disputa da paternidade da Mãe Pátria,
é questão secundária. Dizem alguns, e talvez com razão, que Borodai concretizou aquilo
que tinha sido idealizado pelo génio de Vuchetich. Assim, é possível chegar a
acordo, alcançar a paz. Para mais, a aconselhar a harmonia, lembre-se que o local onde fica a tão amada Ladya, de gosto algo duvidoso, é um dos cenários
por excelência das fotos casamenteiras dos habitantes de Kiev.
Borodai é ainda
o autor de uma das muitas estátuas do poeta e artista Taras Shevtchenko, o
autor da antologia poética Zobzar, o
bardo nacional. Considerado o fundador da moderna literatura ucraniana, foi
mais do que isso: foi ele que teve o sonho da Ucrânia que hoje, a esta hora,
luta pela liberdade. Shevtchenko foi escravo, ou servo, quando criança. Em
vida, foi poeta e pintor, figura maior do nacionalismo ucraniano. Quando morreu, foi sepultado em São Petersburgo, mas,
por seu expresso desejo, os restos mortais seriam trasladados para os
arredores de Kaniv, na sua Ucrânia natal. Não por acaso, as comunidades
ucranianas espalhadas pelo mundo continuam a erguer-lhe estátuas por toda a parte. A de Nova Iorque, por sinal das mais esquálidas, é da autoria de Borodai.
É
difícil dizer se a maior obra de Borodai é a severa Mãe
da Pátria ou a delicada Ladya. Em tamanho, a
primeira ganha, sem dúvida. No afecto do povo, vence a segunda. Uma evoca a destruição
da guerra, outra o acto de criar uma cidade. Os noivos de Kiev preferem Ladya. E, ao contrário do que parece suceder com A Mãe da Pátria, existem reproduções por todo o lado:
Ladya não é, no entanto, a estátua de Kiev que melhor exprime o triunfo do amor sobre
tudo o resto. Termino com história pequenina, falando de uma estátua de Kiev
de que poucos falam. Nada tem de belicista; e, na sua simplicidade, é superior a
todas as mitologias e ideologias. Esmaga por completo a esmagadora Mãe de Brejenev e tudo quanto lhe está associado, ontem como hoje: a cólera e a guerra, a avidez da terra, aquilo de que é feita a História.
.
Há
mais de setenta anos, num campo de concentração, Luigi Pedutto
conheceu Mokryna Yurzuk. Ele era italiano, prisioneiro de guerra. Ela era
ucraniana, e tinha sido condenada a uma pena de trabalhos forçados, esta ali detida com
uma filha pequena, nascida no campo nazi perto da aleia de Sankt Pölten, na Áustria. Ela
trazia-lhe comida, ele costurava sapatos e vestidos para a impressionar. Tinham
ambos vinte anos. Apaixonaram-se, como acontece aos melhores mamíferos. Nos
tempos de repouso, caminhavam juntos, de mãos dadas, no mais puro dos silêncios:
nenhum entendia o que o outro dizia. Quando o campo foi libertado, em 1945,
Mokryna foi levada de volta para a Ucrânia. Luigi quis ir atrás dela, mas
impediram-no (aqui, aqui, aqui, aqui).
.
Passaram anos, passaram décadas, casaram
ambos, enviuvaram, legando ao futuro diversos filhos e netos. Luigi ligou-se à finança, Mokryna trabalhou numa exploração agrícola
colectiva na Ucrânia. Dois países, dois destinos: um no capital, outro no
colectivismo. Graças a um programa de televisão, reuniram-se em Moscovo, em
2004. Abraçaram-se ao fim de décadas, como talvez nunca o tivessem feito.
|
Luigi e Mokryna, o reencontro em 2004
|
No ano passado, em Maio, foi erigida
uma estátua em Kiev em sua homenagem. Num local romântico, numa ponte do Parque
Khreschatyi, onde os pares de namorados fazem entre si juras de amor eterno.
Muitas vezes, incumpridas. Neste caso, a jura durou sete décadas. Ela encontrava-se
demasiado debilitada para poder viajar, mas os seus familiares disseram que
estava feliz por o seu amor servir de exemplo a outros casais. A neta afirmou que
a avó lhe contara, vezes sem conta, aquele amor de guerra, mas jamais
imaginaria que voltaria a reencontrar o rapaz italiano, que é um hoje um homem feito.
.
Com
90 anos, vestido em uniforme de gala do exército italiano, Luigi Pedutto falou
na cerimónia, comoveu-se. Lágrimas de quem esperou. «Quando tinha nove anos»,
afirmou, «o meu professor disse-me uma vez: lembra-te que, por tudo o que de mau
passares na vida, serás recompensado». «Sinto que fui recompensado por tudo
aquilo que passei».
|
Luigi Pedutto, Kiev, Maio de 2013
|
Durante 62 anos, Luigi esperou por ela,
guardando uma pequena fotografia e uma medalha com uma mecha do seu cabelo. Um
dia, decidiu escrever uma carta para um programa de televisão na Rússia, na
esperança de a localizar. Vivia numa pequena aldeia na região de Dnipropetrovsk.
Exactamente: a terra natal de Timoshenko e dos dois escultores que ergueram A Mãe da Pátria. Depois de se
reencontrarem, pediu-a em casamento. «Quando a pedi em casamento, ela riu-se»,
diz Pedutto. Mas a senhora já visitou a sua terra natal, Castel San Lorenzo, em Salerno, de
que foi feita cidadã honorária. Luigi viaja por vezes até à Ucrânia, levando-lhe azeite e
queijo parmesão para preparar spaghetti.
Falam num estranho dialecto, que mistura ucraniano, italiano e russo. Pensam um
dia visitar juntos a estátua que, em Kiev, imortalizou o seu amor de décadas.
Há um movimento na América de que só se
aproveita o nome: True Love Waits. Luigi Pedutto ainda não perdeu a esperança de
que, um dia destes, Mokryna Yurzuk aceite casar com ele.
António Araújo