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terça-feira, 14 de março de 2023

Quando a crise dos bancos em colapso ameaçou ferozmente o Estado Social.

 





Publicado em Portugal no ano em que o autor faleceu, Na Margem, por Rafael Chirbes, Assírio & Alvim, 2015, é a mais poderosa metáfora que conheço sobre aquele início do século XXI que ameaçava pôr-nos quase todos na margem (entenda-se: no terror de perder o emprego ou os apoios sociais enquanto os oportunistas da especulação triunfavam, quando parecia que uma bola de demolição ia arrancar pelos alicerces um mundo de bem-estar nascido depois da Segunda Guerra Mundial e que parecia inalterável nos seus princípios).

A metáfora é o pântano onde o empregado da carpintaria que fechou vai à procura de peixe, é tempo de restrições, o mundo vive sob tormenta, aqueles bancos que faliram na América fazer rugir o funcionamento das economias europeias, agora campeia o desemprego, o pavor da miséria, impôs-se a austeridade, no pântano há despojos putrefactos e, imprevistamente, no meio daquela pestilência, anda por ali um cão com restos de um ser humano.

Feito o achado, entramos propriamente na narrativa, haverá muita gente a comunicar entre si, mas cabe a Esteban abrir as hostilidades, ele trata do pai, um ancião demente que carece de todos os cuidados, não faltará o enquadramento histórico, reminiscências da guerra civil de Espanha, ele é empresário de uma carpintaria falida, teve outros sonhos na vida, jogou na bolha imobiliária, tudo perdeu e tudo fez perder, vemo-lo agora passear-se pelo pântano, dispõe agora de tempo para joguinhos no bar, aí colhe informações de falências dos outros, vêm os representantes da autoridade e tudo arrestam, levam os livros de contas, os credores procuram toda esta gente falida.

Haverá tempo (são mais de 400 páginas que o leitor tem pela frente, Na Margem foi considerado o melhor romance espanhol de 2013 por conceituados suplementos literários de jornais) para sermos embrenhados na vida destas famílias em que a carpintaria é o lugar e o tempo e a placa giratória da vida espanhola desta ditadura até à época da austeridade ditada pelas falências bancárias. Fala-se de frigoríficos vazios, de subsídios de desemprego, de amores desencontrados, daqueles anos de consumo opulento que agora parecem mortos, e para todo o sempre. É romance de indignação, de amargura, de múltiplos equívocos, como a ternura que Esteban dedica a Liliana, e muito mais adiante veremos que ela retribui com o mais puro dos cinismos.

O leitor que se prepare para solilóquios que por vezes parecem assumir uma dimensão barroca, basta pensar nas descrições do apoio que Esteban dá a seu pai. Será passada a revista a negócios que se julgavam muito bem-sucedidos, como os de Pedrós e os de Tomás, serão devorados pela intempérie. Romance de silêncios, de rememoração, cada um dos irmãos seguiu o seu destino, Esteban tinha que ficar ao leme da carpintaria, a tomar conta do pai, e há mesmo confissões dolorosas:

“Nesta luminosa manhã de inverno, sou eu quem procura o cenário onde restabelecer parte do código numa representação íntima, teatro de câmara, para reparar o que a história rompeu. Preparo o momento, pai, encarrego-me de te devolver ao lugar onde quiseste ficar e, por culpa nossa, não ficaste, reconstruo o corpo partido da tua dignidade para o restituir à plenitude do homem que não conheci, porque o meu irmão mais novo, a minha irmã e eu já chegámos depois da mutilação, filhos de uma servidão aceite, seres sem forma própria, criaturas domésticas sem aspirações. O país inteiro tinha sido privado de aspirações. Nada podia crescer à beira desta tristeza. Cabe-me a mim cumprir o teu desejo adiado, devolver-te aos teus camaradas.”

E somos confrontados com o fragor do despedimento, é o caso de Álvaro, a mão-direita de Esteban, ele deita contas à vida, onde vai cortar, do que se vai privar. É um dos muitos discursos sobre aquele desemprego que está a abalar a sociedade por inteiro. Alguém comenta: “A pobreza é pessimista por natureza. Os pobres estão convencidos de que, por muito que sofram, ainda lhe pode acontecer algo pior.”

A grande tensão vai pela decisão que Esteban tomou, que os outros não lhe vejam a dor da perda, a ninguém tem que confessar o vazio, a humilhação, diverte-se com aquelas conversas de botequim em que se fala das fortunas perdidas. E caminhamos para o cerimonial da partida, Esteban liberta o pintassilgo da gaiola, parece que toda a vida familiar, todo o seu passado correu no caudal da consciência, e há um momento extraordinário que é a lembrança da lição que o pai lhe deu sobre o bom carpinteiro:

“Lembra-te de que um bom carpinteiro não é aquele que faz maravilhas com a madeira, mas aquele que vive do seu trabalho com a madeira; tens de saber de cor o porquê de cada instrumento que usas: olha, toca esta cadeira – apoia a mão no espaldar – nasceu do trabalho combinado da natureza e do homem, foi fabricada por gente que fala. O móvel que fizeste suporta o cu ou os cotovelos ou as mãos e os papéis e as toalhas e os pratos e os copos de alguém, alguém que, graças ao teu trabalho, goza de certa comodidade que o alivia da azáfama e do cansaço de cada dia.” Esteban lembra a sua passagem na Escola de Artes e Ofícios e nisto voltamos ao pântano, de ali se avista o que para trás fica do mundo destruído pela crise, restam edifícios inacabados e nenhum em construção; e retoma-se a metáfora do pântano:

“No pântano é possível construir um mundo privado fora do mundo. Ninguém corre nem muito menos pedala pelos caminhos lamacentos, esburacados, que cheiram à podridão da água estagnada, a vegetais macerados e a animais mortos.” É uma dolorosa despedida. Seremos ainda confrontados com a derrocada que o capitalismo financeiro provocou naquela região (mas não será que o regional é igualmente universal?), aliás, iremos assistir à situação de Tomás, ele lá se desenrascou e segue com a sua mulher, Amparo, para férias nas Américas, e toda a amargura deste livro espantoso explode no final: “preocupa-te, sobretudo, em acumular lingotes de ouro, há séculos e séculos que os lingotes de ouro circulam por aí, e as joias, os diamantes, os rubis e as safiras, há milénios que andam de cá para lá, e continuam a ter o valor que tinham no oitavo dia da criação do mundo, quando Eva viu uma serpente e lhe deitou a mão julgando que se tratava de um colar de esmeraldas.”

O resto, os falidos, os vencidos, esses ficam na margem, foram laminados pela crise. Rafael Chirbes fica como um dos maiores escritores que pela sua arquitetura admirável nos põe em permanência, diante dos olhos, as sucessivas tentativas para demolir o Estado Social. 


                                                                                    Mário Beja Santos



 

 


terça-feira, 29 de junho de 2021

 


 

 

Em tempos de crise e de pandemias aparecem sempre os negocionistas.  



Ricardo Álvaro






segunda-feira, 22 de junho de 2020

assim, sim.

 



Como seria de esperar, este texto de Michel Houellebecq é das coisas mais lúcidas e mais clarividentes que se escreveram sobre a pandemia da Covid-19.




segunda-feira, 18 de maio de 2020

Comprem livros na Barata!






“A livraria Barata está 
em risco de fechar. 
A situação parece ser 
mesmo dramática e este 
mês vai ser determinante 
para saberem se podem 
manter as portas abertas.
Se puderem ajudar, pensem 
em livros que queiram e 
deem lá um salto. E passem 
a palavra. É das poucas
 livrarias de Lisboa assim. 
É um espaço especial, com 
exposições, café, as pessoas 
podem sentar-se e ler o que 
querem.”
“Pediram-me para divulgar… 
e é uma pena se a Barata 
desaparecer!”
Foi fundada em 1957 por António Barata, que ao tempo do salazarento detido vária vezes pela PIDE por vender livros proibidos pelo regime fascista e por orientar a livraria como espaço de divulgação cultural e liberdade de pensamento.
A loja, desta livraria viu a sua espacialidade “alterada na década 1980, publicou durante muitos anos o boletim cultural “Barata”e teve uma galeria de arte. Continua a promover eventos culturais como apresentações de livros e tertúlias.”
Vivi lá bons momentos entre o folhear muitos livros, adquirir menos ouvir debates uns culturais outros políticos e adorava poder continuar a lá poder ir 
Claro que esta crise covid está a afetar esta livraria e por isso nada como apelar a – Comprem livros na Barata ! 
Ainda bem que temos amigos que nos incentivam para Causas Justas como esta! 


Joffre Justino







domingo, 17 de maio de 2020

Quietude júnior (1).







A imprensa internacional fez-nos saber que a conjuntura covidal tem posto as crianças a dormir mal. Apesar das perturbações do sono afetarem miúdos e graúdos, até aqui só os graúdos atraíam os holofotes. Nisto, o Malomil também não andou bem.

O projeto de espalhar quietude – condição necessária, ainda que não suficiente, para a sonolência – tem negligenciado os mais pequenos. Estes, quando muito andam a ser aviados com Melamil, uma droga que apregoa encurtar o tempo para adormecer.

Pois bem, chegou o momento de acertar a balança. Nas próximas edições esta rubrica será júnior, com meia dúzia de canções de embalar e outras que, não o sendo, embalam no sono, ou dispõem para o sonho.

Com pena, deixo de fora canções de embalar cujo embalo hipnotiza e induz ao transe, mas tenho dúvidas que adormeçam, como a Lullaby dos The Cure. Já sem pena alguma ficam de fora canções de embalar plástico, vendidas em pacote para bébés e infantes a pais incautos. Atrofiam os ouvidos tenrinhos, cheios de potencial, e deixam-nos balofos de enxúndia e entulho, tão desalmadas são. O problema, por conseguinte, não é serem simples. Há-as simples e gloriosas. É mesmo não terem alma.

Dito isto, também não levo ninguém ao engano. Não garanto, nem por sombras, um efeito rápido tão cilindrante como o que este pai obteve com a sua interpretação da Wiegenlied, a famosa canção de embalar de Johannes Brahms. Ao fim de 30 segundos? Brincamos? É quase indecente.

A abrir a rubrica, já a seguir, uma “Criança a Adormecer” – precisamente. É assim que se intitula esta cena de infância, de Robert Schumann (Kinderszenen, Op.15 - 12. Kind im Einschlummern), interpretada por Martha Argerich.




Manuela Ivone Cunha