Mostrar mensagens com a etiqueta Amor. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Amor. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Dia dos Namorados.

 




Hoje é aquele dia do ano que muitos casais comemoram e que para outros casais é indiferente; que pessoas solteiras gostariam de comemorar e outras acham uma piroseira. Um dia que se diz dos Namorados, mas que a Igreja, que o instituiu, prefere chamar de São Valentim – porque não só isso puxa a brasa à mitologização dos santos mártires, mas também acentua a importância do casamento (católico), que é, dizem, o verdadeiro sinal de união entre duas pessoas (heterossexuais). 

Por falar disso: não há provas de que o bispo romano Valentim, do século III, tenha celebrado casamentos num tempo em que estes estariam supostamente proibidos pelo imperador. Nem que ele tenha curado da cegueira a filha do seu carcereiro e, logo depois, caído de amores por ela. A própria Igreja, que o santificou, abandonou a celebração do Dia de São Valentim há cerca de 50 anos. 

Restam então os namorados, que existem e são muitos, felizmente. Pois se tiverem relações verdadeiramente amorosas (sejam elas monogâmicas ou de outros tipos, entre pessoas com as identidades de género x, y ou z), o que é certo, diz-nos a ciência, é que tendem a ter melhor saúde mental, melhores índices de pressão arterial, colesterol e inflamação, uma maior capacidade de entrega aos outros, um maior sentimento de bem-estar e de realização pessoal. 

O problema, muitos dirão, é que as Escadinhas do Amor (em Caneças, Odivelas) muitas vezes desembocam numa Rua do Jogo (na freguesia de Amor, em Leiria). Assim é. Porém, não faltam também casos de ruas dos Amores que acabam bem, como a dos arredores de Braga amorosamente colada a uma Rua dos Abraços.  

De todos os topónimos adequados a este dia, o meu preferido é o Jardim dos Namorados da cidade onde cresci, Penafiel. Não porque lhe associe memórias amorosas (olhem, não calhou), mas pela tranquilidade desse recanto, a beleza do seu verde, o ar puro que ali se respira e as vistas deslumbrantes – e também pela óptima biblioteca e a deliciosa pastelaria ali mesmo ao lado, bem no centro da cidade. 

 

                                                                    Rui Passos Rocha


sexta-feira, 8 de abril de 2022

A Mãe de Brejnev (2ª parte) (publicado em 24/2/2014 - reposição)

 

 
 






Prosseguindo o périplo pela Mão da Pátria (ou Mãe de Brejnev), pedia apenas que vissem o vídeo acima. Dura só 46 segundos e dá uma ideia muito aproximada da estátua de que estamos a falar – e até que ponto, já lá iremos, tudo isto nos pode ajudar a compreender o que nestes meses, dias e horas está a ocorrer na Ucrânia. No momento em que escrevo estas linhas, não se duvide, está a jogar-se ali o futuro da Europa, por muitas e muitas décadas. Quem não quiser ver o vídeo, tem aqui uma galeria de imagens do local onde se situa a Mãe da Pátria, o Complexo Memorial da Grande Guerra Patriótica. Em alternativa, vai infra uma selecção inquestionavelmente excessiva da estátua, concebida no início dos anos setenta por Yevgeny Vuchetich mas só inaugurada em 9 de Maio de 1981, sob a presença tutelar do secretário-geral do PCUS, Leonid Brejnev. Começamos com umas imagens dos planos de edificação, da autoria do arquitecto Vasyl Borodai, para nos fixarmos depois na escultura, que merece ser bem vista. É irreal de gigantesca.
 
 


 
 
 
 



 
 

 
 

O que impressiona e surpreende é que, no desenho, pouco parece ter mudado relativamente à estatuária monumental clássica do realismo soviético, da década de trinta. Em quarenta anos, naquilo que parece ser uma metáfora do regime que serviam, nada evoluiu ou mudou na concepção daquelas figuras tão majestosas e serenas. A estátua de Vuchetich em Berlim, do soldado com uma criança ao colo, foi inaugurada em 1949. Mas, na substância, a traça permanece a mesma nesta Mãe da Pátria, que foi oficialmente aberta ao público em 1981. Existem dois elevadores acessíveis ao público, que levarão os turistas até a uma plataforma situada ao nível de 36 metros. Mas é possível ir mais acima. Do alto, contempla-se Kiev e os seus arredores, a curva do Dniepre. E para quem diz que tudo aquilo, à semelhança de outra obra de Vuchetich, A Mãe-Pátria Chama!, em Volgogrado, pode estar na iminência de ruir, a página oficial do Complexo da Guerra Patriótica é peremptória, garantindo que a estátua é constantemente monitorizada e perfeitamente segura. Curiosamente, o nome de Vuchetich não é citado a propósito da estátua, só se fala de Borodai. Porquê? Resposta aparentemente fácil: porque era ucraniano, nascido em Dnipropetrovsk em 1917, membro da Academia de Artes da Ucrânia, herói da Grande Guerra Patriótica, secretário da Sociedade Artística da Ucrânia, galardoado com o Prémio Lenine. Simplesmente, Vuchetich também era ucraniano (e, por sinal, também de Dnipropetrovsk, à semelhança da recentissimamente reabilitada Yuliya Tymoshenko). A página oficial do Complexo de Guerra Patriótica alude fugazmente ao  nome de Vuchetich quando fala da planificação geral do monumento. Mas a paternidade da estátua é atribuída a Borodai. Vejamos a matriarca a partir dos céus, com fotografias e um vídeo a terminar a excursão:
 




 

 
 
 
 
 
 

Num breve parêntesis sobre a Ucrânia, que está na ordem do dia, devemos recordar que, até há pouco, Kiev possuía um dos MacDonald’s  mais frequentados do mundo: junto à estação de comboios, era o terceiro MacDonald’s mais visitado em todo o planeta, atendendo cerca de dois milhões de pedidos por ano. Para quem gosta destes números, lembre-se também que os ucranianos são dos povos que mais bebem álcool em toda a Terra , ficando apenas atrás dos moldavos, dos russos, dos húngaros e dos checos. Nos processos-crime, a taxa de condenações situa-se também em valores elevados (90%), bastante acima da média europeia, com uns tolerantes 30 a 40%. Quando formalmente se libertou da tutela soviética, existiam na Ucrânia quase 20 milhões de porcos. O número reduziu-se significativamente, e, apesar da fama, um ucraniano consome hoje, em média, 18 quilos de carne de porco por ano, três vezes menos do que um alemão. 
Quanto à estátua Mãe da Pátria, seria de esperar que existissem milhares de recriações e pastiches, mas encontrei pouca coisa, apenas uns postais e as habituais medalhas comemorativas. Existe, todavia, uma escultura que segue de perto a Mãe de Brejnev. Chama-se Sabre de Luz, foi feita em 1992-1994 por Hartmut Skerbisch (1945-2009) e está situada junto ao edifício da Ópera de Graz, na Áustria. É uma obra muito desenxabida, na minha modesta opinião.   
 
 
 



Hartmut Skerbisch, Lichtschwert («Sabre de Luz»)
 


Além de uma performance algo apatetada de um grupo de rapazolas, que fez desaparecer e reaparecer a estátua ao jeito de David Copperfield, em Março de 2011 algumas activistas do Grupo Femen decidiram manifestar-se no seu habitual modo provocatório:


 

 

Parece existir, portanto, alguma indefinição quanto à autoria da estátua. A Wikipedia e outras fontes atribuem-na a Vuchetich. A página oficial do Complexo de Guerra Patriótica pende sem duvidar para o nome de Vasyl Borodai. Aliás, se virmos este vídeo, de onde consta a já insuportável comparação fanfarrona com a Estátua da Liberdade, parece ser essa a versão oficial. Mais ainda: em alguns locais, como aqui, e sobretudo no site de Borodai, reclama-se para este, sem pestanejar, a criação da Mãe da Pátria, chegado-se a exibir o modelo e muitos pormenores da edificação. Ora, isso é natural, uma vez que os trabalhos de construção só se iniciaram após a morte de Vuchetich. Mas, a ser verdade que a estátua foi concebida por Borodai, cai por terra a ideia de que o autor da famosa e esmagadora A Mãe Pátria Chama!, de Volgogrado, é o mesmo de  A Mãe da Pátria, de Kiev. 
 
 





 
 
 
 

Da autoria de Borodai é, indubitavelmente, a estátua aos fundadores de Kiev, que fica nas imediações do Memorial à Grande Guerra Patriótica.

Ladya, assim se chama o monumento. Erguido à glória dos quatro irmãos que, segundo a lenda, fundaram Kiev: Kiy, Sckek e Koriv, juntamente com a sua irmã Lybid. O mito fundador da capital da Ucrânia pode ser lido em vários lugares, como este.
 

 
Vasyl Borodai, Ladya



Os ucranianos têm tal afecto por esta lenda que, em Kiev, possuem duas estátuas que a evocam. A mais recente, na Praça da Independência, situa-se no preciso local onde tanta gente foi morta nos últimos dias.



A estátua dos Fundadores de Kiev, na Praça da Independência,
nos confrontos dos últimos dias

 
Outra, a original, nas imediações da Mãe-Pátria, foi concebida por Vasyl  Borodai, com arquitectura de Nikolay Feshenko. A estátua foi feita algo às pressas, a tempo de ser o ponto alto das comemorações dos 1.500 anos de Kiev, em 1982. De início, pensou-se em algo muito grandioso, talvez mesmo em colocar os founding brothers no cimo de um pedestal de 100 metros de altura. Na altura da verdade, foi-se para um orçamento mais modesto e razoável – e, ainda assim, a estátua foi inaugurada com numerosas imperfeições, com destaque para as figuras serem em cobre e não em bronze, como desejava Borodai. Há uma história comovente em torno desta escultura: a figura feminina, Lybid, foi inspirada na filha do escultor, Galina, também ela artista – pintora –, falecida prematuramente. Borodai homenageou a sua filha figurando-a como Lybid. Numa noite de Fevereiro de 2010, justamente por serem em cobre e terem ganho verdete, as figuras não resistiram ao frio gelado. Apenas uma das estátuas permaneceu intacta: a de Lybid.

 
Vasyl Borodai (1917-2010)
 
Vasyl e Lybid (ou Galina)


A inauguração, em 1982

 
 
Iniciaram-se de imediato os trabalhos de reparação, mas Vasily, na altura com 94 anos, não resistiu. Morreria 55 dias depois do desastre, devastado pela culpa, sem ter podido ver a reinauguração da sua obra, ocorrida em Maio desse ano.
 

A reparação da estátua, 2010
 
Quanto à disputa da paternidade da Mãe Pátria, é questão secundária. Dizem alguns, e talvez com razão, que Borodai concretizou aquilo que tinha sido idealizado pelo génio de Vuchetich. Assim, é possível chegar a acordo, alcançar a paz. Para mais, a aconselhar a harmonia, lembre-se que o local onde fica a tão amada Ladya, de gosto algo duvidoso, é um dos cenários por excelência das fotos casamenteiras dos habitantes de Kiev.
 
 
Borodai é ainda o autor de uma das muitas estátuas do poeta e artista Taras Shevtchenko, o autor da antologia poética Zobzar, o bardo nacional. Considerado o fundador da moderna literatura ucraniana, foi mais do que isso: foi ele que teve o sonho da Ucrânia que hoje, a esta hora, luta pela liberdade. Shevtchenko foi escravo, ou servo, quando criança. Em vida, foi poeta e pintor, figura maior do nacionalismo ucraniano. Quando morreu, foi sepultado em São Petersburgo, mas, por seu expresso desejo, os restos mortais seriam trasladados para os arredores de Kaniv, na sua Ucrânia natal. Não por acaso, as comunidades ucranianas espalhadas pelo mundo continuam a erguer-lhe estátuas por toda a parte. A de Nova Iorque, por sinal das mais esquálidas, é da autoria de Borodai.
É difícil dizer se a maior obra de Borodai é a severa Mãe da Pátria ou a delicada Ladya. Em tamanho, a primeira ganha, sem dúvida. No afecto do povo, vence a segunda. Uma evoca a destruição da guerra, outra o acto de criar uma cidade. Os noivos de Kiev preferem Ladya. E, ao contrário do que parece suceder com A Mãe da Pátria, existem reproduções por todo o lado:
 
 

 
Ladya não é, no entanto, a estátua de Kiev que melhor exprime o triunfo do amor sobre tudo o resto. Termino com história pequenina, falando de uma estátua de Kiev de que poucos falam. Nada tem de belicista; e, na sua simplicidade, é superior a todas as mitologias e ideologias. Esmaga por completo a esmagadora Mãe de Brejenev e tudo quanto lhe está associado, ontem como hoje: a cólera e a guerra, a avidez da terra, aquilo de que é feita a História.   
.
Há mais de setenta anos, num campo de concentração, Luigi Pedutto conheceu Mokryna Yurzuk. Ele era italiano, prisioneiro de guerra. Ela era ucraniana, e tinha sido condenada a uma pena de trabalhos forçados, esta ali detida com uma filha pequena, nascida no campo nazi perto da aleia de Sankt Pölten, na  Áustria. Ela trazia-lhe comida, ele costurava sapatos e vestidos para a impressionar. Tinham ambos vinte anos. Apaixonaram-se, como acontece aos melhores mamíferos. Nos tempos de repouso, caminhavam juntos, de mãos dadas, no mais puro dos silêncios: nenhum entendia o que o outro dizia. Quando o campo foi libertado, em 1945, Mokryna foi levada de volta para a Ucrânia. Luigi quis ir atrás dela, mas impediram-no (aqui, aqui, aqui, aqui).
.
Passaram anos, passaram décadas, casaram ambos, enviuvaram, legando ao futuro diversos  filhos e netos. Luigi ligou-se à finança, Mokryna trabalhou numa exploração agrícola colectiva na Ucrânia. Dois países, dois destinos: um no capital, outro no colectivismo. Graças a um programa de televisão, reuniram-se em Moscovo, em 2004. Abraçaram-se ao fim de décadas, como talvez nunca o tivessem feito.  
 
 
Luigi e Mokryna, o reencontro em 2004

Kiev, Maio de 2013
 

 
 No ano passado, em Maio, foi erigida uma estátua em Kiev em sua homenagem. Num local romântico, numa ponte do Parque Khreschatyi, onde os pares de namorados fazem entre si juras de amor eterno. Muitas vezes, incumpridas. Neste caso, a jura durou sete décadas. Ela encontrava-se demasiado debilitada para poder viajar, mas os seus familiares disseram que estava feliz por o seu amor servir de exemplo a outros casais. A neta afirmou que a avó lhe contara, vezes sem conta, aquele amor de guerra, mas jamais imaginaria que voltaria a reencontrar o rapaz italiano, que é um hoje um homem feito.
.
Com 90 anos, vestido em uniforme de gala do exército italiano, Luigi Pedutto falou na cerimónia, comoveu-se. Lágrimas de quem esperou. «Quando tinha nove anos», afirmou, «o meu professor disse-me uma vez: lembra-te que, por tudo o que de mau passares na vida, serás recompensado». «Sinto que fui recompensado por tudo aquilo que passei».
 
Luigi Pedutto, Kiev, Maio de 2013
 
 
Durante 62 anos, Luigi esperou por ela, guardando uma pequena fotografia e uma medalha com uma mecha do seu cabelo. Um dia, decidiu escrever uma carta para um programa de televisão na Rússia, na esperança de a localizar. Vivia numa pequena aldeia na região de Dnipropetrovsk. Exactamente: a terra natal de Timoshenko e dos dois escultores que ergueram A Mãe da Pátria. Depois de se reencontrarem, pediu-a em casamento. «Quando a pedi em casamento, ela riu-se», diz Pedutto. Mas a senhora já visitou a sua terra natal, Castel San Lorenzo, em Salerno, de que foi feita cidadã honorária. Luigi viaja por vezes até à Ucrânia, levando-lhe azeite e queijo parmesão para preparar spaghetti. Falam num estranho dialecto, que mistura ucraniano, italiano e russo. Pensam um dia visitar juntos a estátua que, em Kiev, imortalizou o seu amor de décadas.   
 
 
 
 Há um movimento na América de que só se aproveita o nome: True Love Waits.  Luigi Pedutto ainda não perdeu a esperança de que, um dia destes, Mokryna Yurzuk aceite casar com ele.
 
 
António Araújo