Publicado em Portugal no ano em que o autor faleceu, Na
Margem, por Rafael Chirbes, Assírio & Alvim, 2015, é a mais poderosa
metáfora que conheço sobre aquele início do século XXI que ameaçava pôr-nos
quase todos na margem (entenda-se: no terror de perder o emprego ou os apoios
sociais enquanto os oportunistas da especulação triunfavam, quando parecia que
uma bola de demolição ia arrancar pelos alicerces um mundo de bem-estar nascido
depois da Segunda Guerra Mundial e que parecia inalterável nos seus
princípios).
A metáfora é o pântano onde o empregado da carpintaria
que fechou vai à procura de peixe, é tempo de restrições, o mundo vive sob
tormenta, aqueles bancos que faliram na América fazer rugir o funcionamento das
economias europeias, agora campeia o desemprego, o pavor da miséria, impôs-se a
austeridade, no pântano há despojos putrefactos e, imprevistamente, no meio
daquela pestilência, anda por ali um cão com restos de um ser humano.
Feito o achado, entramos propriamente na narrativa,
haverá muita gente a comunicar entre si, mas cabe a Esteban abrir as
hostilidades, ele trata do pai, um ancião demente que carece de todos os
cuidados, não faltará o enquadramento histórico, reminiscências da guerra civil
de Espanha, ele é empresário de uma carpintaria falida, teve outros sonhos na
vida, jogou na bolha imobiliária, tudo perdeu e tudo fez perder, vemo-lo agora
passear-se pelo pântano, dispõe agora de tempo para joguinhos no bar, aí colhe
informações de falências dos outros, vêm os representantes da autoridade e tudo
arrestam, levam os livros de contas, os credores procuram toda esta gente
falida.
Haverá tempo (são mais de 400 páginas que o leitor tem
pela frente, Na Margem foi considerado o melhor romance espanhol de 2013
por conceituados suplementos literários de jornais) para sermos embrenhados na
vida destas famílias em que a carpintaria é o lugar e o tempo e a placa
giratória da vida espanhola desta ditadura até à época da austeridade ditada
pelas falências bancárias. Fala-se de frigoríficos vazios, de subsídios de
desemprego, de amores desencontrados, daqueles anos de consumo opulento que
agora parecem mortos, e para todo o sempre. É romance de indignação, de
amargura, de múltiplos equívocos, como a ternura que Esteban dedica a Liliana,
e muito mais adiante veremos que ela retribui com o mais puro dos cinismos.
O leitor que se prepare para solilóquios que por vezes
parecem assumir uma dimensão barroca, basta pensar nas descrições do apoio que
Esteban dá a seu pai. Será passada a revista a negócios que se julgavam muito
bem-sucedidos, como os de Pedrós e os de Tomás, serão devorados pela
intempérie. Romance de silêncios, de rememoração, cada um dos irmãos seguiu o
seu destino, Esteban tinha que ficar ao leme da carpintaria, a tomar conta do
pai, e há mesmo confissões dolorosas:
“Nesta luminosa manhã de inverno, sou eu quem procura o
cenário onde restabelecer parte do código numa representação íntima, teatro de
câmara, para reparar o que a história rompeu. Preparo o momento, pai,
encarrego-me de te devolver ao lugar onde quiseste ficar e, por culpa nossa,
não ficaste, reconstruo o corpo partido da tua dignidade para o restituir à
plenitude do homem que não conheci, porque o meu irmão mais novo, a minha irmã
e eu já chegámos depois da mutilação, filhos de uma servidão aceite, seres sem
forma própria, criaturas domésticas sem aspirações. O país inteiro tinha sido
privado de aspirações. Nada podia crescer à beira desta tristeza. Cabe-me a mim
cumprir o teu desejo adiado, devolver-te aos teus camaradas.”
E somos confrontados com o fragor do despedimento, é o
caso de Álvaro, a mão-direita de Esteban, ele deita contas à vida, onde vai
cortar, do que se vai privar. É um dos muitos discursos sobre aquele desemprego
que está a abalar a sociedade por inteiro. Alguém comenta: “A pobreza é
pessimista por natureza. Os pobres estão convencidos de que, por muito que
sofram, ainda lhe pode acontecer algo pior.”
A grande tensão vai pela decisão que Esteban tomou, que
os outros não lhe vejam a dor da perda, a ninguém tem que confessar o vazio, a
humilhação, diverte-se com aquelas conversas de botequim em que se fala das
fortunas perdidas. E caminhamos para o cerimonial da partida, Esteban liberta o
pintassilgo da gaiola, parece que toda a vida familiar, todo o seu passado
correu no caudal da consciência, e há um momento extraordinário que é a
lembrança da lição que o pai lhe deu sobre o bom carpinteiro:
“Lembra-te de que um bom carpinteiro não é aquele que faz
maravilhas com a madeira, mas aquele que vive do seu trabalho com a madeira;
tens de saber de cor o porquê de cada instrumento que usas: olha, toca esta
cadeira – apoia a mão no espaldar – nasceu do trabalho combinado da natureza e
do homem, foi fabricada por gente que fala. O móvel que fizeste suporta o cu ou
os cotovelos ou as mãos e os papéis e as toalhas e os pratos e os copos de
alguém, alguém que, graças ao teu trabalho, goza de certa comodidade que o
alivia da azáfama e do cansaço de cada dia.” Esteban lembra a sua passagem na
Escola de Artes e Ofícios e nisto voltamos ao pântano, de ali se avista o que
para trás fica do mundo destruído pela crise, restam edifícios inacabados e
nenhum em construção; e retoma-se a metáfora do pântano:
“No pântano é possível construir um mundo privado fora do
mundo. Ninguém corre nem muito menos pedala pelos caminhos lamacentos,
esburacados, que cheiram à podridão da água estagnada, a vegetais macerados e a
animais mortos.” É uma dolorosa despedida. Seremos ainda confrontados com a
derrocada que o capitalismo financeiro provocou naquela região (mas não será
que o regional é igualmente universal?), aliás, iremos assistir à situação de
Tomás, ele lá se desenrascou e segue com a sua mulher, Amparo, para férias nas
Américas, e toda a amargura deste livro espantoso explode no final:
“preocupa-te, sobretudo, em acumular lingotes de ouro, há séculos e séculos que
os lingotes de ouro circulam por aí, e as joias, os diamantes, os rubis e as
safiras, há milénios que andam de cá para lá, e continuam a ter o valor que
tinham no oitavo dia da criação do mundo, quando Eva viu uma serpente e lhe
deitou a mão julgando que se tratava de um colar de esmeraldas.”
O resto, os falidos, os vencidos, esses ficam na margem, foram laminados pela crise. Rafael Chirbes fica como um dos maiores escritores que pela sua arquitetura admirável nos põe em permanência, diante dos olhos, as sucessivas tentativas para demolir o Estado Social.
Mário Beja Santos