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domingo, 6 de junho de 2021

Ouro Preto – o mistério do seu casario.



 


Já caíram mais de vinte anos sobre a minha descoberta atrasada do Brasil colonial mineiro que culminou em Ouro Preto. Todavia ainda recordo como se hoje fosse. Saímos, a Leonor e eu, de Arraial do Cabo, para onde escapáramos do bulício do Rio de Janeiro, já que achávamos Búzios, mesmo ali nas imediações, demasiado chic para o nosso terra-a-terra.  E acertámos. Após uma bucólica semana aldeã, mais exatamente piscatória, lançámo-nos estrada fora (Juiz de Fora ficou quase só no mapa e na estação de abastecimento de gasolina), deliciando-nos em paragens prolongadas a fim de usufruirmos em pleno enlevo todo o percurso, sobretudo São João D’El-Rei, Tiradentes e Congonhas. Foi, porém, em Ouro Preto que diante de nós se escancarou o deslumbramento.  Disparei fotos por tudo quanto era sítio, acumulei notas (hoje sorvidas por um buraco negro algures) planeando descrever tão inesperada e fascinante experiência.

Apossou-se de mim uma sensação de déjà vu. Década e meia antes, tinha eu chegado desprevenido, como quem salta de paraquedas, em Cartagena de Índias, na Colômbia caribeña, e, ao deparar com o imponente castelo da cidade, fui tomado de assalto por esse tipo de sensação. Em Angra do Heroísmo, nos meus Açores, onde tinha vivido nove anos, existe um outro castelo com idêntico traçado, no Monte Brasil (este nome é resquício da suposição que em Quatrocentos os portugueses fizeram  de ser aquela ilha, Terceira de seu nome, a ilha Brasil, durante séculos intensamente procurada, primeiro a oeste da Irlanda e depois Atlântico abaixo). Só décadas mais tarde vim a descobrir que afinal aquele Castelo de S. João Baptista sobre a baía de Angra, havia sido mandado erigir por Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal) – daí o seu nome inicial de Castelo de S. Filipe - e encomendado ao mesmo arquiteto que desenhou o de Cartagena. Ao chegar a Ouro Preto, aconteceu-me algo comparável. Mas agora era toda a cidade que se me assemelhava a Angra. O casario em fotocópia nítida, só as colinas eram mais acidentadas – muito, muito mais, digamos que medonhamente íngremes, a ponto de numa subida de carro (não me recordo o nome, mas era supostamente um lugar ideal para uma vista do alto sobre a cidade) eu ter sido assaltado pelo receio de podermos capotar. Foram os locais que nos desaconselharam a subida no nosso carro e nos recomendaram um táxi pois os condutores estão acostumados. O nosso explicou ser devido a encostas daquelas que a embraiagem de um veículo ali na cidade é sol de pouca dura. E, nas mãos de um estrangeiro, ela ainda se esboroa mais célere.

Como era possível? Eu deambulava o meu pasmo por aquelas ruas e só deparava com déjá vus da Rua da Sé, da Rua de Lisboa, de S. João, dos Minhas Terras, da Rua do Galo e outras mais fileiras de prédios da minha Angra do Heroísmo em peso ali transplantada com todo o seu ar de senhora medianamente aristocrata, maquilhada de cores alegres e jovens, airosa e transbordante de galhardia e savoir faire, ou melhor savoir vivre.

Nunca percebi esse mistério. Os açorianos que rumaram em magotes para o Brasil na primeira metade do século dezoito, embora acabando espalhados por todo o país até Manaus, concentraram-se em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul (fundaram mesmo Porto Alegre). Levaram consigo os nomes Vargas, Rosa, Brasil, Dutra e Lacerda, bem como outros que, sendo de mulheres, foram apagados pelos dos maridos, como aconteceu às mães de Machado de Assis e de Cecília Meireles. Não tenho, porém, nenhuma particular notícia de terem esses ilhéus encalhado em Ouro Preto. O barroco das igrejas e de alguns edifícios públicos são assinaturas de uma origem no Portugal nortenho. Mas as fiadas de casas de varandas, janelas e portas pintadas de cores vivas em tons misturados, com desenhos até na própria vidraça, em puro decalque do que eu conhecia de Angra, isso para mim nunca teve explicação. O casario angrense não tem qualquer semelhança com nenhum outro na metrópole lusitana. A história não fala de algum regresso em massa de torna-viagens endinheirados como os que azulejaram as fachadas das casas do Porto e arredores. Quer dizer: não há notícia nem de terem ido nem de terem regressado, muito embora via Cabo Verde a literatura da identidade brasileira tenha chegado aos Açores e deixado marcas. De qualquer modo haveria que explicar a Angra desenhada pelo holandês Linschoten na última década do século dezasseis, que já retrata a cidade com a cara chapadinha que tem hoje. Assim sendo, a exportação só poderia ter ocorrido a partir de Angra.



Enigma. Mistério mesmo.

Quantas vezes nas aulas, com alunos brasileiros ou americanos perdidos de amor pelo Brasil, fiz um teste mostrando-lhes fotos de ruas de Angra dizendo-lhes serem de Ouro Preto. E todos sempre acreditaram piamente.

Muitos anos depois, apercebi-me de que o terceirense Vitorino Nemésio, natural da dita ilha Terceira, seu exímio conhecedor e cantador das suas maravilhas, mas também um apaixonado do Brasil, escrevera um livro, O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos (1954). Fui em cata dele e devorei-lhe as páginas convencido de que, na sua arguta prosa, o visitante terceirense me desvendaria o segredo, pois teria certamente identificado as afinidades que me assaltaram a vista. Como já calculava, deparei com deliciosas tiradas nemesianas sobre Ouro Preto: “a mais viva entre todas as cidades mortas do mundo”, “cidade encantada”; “o tempo aqui parou”, “é puro século XVIII no material da pedra e das pessoas”. […] “[U]ma cidade íntegra morta”, “o patetismo icónico  do barroco luso-brasileiro no seu frenesim colonial”, “céus de pérola ornados de água-marinha”, […] “aquela maneira de construir com janelas esquadriadas e oblongas, de florões rococó, vidros multicolores nas marquises e ferro fundido nas varandas”.

Mas nada sobre as semelhanças com as fachadas da sua Angra do Heroísmo. Só em Sabará, ao descrever uma igreja da Senhora do Ó, Nemésio estabelece uma ligação com a arquitetura da sua amada ilha: ”Se não fosse a presença dos colegas e amigos mineiros que me trouxeram aqui, supunha-me diante de qualquer capela-mor portuguesa: na capela do Santíssimo da minha Matriz, por exemplo. Na Praia da Vitória; nem mais… Espantoso prodígio da unidade de crença e de arte à distância”.

Ficarei para sempre a cozer tal mistério que cobre estas cidades gémeas, acrescidas desse outro adicional de Nemésio não ter registado tal afinidade genética, ele a quem nenhum pormenor escapava.

Quedo-me por aqui nesta digressão sem rumo e sem fecho assente, mas não sem tergiversar ainda para uma curiosidade inteiramente colateral. A dada altura do seu relato, Nemésio conta: “Enquanto António Joaquim de Almeida gentilmente me conduz através dos seus domínios, surpreendendo o riso saudável, desvanecido, de alguém que, apoiado a um bufete, religiosamente o escuta. Dentes angolares, riso límpido … Claro! É o porteiro do Museu, Onésimo dos Santos – músico, alfaiate e pintor – que todo vibra aos prodígios de um ouro que foi suor dos seus maiores”.

O parágrafo não explica nada, pois claro, todavia isso de um meu homónimo também estranhamente habitar Ouro Preto não deixa de ser curioso. Se calhar um dia, tal como aconteceu com o castelo de Cartagena de Índias, um acaso me brindará com uma resposta para esta misteriosa incógnita da arquitetura de Vila Rica, de onde tão ricas memórias trouxe comigo.

 Até lá, continuarei a conformar-me com as imagens fotográficas que partilho aqui, esperando que o leitor não suspeite ter eu entrado em fase de delírio mental.

 

Aqui vão algumas imagens das duas cidades:

 

Angra do Heroísmo:










Ouro Preto:

 



Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida 




Onésimo Teotónio Almeida

 

 

 


quinta-feira, 29 de abril de 2021

Napoleão, entre os esplendores da luz perpétua (Parte I)



Napoleão, entre os esplendores da luz perpétua.

 

Parte I

 

Nos 200 anos da morte de Napoleão Bonaparte, 5 Maio 1821

 

“Thus terminates in exile, and in prison, the most extraordinary life yet known to political history.”

The Times of London, 5 Julho 1821

 

Já tudo se escreveu sobre ele. Herói da sua pátria, pária da Europa quase inteira, louco, visionário, arrebatador, déspota, estratega, ditador, brilhante, esclavagista, encantador, Napoleão Bonaparte morreu a 5 de Maio de 1821, no seu exílio-prisão miserável da ilha britânica de Santa Helena, perdida no Atlântico Sul.

 

Envenenado com arsénico ou, segundo a versão oficial, vítima de um cancro intestinal, o ex-imperador dos franceses, entregou a alma ao Criador aos 51 anos, reconciliado com a Igreja Católica, a mesma que humilhou e perseguiu de forma quase inédita.

 

Segundo alguns dos primeiros relatos que chegaram à Europa, nos seus últimos pensamentos estiveram Deus e a nação francesa. Outros mencionam apenas o exército e Josefina, a sua primeira mulher, a quem repudiou quando percebeu que não lhe podia dar o herdeiro de que tanto precisava.

 


Napoléon sur son lit de mort, óleo de Horace Vernet, 1826

 

 

A morte do homem que dominou a Europa nos primeiros quinze anos do século XIX foi dissecada desde o primeiro momento. Às páginas dos jornais ingleses e franceses chegaram, no início de Julho de 1821, todos os pormenores: dos últimos dias à autópsia, do testamento ao funeral, tal era o fascínio que este personagem continuava a exercer no imaginário das gentes que habitavam a Europa de há 200 anos.

 

A 11 de Julho, o diário bonapartista e liberal francês Le Constitutionel, além de reproduzir o que haviam escrito dias antes os jornais ingleses sobre os relatos de Santa Helena, não poupava nos encómios a Napoleão:

 

“Poucos conquistadores tiveram uma fama tão extensa quanto Napoleão Bonaparte. O seu nome encheu toda a Europa; foi ouvido nas fronteiras da Ásia. Colocado, pela força dos acontecimentos, à frente de uma grande nação, fatigada por uma longa anarquia, herdeiro de uma revolução que tinha exaltado todas as paixões boas e más, ele foi elevado tanto pela energia de sua própria vontade, quanto pela fraqueza dos partidos, ao poder supremo; colocou a França em estado de guerra permanente, substituiu a ilusão de glória pelos reais benefícios da liberdade e, identificando-se com a independência nacional, tirou do medo de um jugo estrangeiro o principal instrumento de uma autoridade sem limites. (...)

 

“Napoleão causou uma forte impressão nas mentes e na imaginação da humanidade, e assim devia suceder. Um soldado que, pela força do génio, se eleva acima dos seus contemporâneos; que dá tranquilidade a uma sociedade perturbada e dita as suas leis aos soberanos, aparece no mundo como um personagem maravilhoso, e a terra rende-se diante dele.”1

 

Napoleão Bonaparte foi, de facto, um ciclone na vida da Europa e isso mesmo sentiram os europeus dos alvores de oitocentos, vendo, entre espanto e angústia, como o mundo que conheciam parecia desmoronar-se ante o avanço confiante e imparável daquele corso de quem se dizia valer, em batalha, mais de 30.000 homens, tal era a energia que a sua presença inspirava e a aura de vencedor que o acompanhava.

 

Napoleão via-se como libertador dos povos oprimidos – foi esse o papel que reclamou para si nas Mémorial de Sainte-Hélène, as suas memórias póstumas. Os seus inimigos viam-no como o opressor. Até o Papa foi preso durante 5 anos, dois dos quais em França. O mesmo Papa, Pio VII, que presidira em Paris à lendária Coroação de Bonaparte em 1804 e que assistira impávido enquanto o próprio imperador se coroou e coroou Josefina, relegando o Pontífice Romano para a posição de espectador – depois de ter feito o longo e histórico caminho desde Roma.

 

Terá parecido um admirável mundo novo. Fronteiras e impérios ancestrais caíam, reinos novos eram criados, dinastias multi-seculares eram depostas ou fugiam e reis novos, familiares de Napoleão, eram postos em tronos tão distintos como o de Nápoles, o de Espanha, o de Itália, o da Holanda ou o da Suécia.

 

Foi esse mundo novo, com leis novas e um ar de uma certa modernidade burguesa que o Congresso de Viena tentou aplacar, restaurando fronteiras, reis e papa aos seus tronos e um certo modo de vida pré-revolucionário. 

 

Apesar dos esforços, o mundo pós-napoleónico é, em grande medida, o resultado de Napoleão. Grande normalizador da França revolucionária, Napoleão foi a transição entre o mundo radical de Robespierre e o liberalismo que ainda tomava forma. O regresso do absolutismo imposto por Viena foi efémero. A marca de Napoleão estava para ficar.

 

* * *

 

No exacto momento da morte do mítico ex-imperador, o nosso menos mítico Rei D. João VI estava, também ele, no meio do Atlântico Sul, certamente não muito longe, em milhas náuticas, de Santa Helena.

 

Nove dias antes, a 26 de Abril de 1821, e no meio de um caos com paralelo na partida de Lisboa em 1807, a corte portuguesa – ou cerca de 4000 almas dela – levantara finalmente âncora no Rio de Janeiro e voltava a Lisboa, depois de 13 anos cariocas.

 

O contraste entre os dois soberanos dificilmente poderia ser mais gritante. Se Napoleão fizera mover fronteiras e dinastias pela sua bravura e liderança, D. João viveu a sua regência e o seu reinado como uma constante vítima das circunstâncias que outros lhe impunham. Mesmo considerando que a fuga para o Brasil foi um golpe de alguma mestria, quando comparada com a submissão e queda das restantes dinastias europeias, não deixou de ser uma fuga.

 

Em 1821, D. João VI regressava para tentar salvar o que restava num reino que se dava desafiantes ares liberais, consequência da Revolta Liberal que começara no Porto em Agosto de 1820 e se estendera pelo país, exigindo ao Rei a adopção de uma constituição baseada no modelo espanhol. Os ventos liberais tinham chegado também ao Brasil, com as notícias do que se passava em Lisboa.

 

A 26 de Fevereiro uma sublevação militar no Rio de Janeiro tinha forçado o Príncipe Real, D. Pedro, a jurar a constituição nascente em nome do seu augusto pai. No mesmo dia, o Rei encenou uma demonstração de aquiescência para acalmar os ânimos, desfilando em coche pelas ruas do Rio e ouvindo, no teatro, vivas à constituição que não jurara e também não renegara2. D. João fora, uma vez mais, forçado a uma atitude, mais um eco de um reinado inteiro.

 


Acceptation provisoire de la constitution de Lisbonne: à Rio de Janeiro, en 1821; gravura de Jean-Baptiste Debret

 

A consciência de que o regresso do Rei e da Família Real era inadiável em face dos acontecimentos em Lisboa – onde decorriam Cortes à revelia do Rei –, fez com que crescesse a hostilidade numa terra que, após uma década de franco desenvolvimento pela presença da corte, estava inconformada com deixar de ser o centro do império, para voltar a ser uma mera colónia.

 

Além de serem tema de intriga militar e política, os argumentos para que os Bragança não regressassem a Lisboa tinham tomado a forma de panfletos, onde se procurava – com assinalável sucesso – incendiar a opinião pública.

 

A tentativa de rebater os argumentos levou à impressão de respostas às proposições do autor do panfleto anónimo, que circulara primeiro em francês e em que a questão fundamental era: “O Rei, e a Família Real de Bragança devem, nas circunstancias Presentes, voltar a Portugal, ou ficar no Brazil? Tal he a questão d'alta Politica, que occupa agora a attenção do Portuguez da Europa, e d'America, e parece dividir em opinião as melhores cabeças.”3

 

Com assinaláveis preocupações democrática e racional de mostrar o argumento e o seu contrário, a publicação falhou em toda a linha no seu objectivo, que era o de justificar o regresso do Rei e as vantagens da manutenção da união entre o Reino de Portugal e Reino do Brasil. Ironicamente, era a defesa do rei absolutista que invocava as maravilhas do liberalismo.

 

As proposições do folheto original acabaram provadas: a independência do Brasil seria o resultado “d’hum passo tão impolitico” como o regresso a Lisboa, num momento em que Portugal “não póde absolutamente passar sem o Brazil”, enquanto “o Brazil pelo contrario não tira a menor vantagem da sua União com Portugal”.

 

O apelo do anónimo autor era a que D. João VI fundasse no Brasil o império florescente que inevitavelmente perderia se voltasse a Portugal. Em retrospectiva, não deixavam de ter razão quando afirmavam que o Rei regressar a Lisboa o colocaria “em poder dos Rebeldes” e que o atraso no regresso provavelmente atrasaria “o vôo revolucionario dos Portuguezes da Europa”.

 

O plano inicial, de que o Príncipe D. Pedro regressaria a Lisboa para tratar dos revoltosos, teve de ser abandonado depois da sublevação de 26 de Fevereiro. D. João VI decidiu regressar ele próprio, deixando D. Pedro como regente do Reino do Brasil.  Numa sucessão vertiginosa de acontecimentos, preparou-se o regresso do Rei e a eleição dos representantes nas Cortes.

 

Le Moniteur universel, jornal oficial do Reino de França, daria conta aos leitores, em Julho, das cenas pouco ortodoxas vividas no Rio de Janeiro no final de Abril – as exigências feitas ao Rei que partia e de como o “demónio da anarquia” andava por ali. Naquilo que aos portugueses do século XXI parecerá um invertido dejá vu, relatava que “os ex-directores do banco, cujas malversações quase haviam causado a ruína daquele estabelecimento, tiveram todos os seus bens confiscados”4.

 

O Le Constitutionel detalhava os acontecimentos: “A partida do rei deu lugar a algumas cenas muito desagradáveis, quando o povo quis fazer desembarcar uma quantidade de bens e outras coisas preciosas destinadas ao uso  da Família Real na Europa; mas a tropa fez um ataque vivo e inesperado sobre o povo reunido na bolsa, e algumas pessoas perderam a vida. Tal é o espírito de descontentamento manifestado pelo povo no Rio de Janeiro e noutras partes do Brasil, que esperamos eventos deploráveis.”5

 

Le Moniteur universel, 21 Julho 1821

 

Sala da biblioteca do convento de Nossa Senhora das Necessidades adaptada a Sala das Cortes Constituintes. Desenho a traço de tinta castanha atribuído a Domingos Sequeira. (cf. Côrte-Real, Manuel, Palácio das Necessidades, 2021)

 

No meio de protestos e de tentativas de o impedir de embarcar o tesouro, o Rei partiu para Lisboa sem glória. Saíra de Lisboa empurrado para a colónia pelas tropas de Napoleão e saía do Brasil elevado a Reino empurrado para a capital europeia pelos ventos liberais que o mesmo Napoleão inspirara.

 

Em 23 de Junho, a Gazeta do Rio de Janeiro, tinha uma brevíssima nota que dava conta de que chegara um navio de Santa Helena com notícias da morte de Napoleão Bonaparte, o arqui-inimigo de Portugal, mas também cunhado do Príncipe Regente D. Pedro.

 

A Princesa Real (e futura Imperatriz do Brasil) D. Leopoldina era irmã da segunda mulher de Napoleão, a ex-Imperatriz dos Franceses Maria Luísa. Filhas, ambas, do último Imperador do Sacro Império, despromovido a Imperador da Áustria. Tudo por obra e graça de Napoleão, que com aquela união elevara a um patamar mais elevado a humilhação dos Habsburgo.

 

Não por acaso, por alturas do casamento, em 1810, Maria Carolina da Áustria, avó da noiva e Rainha de Nápoles destronada pelo noivo, terá reclamado: “é a última coisa que faltava às minhas misérias, tornar-me Avó do Diabo6.

 

O regresso de D. João VI a Lisboa, há 200 anos, mostra como, mesmo depois de cinco anos exilado e preso e então já morto, o diabo continuava a determinar a vida da Europa e da América...

 

(Continua...)

 

* * *

 

1 Le Constitutionel, 11 Julho 1821.

2 Relação dos successos do dia 26 de Fevereiro de 1821 na corte do Rio de Janeiro. - Bahia : na typ. da Viuva Serva, e Carvalho, 1821.

3 Exame analytico-critico da solução da questão: o rei e a família real de Bragança devem nas circunstâncias presentes, voltar a Portugal ou ficar no Brasil? - Bahia: Typ. da viúva Serva e Carvalho, 1821.

4 Le Moniteur universel, 20 Julho 1821.

5 Le Constitutionel, 15 Julho 1821.

6 Citada em Waltraud, Maeirhofer, Maria Carolina, Queen of Naples: The Devil’s Grandmother, 2009.

 

Ademar Vala Marques

Abril 2021








segunda-feira, 15 de março de 2021

Bandidos da TV.





Esta extraordinária série documental da Netflix mostra o que já sabíamos, que o Brasil de hoje é um país de opereta e que, no Brasil de hoje, o Estado de direito é uma gargalhada. Mas o que a série mais mostra, no Brasil e em todo o mundo, é o risco da delação premiada. Ameaçando um desgraçado qualquer com dezenas de anos de prisão, é fácil obter-se o que se quiser. O preso diz tudo, confessa tudo, acusa tudo e todos, quem nós quisermos. Daí à manipulação e ao abuso policiais vai um passo. Seja inocente ou não o protagonista de «Bandidos da TV», o que mais impressiona é a forma como as autoridades de um país – Brasil, Portugal ou outro – podem construir um «caso» com base na delação premiada e no testemunho de cúmplices criminosos, desejosos de salvarem a pele. As testemunhas dizem tudo e o seu contrário e, mesmo na ausência de outras provas (documentais, etc.), um ser humano pode ser condenado à prisão – o que, no Brasil de opereta, equivale muitas vezes a uma morte certa. 


Na Idade Média, a confissão era a «rainha das provas», o que incentivou a tortura, para obrigar os acusados a dizerem o que os algozes queriam ouvir. No nosso tempo, a delação premiada pode levar a resultados idênticos. Em tese, a delação premiada pode ser um bom instrumento de investigação criminal e de obtenção da prova (de prova complementar, corroborada por outros meios). Mas, na prática, o risco de, num sistema descontrolado, ela tornar-se a «rainha das provas» e converter-se no método «normal» (e preguiçoso) de trabalho das polícias é muito, muito grande. 


Risco tremendo, resultados revoltantes. 





   



  




terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Carnaval 2021.

 


 

O Carnaval 2021 é o que é: sem descolar do limiar dos infernos e colado ao dia dos namorados, este ano obrigados a ser mais valentes do que valentins.

Quem diria que lhe viria a assentar que nem uma luva a Manhã de Carnaval de Tom Jobim e Luiz Bonfá, a Aula de Violão numa história de Orfeu e Eurídice?

Não a história passada na Trácia, mas a que se desenrola no Rio de Janeiro de Orfeu Negro, o premiadíssimo filme de Marcel Camus (1959). Os prémios da película não interessam nada aqui. O que interessa é que este Orfeu, motorista de autocarro, toca para fazer o sol nascer. Isso. A guitarra a vibrar nas suas mãos faria despontar o sol todas as manhãs. 

E nós à espera do comboio na paragem do autocarro.




Manuela Ivone Cunha

 





quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O Brasil é Sensacional.

 


https://www.tsf.pt/mundo/candidatos-assassinados-muitos-nomes-bizarros-e-aliancas-impossiveis-eis-as-municipais-do-brasil-13036529.html

                                                  

«Há ainda 26 Hulks e oito Batman. E três Trumps, para quem, como para o outro, a eleição ainda não acabou.

E os slogans arrasadores, como o de Tia Carmen, ex-dona da boite Carmen Club, de Porto Alegre: "Tia Carmen, Dona do Puteiro: Vote em mim ou eu conto."

Um dos slogans que mais vem viralizando é de um candidato, de Matinhos, Santa Catarina, que nem participa nas municipais deste ano. No entanto, o lema de Cassiano Piccoli, que nasceu com deficiência de crescimento, ficou na memória: "vota Anão, dos males o menor".»





 


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Absoluto desprezo.







Esta artista chama-se Sara Giromini e tem por nome de guerra Sara Winter. Antiga feminista, é agora uma das mais radicais e polémicas apoiantes de Jair Bolsonaro. Para o caso, isso não interessa, ou talvez interesse, mas vamos ao essencial: uma menina foi violada pelo tio desde os 6 anos. Agora, com 10 anos, engravidou. A justiça autorizou o aborto. O aborto não interessa, ou pouco interessa. O que interessa é que essa artista que ali vedes divulgou nas redes sociais a identidade da menina. Podemos ser contra ou a favor do aborto, concordar que ele possa ser feito apenas em situações horripilantes como esta. Podemos ser a favor de tudo ou contra tudo. O que ultrapassa tudo, mas absolutamente tudo, é que, por raiva e ardor militante, Sara Winter publicitou o nome de uma criança vítima de violação. Vítima durante quatro anos de inferno. O Ministério Público pede agora uma indemnização a Sara Winter, vejamos no que dá. E vejamos o que dizem – ou silenciam – do gesto de Sara Winter os apoiantes portugueses de Jair Messias Bolsonaro e das suas tristes cruzadas. Absoluto desprezo. 










     




quinta-feira, 4 de junho de 2020

o deus das pequenas coisinhas.








Via Rita Sá Marques, entrou-me hoje pela vista dentro o trabalho estupidamente estupendo de Dalton Paula, de que aqui apenas se mostra uma pálida e muito pequenina amostra. Tudo o que ali vemos tem, digamos, boa energia e, logo, boa onda, quem precisados estamos.