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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O #MeToo da Pérsia.




A revolução de 1979 foi uma salada russa, e não um monólito islamita. Além dos islamistas, outros grupos participaram no levantamento: comunistas, socialistas, nacionalistas laicos, etc. Encarnando a figura da intelectual laica, a juíza progressista Shirin Ebadi engrossou as fileiras que derrubaram o Xá. A desilusão, porém, não tardou. Ebabi julgava que o Irão caminharia para um regime constitucional inspirado em Mosaddegh, mas, na verdade, caminhou no sentido do totalitarismo. Tal como os outros mencheviques, Ebadi foi aniquilada pelos bolcheviques, os islamistas de Khomeini. E se o Xá reprimia apenas o processo político (modelo autoritário), Khomeini começou a reprimir toda a sociedade (modelo totalitário). As maiores vítimas deste totalitarismo foram as mulheres. Pelo simples facto de ser mulher, Ebadi perdeu o cargo de juíza.
Ao longo das suas memórias (O Despertar do Irão, Guerra & Paz), Ebadi utiliza muito a palavra “segregação”. Uma palavra apropriada, sem dúvida. O Irão transformou-se numa espécie de Apartheid com a misoginia no lugar do racismo. Qualquer demonstração de feminilidade passou a estar no centro da política. Até podemos dizer que esta teocracia foi construída sobre um grande pilar: impedir que as mulheres infectem os homens; a mulher é por inerência uma rameira que desorienta o homem, esse ser casto que é apanhado desprevenido pela peçonha da fêmea. Este totalitarismo de alcova gerou e ainda gera um ambiente tão sinistro e absurdo que por vezes chega a ser cómico. Ao longo da leitura de O Despertar do Irão ficamos muitas vezes com a impressão de estarmos perante uma série de humor nonsense. Por exemplo, as festas de anos das filhas de Ebadi tinham de ser realizadas durante a hora de ponta, pois desta forma o ruído dos carros abafava o som da aparelhagem. Se descobrisse a festa, a polícia dos costumes (komiteh) invadiria a casa. As festas eram proibidas, tal como o álcool e cassetes de música. Eram e julgo que continuam a ser.
A restante lista do nonsense é interminável: se for apanhada com maquilhagem, uma mulher pode ser presa; se mostrar o pulso, uma jovem pode ser humilhada em público; se mostrar o tornozelo, uma rapariga pode ser açoitada. Ser mulher é um pecado, logo qualquer centímetro do corpo feminino é pecaminoso, mesmo o tornozelo, que, como se sabe, é uma proeminência deveras excitante. Perante este retrocesso da condição feminina, Ebadi começou uma segunda vida enquanto advogada das causas difíceis: a defesa dos dissidentes e a defesa das mulheres. Tornou-se particularmente subversiva, porque nunca invocou leis e teorias de Direitos Humanos exteriores à tradição islâmica. Para criticar a teocracia, Ebadi usou sempre os códigos morais do Islão, provando com isso duas coisas: o radicalismo islamita não respeita o Islão, e não existe um abismo irreconciliável entre a fé islâmica e a decência constitucional.
Camelia Entekhabifard (jornalista exilada nos EUA) nasceu em 1973, isto é, tem a idade das filhas de Shirin Ebadi. Nas suas memórias (O Preço da Liberdade, Edições Asa), podemos ver que a demência surreal não anulou apenas a vida profissional de mulheres maduras como Ebadi. O rolo compressor do nonsense também chegou à vida das adolescentes. Por exemplo, Entekhabifard foi espancada por usar sandálias sem meias no pico do Verão. No sistema educativo, Entekhabifard presenciou a implementação da segregação através do fim das escolas mistas. Parece que as cartas de amor e os beijos fugidios são armas de destruição massiva. Entekhabifard viu rapazes a serem açoitados e raparigas a serem levadas a um hospital para que um médico confirmasse a sua virgindade. O seu crime? Estavam numa festa. Quando cresceu, Entekhabifard serviu uma vingança bem fria ao regime através do seu trabalho jornalístico que apontou baterias a esta patética sexualização da política: fez peças sobre a “revirginização de raparigas” e sobre a prostituição na cidade santa de Qom. Pagou caro esta coragem: ameaças de morte, prisão, tortura, exílio.
Devemos notar que a luta de Entekhabifard e Ebadi não tem como referência uma noção abstracta de Direitos Humanos ou de Direitos da Mulher. Pelo contrário, estas duas mulheres têm como referencial a memória familiar e a sociedade iraniana pré-79. Entekhabifard não esconde o respeito pelo legado do Xá e da Imperatriz Diba no que diz respeito à emancipação das mulheres. Ao invés de Entekhabifard, Ebadi deplora a velha dinastia, mas não nega que os Pahlavi dignificaram a condição feminina, um pouco à imagem do programa laico de Atatürk na Turquia. Antes de 1979, Teerão era uma grande metrópole com um leve ar cosmopolita. Nos anos 60 e 70, a liberdade e a libertinagem de Teerão não seriam as mesmas de Greenwich Village, mas a capital da Pérsia estava mais próxima do Ocidente do que de Riade ou Islamabad. Neste ambiente de abertura, Shirin Ebadi teve a possibilidade de entrar na magistratura, e a meninice de Entekhabifard foi semelhante à de qualquer jovem ocidental: bonecas Barbie, acesso a qualquer tipo de livros, festas, maquilhagem, música punk e a idolatria dos ícones pop americanos. Esta normalidade muito ocidental descrita por Ebadi e Entekhabifard foi interrompida pela revolução islamita. Nós, ocidentais, habituámo-nos a ver o Irão como um sinónimo de fanatismo religioso e de anti-ocidentalismo, mas na verdade o Irão é porventura o país muçulmano mais parecido com o Ocidente. Não por acaso, Marjane Satrapi escreveu esse grande romance gráfico chamado Persépolis (Edições Contraponto) para provar este ponto: a normalidade iraniana está mais próxima do cosmopolitismo do que do islamismo, até porque a Pérsia é anterior ao próprio Islão.
Persépolis é um romance sobre a família e sobre a pátria, sobre o carinho familiar e sobre a busca de uma redenção colectiva - para a família e para o país. Através das vinhetas da Satrapi-criança, vemos a luta contra o Xá e, logo depois, a desilusão perante o desenlace da revolução. Através das vinhetas da Satrapi-adolescente, vemos a resistência do espírito perante a opressão: as festas às escondidas, a compra de cassetes à socapa, o desafio aos professores, a avó que ensina a neta a colocar jasmim no sutiã, a fuga para a Áustria. Através das vinhetas da Satrapi-adulta, vemos uma sociedade cosmopolita a resistir às escondidas, isto é, vemos um país esquizofrénico onde as pessoas têm uma – falsa – persona pública e um – verdadeiro – alter ego privado. E é esta sufocante esquizofrenia que leva Satrapi ao exílio derradeiro em França. Mas, apesar deste sabor trágico, Persépolis não deixa o Irão (e o leitor) num beco sem saída. O livro é percorrido por um espírito de esperança e de orgulho em relação à pátria persa. Como todas as grandes escritoras, Satrapi não mostra isso de forma explícita, mas o patriotismo está lá, escondido nos pormenores. É como se Satrapi acreditasse que a Pérsia tem a redenção à sua espera. E, de facto, o regime de 1979, ao contrário da civilização persa, não pode durar para sempre. O seu fim até pode estar mais próximo do que se pensa. A geração que devia estar a consumar a revolução islamita, a geração de Satrapi, está a contestá-la. Aliás, Persépolis confirma uma das frases mais fortes de Shirin Ebadi: “a juventude iraniana permanece animadamente pró-americana”. O Irão ainda vai ser nosso amigo. Um país onde as avós enchem o sutiã com jasmim só pode ser nosso amigo.


Henrique Raposo


 

 

Ensaio publicado em 2012 na revista do Expresso (no Actual, se a memória não me valha); o título original é “o Irão é nosso amigo”.

 

 

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A pátria de Camus.















A pátria de Camus

A pátria cosmopolita como defesa contra multiculturalismos,
nacionalismos e islamismos


 


 


 


Entre 1954 e 1962, a guerra civil da Argélia foi marcada por três grandes narrativas: a infâmia de Jean-Paul Sartre, a frieza de Raymond Aron, a decência de Albert Camus. Comecemos pelo nauseante pântano de Sartre. Defensor do Gulag e da pureza purgante de qualquer adaga revolucionária, Sartre legitimou o terrorismo argelino. A partir do conforto burguês de Paris e em nome de chavões como Revolução ou Humanidade, Sartre defendeu o assassínio dos compatriotas que viviam do outro lado do Mediterrâneo. Como sempre, palavras abstractas legitimaram o desprezo por seres humanos concretos. Em nome do anti-Colonialismo, Sartre simplesmente não quis saber do destino de um milhão de franceses. Os pied-noirs eram colonos reaccionários e, por isso, desprezíveis, descartáveis, espezinháveis.
Para Sartre e, posteriormente, para toda a escola pós-colonial, relativista e multiculturalista centrada em Edward Said, o convívio entre franceses e muçulmanos era inaceitável, os europeus tinham de ser derrotados e expulsos para o mar. Para Aron, a questão não se colocava ao nível da moral, mas no campo da exequibilidade. Na perspectiva aroniana, uma Argélia com presença francesa era inviável, porque os ventos da história exigiam as independências dos povos colonizados; depois de perder a Indochina, a França perderia a Argélia e, nesse sentido, a melhor solução era a retirada organizada dos pied-noirs. Além disso, Aron argumentava com dois pontos extra. Primeiro, a colonização não trazia qualquer tipo de lucro; com ou sem guerra, a Argélia era um encargo financeiro descartável. Segundo, a coabitação cultural entre franceses e argelinos era impossível, estávamos a falar de dois sistemas de valores incompatíveis. Mas não seria possível aculturar os argelinos aos valores franceses? A resposta de Aron era negativa, até porque a bomba demográfica argelina era incontrolável. Em 1962, já depois do fim da guerra e da fuga apressada e ruinosa de um milhão de retornados franceses, percebeu-se que Raymond Aron teve sempre a razão analítica do seu lado. Contudo, há uma diferença entre razão analítica e decência moral. Na frieza de Aron estava escondida uma desistência perante a grande questão: como alcançar a coabitação cosmopolita entre duas culturas, entre duas etnias, entre duas religiões? Se já era uma questão relevante em 1960 no contexto do colonialismo, em 2016 esta é a questão mais importante de uma Europa marcada pela turbulência das suas comunidades muçulmanas.
Recusando a imoralidade de Sartre e uma certa amoralidade de Aron, Camus não evitou a questão, até porque ele próprio era pied-noir. Odiado pela esquerda sartreana e pelos islamitas argelinos e visto como um ingénuo por Aron, Albert Camus defendia uma Argélia pluralista que permitisse o convívio democrático entre franceses e argelinos; respeitando o mesmo chão comum patriótico, franceses da França, franceses da Argélia, argelinos e mestiços podiam viver juntos. Quando a guerra civil rebentou, o autor de “A Peste” criticou os dois lados. Contra os nacionalistas argelinos, Camus argumentou que a luta contra a submissão não se fazia com ataques terroristas que chacinavam populações civis. Ao contrário de Sarte, Camus via a Humanidade em seres humanos concretos, e não em palavras abstractas. Além do mais, não fazia sentido lançar uma purga sobre a presença francesa; o sonho de um ano zero que limpasse século e meio de colonização europeia era uma utopia que acabaria num mar de cinza sem Fénix à vista. Contra os colonos franceses, Camus criticou o absurdo que era o silenciamento de nove milhões de árabes e magrebinos. Um milhão de colonos brancos não podia governar nove milhões de muçulmanos sem consentimento institucional. Por esta razão, Camus defendeu reformas políticas que canalizassem para o interior do sistema o descontentamento local. O objectivo era a construção de um centro democrático entre a xenofobia branca e o terrorismo árabe; a meta era uma pátria partilhada por democratas franceses e democratas argelinos, uma Argélia autónoma mas integrada na soberania da França, uma Argélia reformada em democracia contra a reacção dos colonos radicais e contra a revolução da aliança entre Sartre e islamistas. Como muitas vezes sucede na história, a solução mais decente não teve hipótese. O centro político desejado por Camus transformou-se numa terra de ninguém entre as duas trincheiras da batalha de Argel. 
Meio século depois, a batalha de Argel começa a ser transposta para este lado do Mediterrâneo. A sucessão de ataques terroristas levados a cabo por muçulmanos em solo europeu está a criar um clima de tensão quase insuperável entre a maioria branca e a minoria muçulmana. Se revermos o filme “A Batalha de Argel” (1966), de Gillo Pontecorvo, percebemos que aquele ciclo de violência já foi accionado entre nós: o radicalismo islamita torna impossível o dia-a-dia, pois a intenção dos terroristas é mesmo essa – levar as autoridades e os cidadãos brancos até ao ponto sem retorno, isto é, o ponto em que qualquer civil muçulmano passa a ser encarado como um potencial inimigo; este medo gera a desconfiança mútua que corrói por completo os laços cívicos entre brancos e castanhos; no final, resta às autoridades a imposição de um estado de emergência que, com o tempo, evolui para uma longa guerra civil. Em 1962, essa guerra civil determinou a derrota da pátria de Camus. Em 2016, não temos esse luxo. Desta vez, Camus não pode perder. O que está em causa não é uma colónia ou província distante, mas sim a própria natureza das democracias europeias, a começar na francesa. A aliança entre democratas europeus e democratas muçulmanos não pode ser uma miragem. Quem acredita na democracia, na liberdade e no pluralismo cosmopolita tem o dever de fazer tudo para construir essa aliança. Por outras palavras, tem o dever de lutar ao mesmo tempo contra islamitas, nacionalistas de direita e multiculturalistas de esquerda, os herdeiros do terceiro-mundismo de Sartre.
 
A aliança entre esquerda e islamismo radical
 
Na construção desta aliança, o problema começa logo na dignificação dos reformistas ou liberais muçulmanos, que encontram pouco tempo de antena no nosso espaço público. A direita do choque de civilizações não está disposta a encontrar diferentes matizes nas comunidades muçulmanas; esta direita concebeu um homem de palha, o Muçulmano, que é visto como um homem inconciliável com o homem ocidental. Desta forma, Le Pen e a Fox News só estão interessados em ouvir os islamitas radicais, pois esta narrativa nacionalista exige a fusão das palavras muçulmano e fanático. Curiosamente, a esquerda do politicamente correcto multiculturalista (que é hegemónica no espaço público) actua da mesma maneira, transformando o radicalismo islamita e anti-ocidental na única versão visível do islão. É uma das grandes fraudes intelectuais do nosso tempo: em nome da retórica anti-ocidental à la Said, herdeira do anti-colonialismo de Sartre, a esquerda está sempre disposta a defender um movimento cultural e político que só pode ser visto como fascista ou reaccionário - o islamismo radical. Seyran Ates (“Der Multikulti-Irrtum”), feminista alemã de origem turca que luta há anos contra esta aliança entre o multiculturalismo ocidental e o islamismo radical, resumiu bem a questão:
 
“As feministas de esquerda alemãs são paternalistas. Fazem manifestações contra a Igreja Católica, mas insistem em tolerar os véus nas mulheres turcas, porque afirmam que isso permite à mulher turca preservar a sua cultura. Mas o véu não é mais do que uma expressão de opressão.”
 
Esta fraude intelectual e moral é a própria essência do ar do tempo, e encontra o seu zénite nesta questão feminina. Perante o choque entre uma rapariga muçulmana que quer viver como uma europeia normal e a sua família tradicionalista que quer impor um casamento forçado, os ideólogos da esquerda multiculturalista defendem a tradição representada pela família e não a liberdade de escolha da rapariga. Como diz Nick Cohen, os reformadores e reformadoras muçulmanas são profundamente desconfortáveis para a esquerda:
 
“Intelectuais de esquerda tratam estes muçulmanos como uma espécie de Uncle Tom, só porque estão disponíveis para trabalhar com o governo para evitar que jovens se juntem ao Estado Islâmico. E, se estes muçulmanos são criticados, o politicamente correcto raramente critica os clérigos radicais que legitimam a violência religiosa”.
 
Repare-se na perversão que domina o nosso debate: os muçulmanos que procuram harmonizar o islão com a democracia são ridiculizados pela esquerda; são descritos através da caricatura (Uncle Tom) do sujeito que não tem consciência de já foi mentalmente colonizado pelo eurocentrismo. Os marxistas diziam que o proletariado não votava nos partidos comunistas porque estava alienado em relação à sua consciência de classe. Estes pós-marxistas do multiculturalismo repetem a fórmula, dizendo que o muçulmano liberal é um ser alienado em relação à sua consciência cultural. Um traidor, no fundo; não menos do que um vendido. Se estes muçulmanos liberais são ridicularizados, os islamitas são respeitados e legitimados, pois são heróis da luta contra o “imperialismo eurocêntrico”. A fraude até seria cómica se estivesse nas margens do ar do tempo; como está bem no centro da narrativa vigente, é mesmo uma tragédia: de manhã, a esquerda defende os direitos de gays e das mulheres; à tarde, apoia pela acção ou pela inacção o movimento mais homofóbico e misógino, o radicalismo islamita.
O efeito desta aliança entre esquerda e islamismo radical é o silenciamento das muçulmanos e muçulmanas que tentam reformar e democratizar o islão. Nesta atmosfera, nomes como Maajid Nawaz, Irshad Manji ou Seyran Ates não têm nem metade do espaço que merecem. Estas e outras figuras arriscam literalmente a vida para tentar reformar o islão, pelo menos o islão dos muçulmanos a viver no Ocidente, mas são traídos pela esquerda em geral. Aliás, a forma como esta esquerda pós-marxista está a trair os democratas muçulmanos faz lembrar o desprezo que Sartre e afins devotavam aos dissidentes da URSS e de outros regimes comunistas como Sakharov ou Milocz. 
É importante perceber que esta forma de pensar, o multiculturalismo, não tem apenas uma dimensão discursiva ou intelectual (também conhecida por “politicamente correcto”). O multiculturalismo é em si mesmo uma política de estado, é um dos braços do estado social de vários países e cidades europeias. O caso de Birminghan, a segunda cidade do Reino Unido, é um bom exemplo. Em 1985, uma onda de motins rebentou na cidade. Na resposta, as autoridades criaram nove conselhos comunitários para nove comunidades distintas, que passaram a ter assento político na câmara municipal (exs.: African and Caribbean People’s Movement, Council of Black-Led Churches ou Bangladeshi Islamic Projects Consultive Committee). A perversão culturalista desta medida criou dois problemas, um moral e um político. O problema moral está na efectiva anulação do conceito de “indivíduo” e a elevação do conceito de “comunidade”; o indivíduo deixa de ser independente, deixa de ter um livre arbítrio capaz de transcender a sua origem. Por outras palavras, a esquerda pós-utopia marxista encontrou o seu refúgio numa forma de pensar idêntica à do romantismo reaccionário do século XIX e início do século XX. Nesta narrativa que detém a hegemonia gramsciana, o muçulmano europeu é prisioneiro de uma única identidade, a religiosa. Nunca se assume que um muçulmano tem capacidade ou interesse para ser conservador, liberal, reaccionário, fascista, revolucionário, socialista, ambientalista, feminista, etc. Assume-se que o muçulmano só pode ser muçulmano. É por isso que o termo “muçulmano moderado” é perverso, representando bem o racismo escondido do politicamente correcto: o muçulmano é visto como alguém que só consegue pensar através da religião, restando-lhe apenas uma variante: ser pouco fanático (os tais “moderados”) ou ser muito fanático (os radicais).
O problema político é evidente: as comunidades passaram a lutar entre si pelos recursos do orçamento municipal; o convívio cosmopolita entre pessoas de diferentes etnias e religiões não só é negado do ponto de vista filosófico e moral, como é estimulado politicamente. A identidade de cada indivíduo, seja ele negro, castanho ou branco, deixa de ser republicana, constitucional e patriota e passa a ser culturalista, tribal e pós ou anti-patriota. Não há cidadãos, apenas muçulmanos do Bangladesh, muçulmanos do Paquistão, negros das Antilhas, chineses, etc. Os direitos (quer os civis, quer os sociais) deixam de depender de um conceito de cidadania universal e passam a depender de uma fidelidade rácica e tribal, numa espécie de apartheid financiado pelo estado social. Como defende Kenan Malik (“Multiculturalism and its Discontents”), é neste ponto que começa a perversão da retórica anti-racismo que tutela o politicamente correcto: a igualdade deixa de ser uma luta pela paridade legal de todos os indivíduos independentemente da sua raça ou religião e passa a ser a defesa de direitos culturais ligados a uma determinada raça ou religião; cada comunidade passa a ter o seu conjunto específico de direitos e deveres completamente distinto dos restantes. Em consequência, perde-se o centro vital, o chão comum partilhado por todos, a pátria cívica. Os efeitos práticos desta viragem da cidadania patriota e cosmopolita para uma pertença comunitária e fechada foram desastrosas. Em 1985, os motins tiveram de facto origem na pobreza: negros, muçulmanos e brancos juntaram-se para protestar contra os problemas económicos e urbanísticos da cidade de Birmingham. Em 2005, motins surgiram novamente, mas desta vez a luta ocorreu entre negros e muçulmanos.
Na teoria, o republicanismo francês é diferente deste multiculturalismo britânico, alemão, holandês, belga, mas na prática a França encarou os muçulmanos de forma multicultural, como uma comunidade homogénea e separada do grosso da sociedade. Os jovens magrebinos de segunda geração ficam assim presos numa terra de ninguém sem ligação à cultura francesa e sem ligação às tradições dos seus pais. Como diz Olivier Roy, este espaço vazio é aproveitado todos os dias pelo islamismo radical, que fornece uma identidade absoluta a jovens que crescem sem qualquer identidade.
Em resumo, a conversa sobre o “fracasso das políticas de integração” é em si mesmo um equívoco, porque nunca existiu uma política de integração na Europa. O multiculturalismo procurou a desintegração; o muçulmano não integrado na pérfida cultura eurocêntrica era o muçulmano que interessava projectar. Os resultados estão à vista.
 
Cosmopolitismo versus Multiculturalismo
 
Portanto, é urgente separar as águas entre dois conceitos: multiculturalismo não é cosmopolitismo; o multiculturalismo é uma hidra de diversos nacionalismos, é o exacto oposto de uma cidade aberta, plural e cosmopolita. Se um cosmopolita defende a diversidade e a miscigenação no mesmo chão comum baseado na herança do Direito Natural (os direitos inalienáveis de qualquer indivíduo independentemente da sua origem geográfica, étnica ou religiosa), o multiculturalista defende a diversidade sem mistura, porque recusa a ideia de chão comum, recusa a ideia de que possa existir uma lei universal para cristãos e muçulmanos. Se o cosmopolitismo pugna pela igualdade perante da lei de todas os indivíduos independentemente da sua origem, o multiculturalismo luta pela desigualdade legal das comunidades. Tal como o nacionalismo de Le Pen, Farage, Wildeers e Trump, o multiculturalismo assenta a sua base filosófica no choque de civilizações, na ideia de que raças e religiões não podem conviver no mesmo espaço político. A extrema-direita usa deste pessimismo culturalista para defender a expulsão do “outro”, alegando que o muçulmano é demasiado bárbaro para compreender conceitos como Estado de Direito, Direito Natural ou Direitos Humanos. A esquerda multiculturalista usa este pessimismo para defender a segregação através do estado social, impedindo que o “outro” estabeleça contacto com as leis e costumes da maioria branca, alegando que o Direito Natural e o Estado de Direito são manifestações eurocêntricas. Para usar os termos clássicos de Ferdinand Tönnies, a extrema-direita, a esquerda multiculturalista e o islamismo radical apostam na romântica e potencialmente fascista Gemeinschaft (comunidade de laços de sangue) contra a Gesellschaft (sociedade de acordos contratuais entre pessoas de diferentes origens); apostam na barbárie do direito de sangue contra a civilização do direito de solo. Contra estas três pulsões que ganharam raízes na Europa, só nos resta um caminho: a defesa da aliança cosmopolita de Camus entre democratas europeus e democratas muçulmanos.
Nos intervalos da enésima legitimação do terrorismo, os herdeiros de Sartre criticarão esta aliança da mesma forma que Said criticou Camus, isto é, considerarão que se trata de um vil produto da velha mente colonizadora que insiste em viciar o muçulmano no ópio ocidental. É uma posição moralmente inaceitável. Por sua vez, grande parte da direita, quer com base no liberalismo aroniano, quer com base no radicalismo de Le Pen, dirá que esta aliança é uma ingenuidade. Os liberais aronianos dirão que a mistura cosmopolita entre europeus e muçulmanos até pode ser desejável mas é impossível na prática, os radicais da Frente Nacional dirão que essa mistura é indesejável. A preposição dos radicais é moralmente inaceitável; a desistência intrínseca da preposição aroniana torna-se insustentável a partir do momento em que há milhões de muçulmanos a viver nas cidades europeias.
É verdade que Aron pode voltar a ter razão (e ele costumava ter razão). É verdade que o nosso futuro poderá ser marcado por uma longa guerra civil não declarada. É verdade que o choque de civilização até poderá ser inevitável. Mas também é verdade que, por enquanto, temos o dever moral de tentar evitar esse choque, temos o dever de procurar o cosmopolitismo de Camus. Se Camus não vencer desta vez, se o cosmopolitismo entre europeus e muçulmanos aculturados à essência do Direito Natural não passar de uma quimera, se a frieza de Aron vencer de novo a decência de Camus, então o sangue e o pó da história voltarão às cidades europeias.
 
Pátria
 
Como Camus bem sabia, não há cosmopolitismo sem raízes, não há ética cosmopolita sem pátria. Um bom cosmopolita é um bom anfitrião que domina as artes da hospitalidade. Ser cosmopolita é tratar bem aqueles que visitam a nossa casa. A jusante, só podemos ser bons cosmopolitas se mantivermos a montante uma enorme estima pela nossa própria casa; só podemos amar a Humanidade se amarmos o vizinho do 4.º esq, só podemos ver a Humanidade num estrangeiro se amarmos a nossa rua, a nossa cidade, a nossa pátria. Ora, durante as últimas décadas, o multiculturalismo representou na prática a destruição organizada da nossa própria casa, a erradicação das narrativas nacionais com centenas de anos, a diabolização das nossas religiões (judaísmo e cristianismo) com milhares de anos. Como é que podemos agora reconstruir uma noção de pátria que nos liberte do multiculturalismo e que, ao mesmo tempo, evite o nacionalismo? Isso já é assunto para outra conversa. Por agora, convém apenas frisar que a pátria é mesmo aquilo que andamos a pedir, mesmo quando não temos essa noção. A esquerda celebra a liberalização dos costumes e da moral, celebra até a morte da família, mas reclama contra a liberalização da economia, globalização e desregulamentação da economia que, por exemplo, extinguiu a fábrica como grande centro de comunhão social e os sindicatos como grandes corpos intermédios. A direita celebra a liberalização da economia, mas critica a liberalização dos costumes, sentindo-se perdida numa sociedade que despreza os laços religiosas e familiares. Apesar das diferenças, esquerda e direita estão a pedir a mesma coisa: a pátria, esse espaço onde sindicatos, empresas, igrejas, famílias, associações e clubes se juntam numa lealdade de fundo ao mesmo chão comum. Como diz Robert Putman desde 2000, andamos a jogar bowling sozinhos. Se queremos evitar uma longa guerra civil com islamitas e se queremos manter a essência das nossas democracia abertas, temos de reapreender a jogar bowling juntos, temos de reaprender a articular a palavra Pátria, temos de voltar à decência de Albert Camus.
 
 
Henrique Raposo
 
(publicado originalmente na revista do semanário Expresso,
em Agosto deste ano)
 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Deus, marquises e cinismo.

 
 
 
 
 
Em “Aleluia”, Bruno Vieira Amaral abordou uma parte importante mas esquecida da nossa fauna urbana e suburbana: as igrejas protestantes que tentam recriar o Mar da Galileia no meio de caves, garagens e barracões.
 
 
Começo com uma história que nunca usei por respeito pela Tomásia, avó do Bruno, senhora que, segundo reza a lenda, gostava muito de mim. Nunca percebi porquê, visto que na altura eu era um sujeito demasiado dado aos prazeres do mundo, o tal mundo que ela detestava a partir do seu templo religioso que a abrigava dos ventos mundanos. Seja como for, a história passou-se numa manhã de Agosto de 1991. Ainda era cedo, mas já estava calor, e o meu tio caiava o muro da casa. Se o calor de Agosto é sempre sufocante, o calor de Agosto no meu bairro (Portela da Azóia) era um calor de Gomorra. Estávamos sempre rodeados por uma neblina amarela, uma patina de pó das ruas não alcatroadas. Imaginem Dickens em amarelo (e não em cinzento) e ficam com uma imagem certeira. Ao fundo da rua, ainda meio camufladas pelos torvelinhos de pó, comecei a ver duas senhoras com papéis da mão. Desceram a rua, aproximaram-se, pediram para falar com o meu tio, mas ele reagiu como alguém que vê um mafarrico: enxotou-as, salpicou-as de cal com a trincha. A minha tia, como boa alentejana, não se benzeu, mas foi ver do mau olhado, derramando gotas de azeite em água. “São testemunhas de Jeová, nunca se sabe”. O episódio ficou esquecido no meu estendal de memórias, como se fosse um par de peúgas sem utilidade. O que é normal: eu não tinha os meios intelectuais e morais para o analisar. Só muito mais tarde, quando me aproximei da fé, é que passei a valorizar o episódio. Afinal, o par de peúgas era importante e hoje percebo a óbvia deselegância. As Testemunhas de Jeová como a Tomásia eram (e são) um cruzamento entre o mafarrico e o bobo da corte, são os totós em quem se podia bater sem peso na consciência. Isto, repare-se, não significa concordância teológica com as testemunha de Jeová; significa apenas empatia por aquelas mulheres que queriam conversar, mulheres como Tomásia, a personagem principal deste livro - apesar de nunca aparecer. De resto, “Aleluia” é como “Os Amigos do Alex”: há um fantasma omnipresente que une tudo. No filme, Alex (Kevin Costner) nunca aparece porque o realizador cortou todas as cenas em que ele aparece. Aqui não é assim. A Tomásia está sempre presente e “Aleluia” acaba por ser um confronto comovente do neto com a memória da avó.
Continuo com outra história que serve para ilustrar a minha paixão por este tema. Eu era um aluno muito cábula, só estudava no dia dos testes, acordava às 5 ou 6 da manhã e empinava a matéria; até decorava as composições de alemão sem saber o que estava lá escrito. Num dado ano lectivo, no final dos anos 90, eu tinha sempre dois colegas de estudo às seis da manhã: dois “Élderes” de camisa branca e gravata preta a comer o seu pequeno almoço na marquise oposta à minha, no prédio em frente ao meu. Eu fazia este esforço só na época dos exames, mas eles apresentavam esta disciplina militar todos os dias do ano; saíam todas as manhãs para um subúrbio já com a patina cinzenta de Dickens (Odivelas, Póvoa), já com alcatrão, já com marquises, já com o tal “caos urbanístico”, já com gente apressada porque perde três horas por dia só nos transportes. No entanto, os tipos saíam todos os dias para este mundo para tentar converter pessoas através de palavras. Repare-se: só através de palavras. Como é que isto não é comovente? Claro que em troca recebiam encontrões, gozações, agressividade e até apanhavam com chumbinhos de pressão de ar no traseiro yankee. Mas continuavam, persistiam. Na altura, confesso, não os compreendia. Nem compreendo ainda, para falar verdade, mas pelo menos já acordo todos os dias às seis da manhã.
Estas duas histórias explicam o meu fascínio pelo tema de “Aleluia”. É um tema que me fascina, porque respeito muito as pessoas destas pequenas igrejas. Compõem uma pequena minoria que, como diz o Bruno, é a minoria desprezada pela agenda das minorias. Não, não pensem que sinto pena. Não é pena, é inveja. Inveja pela coragem; a coragem de assumir a fé de forma franca numa época não muito simpática para crentes cristãos; a coragem para tentar construir o mar da Galileia não numa Igreja imponente mas numa garagem suburbana apertada, feia, sem a dignidade imperial de uma Mesquita, Catedral ou Sinagoga. E, de resto, o grande ponto de “Aleluia” é este respeito por quem procura recriar a Macpela no meio do alcatrão, das buzinas, do cheiro a tubo de escape e ao lado de um amontoado de pneus velhos. Concordem ou não com as opiniões do Bruno, julgo que os protestantes deste país só podem sorrir com o enquadramento geral do livro. Porque é um enquadramento que – repito – mostra a coragem intrínseca destas pessoas. 
Quando se pensa nestas igrejas protestantes é impossível não pensar no campo aberto dos EUA. Na América, há a dignidade do espaço. As pessoas não estão em cima umas das outras, conseguem sempre um espaço digno nem que seja pelo facto de estarem sozinhas num raio de centenas de metros. A igreja até pode ser o barracão de Duvall em “O Apóstolo” ou o casinhoto de Paul Dano em “Haverá Sangue”, mas está ali sozinha, não fica amarrotada ou tapada. Aqui na Europa, aqui em Portugal, isso é impossível. Estes crentes só podem criar as suas igrejas em caves ao lado de oficinas de carros, em barracões de contraplacado ao lado de churrascarias e lavandarias, em ruas que só têm caixotes de três andares com marquises, num beco onde não aparece a quadriga de cavalos brancos do “Ben Hur”, mas um Opel Corsa. Como é que posso ficar indiferente a esta coragem? Como é que posso não invejar a coragem do meu amigo Tiago Cavaco que abriu uma Igreja numa cave de Benfica? E, no caso das Testemunhas de Jeová, a situação é ainda mais trágica. Pelo que percebo, o grande mote desta organização não é a conquista de riqueza dentro do mundo, mas sim criar uma barreira protectora contra o mundo. Mas como é que podemos criar um cordão sanitário contra o mundo quando temos de viver nesse mesmo mundo? Nos EUA, os Amish têm espaço para criar comunidades paralelas que vivem de facto fora do mundo. Como é que isso é possível no Vale da Amoreira, Santa Iria, Moscavide, Lisboa?
 
 
Bruno Vieira Amaral
 
 
Esta empatia com a mensagem de fundo de “Aleluia” não anula, porém, duas discordâncias que eram mais ou menos inevitáveis. Em primeiro lugar, julgo que seria necessário separar as águas entre os diferentes cultos, há diferentes graus de solidez teológica que é preciso sublinhar e julgo que o Bruno podia ter feito mais neste ponto. Para não me acusarem de imperialismo católico, vou até exemplificar o que estou a dizer com algo que está fora do âmbito protestante: Fátima. Posso respeitar pessoalmente quem vai a Fátima, mas não respeito teologicamente aquele marianismo que é um fim em si mesmo, o marianismo que diz “eu gosto muito da Nossa Senhora, já Jesus não me diz nada”. Da mesma forma, não respeito teologicamente o pagamento de promessas, “se o meu filho entrar na faculdade, vou de joelhos até altar”, etc. Como diz Thomas Halik, estes pseudo-crentes são muito parecidos com os ateus, porque exigem provas físicas da existência de Deus. Aliás, exigem uma transacção comercial para ter fé. É como se a sarça ardente fosse para todos. Pior: é como se a sarça ardente tivesse a forma de conta bancária.  
A segunda discordância não é bem uma discordância, talvez seja uma questão de perspectiva. Duas pessoas, mesmo quando são muito parecidas, olham para um objecto de forma diferente. E, neste sentido, o meu herói de “Aleluia” não é o herói escolhido pelo Bruno.
No livro, salta à vista o respeito que o Bruno sente por Nuno Soares, a outra grande personagem do livro, a par de Tomásia. Estamos a falar de um jovem que cresceu no meio baptista para depois romper com a instituição, alegando que a instituição seca a fé; Soares acaba por sair da organização num inequívoco acto de coragem e, mais tarde, parte para uma missão evangélica na República Checa. É impossível não reconhecer coragem, é impossível não sentir uma volúpia literária por Nuno Soares. “Aleluia” explora isso muito bem, até porque o Bruno (que também deixou uma igreja) sente uma empatia imediata pelo Nuno, sente simpatia por aquela vivência purista e não institucional da fé. Ora, se me permitem, irei distanciar-me um pouco desta posição, até porque tenho uma auto-crítica a fazer.
Eu percebo a posição do Nuno. Eu também pressinto uma fé mecânica, monótona, morta em muitas pessoas. Essa até é uma das razões que tem adiado o meu regresso à Igreja. Aquela minha tia que acredita na crendice do mau-olhado é muito mais cristã e humana do que boa parte do beatério farisaico. E, sem modéstia, sei perfeitamente que, com todas as minhas dúvidas, estou mais dentro da Igreja do que muita gente que passa lá a vida. Também sei que o encanto que tenho provocado em católicos e protestantes advém desta minha posição intermédia, entre linhas, ambígua, sexy. Eles pressentem que estou a caminho da fé, à procura de refúgio, e por isso oferecem a sua simpatia porque me querem seduzir. No fundo, sou a miúda gira que católicos e protestantes querem sacar. Para mim, seria muito fácil perpetuar este estado de graça, seria muito proveitoso continua nesta posição fácil e ambígua, seria vantajoso continuar a caminhar sem bater nesta ou naquela porta. Mas isso não é aceitável. Se quero ser coerente com a minha fé, tenho de dar passos no sentido da Igreja, tenho de completar o trajecto. Não posso ficar eternamente no umbral, tenho de entrar e testar a sério a minha fé. Porquê? Sem a comunidade e sem a autoridade da instituição, é difícil distinguir entre fé e emoção. Por outras palavras, tenho de saber se a minha fé é mesmo cristã, tenho de passar no crivo de quem sabe, de quem representa uma tradição de 2000 anos. O Nuno Soares sabe que é cristão a sério, porque teve formação na instituição que deixou. Eu sinto que tenho apenas uma opinião, porque nunca pertenci a uma igreja. Eu estou a ir, ele está a vir. Tal como o Bruno, diga-se. Eles deixaram uma igreja, eu estou à procura de uma igreja; eles querem liberdade em relação às instituições que formaram a sua infância, eu quero uma instituição que me dê esse infância de fé que nunca tive. Os caminhos não podiam ser mais opostos. Portanto, o meu herói desta história religiosa não é aquele que parte à aventura sozinho, é aquele que fica e que tenta reformar a instituição no atrito do dia-a-dia. O meu herói é alguém como o Bispo O’Malley, responsável pela investigação aos casos de pedofilia na Igreja. Há dias, no “60 Minutos”, vi como ele foi apertado pela jornalista, vi o seu desconforto. Ele percebe que – neste momento - parte da Igreja é uma esterqueira, mas também sabe que a sua fé resistirá.
Termino como comecei. No velório da Tomásia, na Igreja da Baixa da Banheira, duas senhoras começaram a discutir na sala junto ao corpo; cada uma tinha a sua fé, se calhar uma era Testemunha de Jeová e outra era católica ou qualquer outra coisa. O tom e a ocasião eram obviamente impróprios e, mais uma vez, ficou evidente que muita gente perde a humanidade no meio destas lutas farisaicas entre igrejas. Claro que o Bruno deu um berro enraivecido, dizendo que não era próprio o que estavam a fazer. Isto foi há uns quinze anos. Ora, este livro mostra que este Bruno já não é assim, esta raiva anti-igrejas está a atingir níveis historicamente baixos. Isso vê-se no respeito que sente pela fé dos outros - “a fé autêntica dos outros faz-nos sentir pequenos, quase culpados”. Isso vê-se também na forma como percebe que a religião, seja ela qual for, não é só poesia celestial, também é prosa para a nossa relação com o mundo (Tomásia, alentejana desenraizada na Grande Lisboa, encontrou na sua Igreja a comunidade que lhe deu sentido de pertença). Isso vê-se na forma como ele não esconde uma fé humanista retirada não Deus mas do Camus da “A Peste”: não sei se Deus existe, nem sei se existe Humanidade, mas sei que aquele homem está a sofrer e sei que o meu dever é ajudá-lo. Ou seja, a hipotética ausência de Deus não autoriza o cinismo.
Para mim, chega. 
 
Henrique Raposo
 
 
 
            PS: texto que nasce de duas crónicas publicadas no Expresso Diário.

 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A traição.

 

Lida Abdul, «Global Pornography», 2002







A traição 
As muçulmanas europeias não existem 
 
Entre a queda do muro e a queda das torres, um mantra dominou o ar do tempo nos EUA: a globalização transformaria o mundo inteiro num gigantesco Ocidente. Liderada por liberais como Nye, Friedman ou Fukuyama, esta atmosfera de fim de história garantia que o poder americano não precisaria do poder militar (hard power) para transformar o mundo. Ao contrário do império britânico cantado por Kipling, a globalização americana não necessitaria de mosquetes nem de salas de aula para instruir os indígenas à força. O soft power, diziam, seria suficiente. Por outras palavras, este idealismo liberal assumia que os nossos valores converteriam os povos orientais através de uma osmose civilizacional: se entrasse em contacto directo com os valores ocidentais, o “outro” perceberia de imediato a superioridade da civilização ocidental e entraria num processo de aculturação pelo seu próprio pé; a nossa cultura, desde o conhecimento científico das faculdades até à liberdade sexual e laboral das mulheres, venceria de forma natural as resistências das velhas culturas do Médio e Extremo Oriente.
Apesar das diferenças óbvias, os liberais americanos da globalização não eram muito diferentes dos velhos liberais ingleses do Império. Tal como Bentham e os Mill, os americanos do final do século XX assumiam que o “outro” era uma mera tábua rasa à espera da centelha ocidental, assumiam que não existia uma agência moral autónoma no “muçulmano”, no “chinês”, no “indiano”, assumiam que os povos orientais continuariam no seu cochilo histórico até ao momento em que recebessem uma transfusão de sangue eurocêntrico. Sim, ao contrário de James Stuart Mill, Fukuyama não exigia a aculturação forçada, não exigia que o “outro” fosse filtrado e instruído à força pelo tríptico de Kipling, lei, escola, mosquete. Mas, num certo sentido, o seu eurocentrismo era ainda mais aceso, pois assumia que a força nem sequer seria necessária. Os povos adormecidos entrariam aos pulinhos nas catedrais do soft power
 
 
Sayyd Qutb
 
 
 
Esta cultura liberal nunca percebeu que o problema era precisamente a força deste soft power. A proximidade entre culturas gerada pela globalização económica e tecnológica (televisão satélite, internet, viagens baratas) não criou apenas concórdia, também criou hostilidade. Basta olhar para o pai do islamismo moderno, Sayyd Qutb (1906-1966). Qutb não criticou os EUA sem desconhecimento de causa, não concebeu as cidades ocidentais enquanto Babilónias pestíferas a partir de uma gruta no Nilo. Qutb odiava as cidades ocidentais, porque conheceu Nova Iorque numa viagem de estudo no final dos anos quarenta. Onde um cidadão ocidental via uma cidade cosmopolita, ele viu a desordem da “oficina barulhenta”; onde um ocidental via mulheres livres, Qutb viu o demónio. A inquietação feminina é fundamental. Qutb sentiu asco pelas mulheres emancipadas no trabalho e soberanas na cama. Para este intelectual egípcio, uma mulher insinuante num bar era a representação curvilínea de Belzebu; uma mulher a trabalhar fora de casa era a prova máxima da decadência ocidental. Ou seja, Qutb odiava o tal soft power, odiava aquilo que nós amamos. É por isso que não faz sentido conceber o islamismo como uma reacção ao hard power composto por F-16 a largar bombas em Mossul ou Cabul. Muito antes dessa agitação geoestratégica, o islamita odeia os seios de Pamela Anderson que lhe entram em casa através da parabólica, tal como odeia programas de televisão sobre ciência, democracia ou igualdade entre sexos, três conceitos considerados impuros e reveladores da arrogância do Ocidente, esse Ícaro que desafia Alá com asas feitas de soberba pagã. E devemos sempre sublinhar que esta reacção anti-ocidental é liderada pela elite que foi exposta ao Ocidente. Em “No País das Mulheres Invisíveis” (Quidnovi), a médica e colunista Qanta Ahmed mostra como o fanatismo anti-ocidental é mais aceso na elite saudita educada no Ocidente do que nas tribos de beduínos. Filhos da elite privilegiada da Arábia Saudita, treinados nas universidades americanas e inglesas, habituados a escapadinhas sexuais na Europa, os colegas sauditas de Qanta celebraram o 11 de Setembro ali mesmo no Hospital da Guarda Nacional do Rei Farad. Até encomendaram bolos especiais, talvez com duas torres feitas de açúcar. Sabiam fazer operações de peito aberto com tecnologia de ponta, mas não compreendiam a diferença moral entre alvo militar e alvo civil, entre danos colaterais e atentado terrorista. 
Mas para nós, europeus, o problema não estava nas pessoas que comemoraram o 11 de Setembro em Riade ou Gaza. O problema estava e continua a estar nas pessoas que celebraram o 11 de Setembro em bairros de Paris, Londres, Amesterdão, Berlim, Hamburgo. Até porque o 11 de Setembro foi conduzido pela célula de Hamburgo. E, já que estamos em Hamburgo, recorde-se que um jornal de Hamburgo, o “Hamburger Morgenspost”, foi atacado com cocktails molotov dias depois do ataque ao “Charlie Hebdo”. Estamos a falar de um dos poucos jornais que reproduziu na íntegra os cartoons de “Charlie Hebdo” logo após o ataque. O problema esteve sempre aqui, algures numa marquise de Hamburgo ou Roterdão e não numa gruta no Afeganistão. 
 
O “outro” não tem cabeça
Se a América vivia fascinada com a ideia da globalização como império invisível, a Europa labutava no mito da globalização assassina. Segundo Negri, Amin, Ramonet, Boaventura, a “globalização predatória” era a arma que o Ocidente usava para sugar a riqueza do Resto do Mundo; nós, os pestíferos ocidentais, estávamos a enriquecer à custa dos não-ocidentais. Quem desafiasse este mantra era de imediato escorraçado e acorrentado à galé que albergava as vozes ilegítimas, eurocêntricas, neoliberais. Sucede que o mantra estava errado. Tal como diziam os ilegítimos remadores da galé, a globalização teve um efeito democratizador: o Resto do Mundo entrou numa trajectória de enriquecimento, centenas de milhões de chineses, indianos, indonésios, brasileiros e até africanos saíram da pobreza; o Ocidente perdeu poder relativo e a mesa dos crescidos da ordem internacional já não é um exclusivo de cadeiras ocidentais.
Além de estar errado, o mantra da “globalização predatória” criou um problema ainda maior: viciou o ar do tempo nas lentes económicas; tudo passou a ter explicação económica; tudo passou a ser explicado pela opressão económica do Ocidente. Os valores religiosos ou culturais do “outro” deixaram de contar; o “negro”, o “muçulmano” ou o “oriental” deixaram de ser agentes morais com consciência própria e passaram a ser meros títeres dos ventos estruturais lançados pelo Ocidente. Em consequência, as sociedades europeias perderam a capacidade de criticar os povos orientais. A própria linguagem que permitiria semelhante crítica moral não estava disponível. Nem sequer tínhamos os instrumentos semânticos (ex.: “barbárie”, “terrorista”, “inimigo”, “imoral”) para esboçar um juízo de valor em relação a fenómenos ocorridos em países muçulmanos ou africanos.
As grandes vítimas desta forma de pensar eram as mulheres nascidas na categoria do “outro”. A violência que sofriam às mãos de homens não-caucasianos era um fenómeno secundário e só podia ser abordado através do ângulo da exploração económica da globalização e, claro, pelo prisma das guerras que os americanos lançavam com o objectivo de manter os pilares desta opressão. Quando lia coisas como “Desonrada” (Livros do Brasil) de Mukhtar Mai, este ar do tempo desculpabilizava o marialvismo islamita e justificava tudo com a globalização. Sim, a repressão sentida por raparigas como Mai em aldeias perdidas no Paquistão tinha de ser enquadrada na ofensiva das multinacionais americanas, essas entidades que empobreciam os homens paquistaneses, levando-os assim a cometer actos de violência misógina. Por artes mágicas, era a Nike que despoletava a seguinte sucessão de acontecimentos: se um rapaz paquistanês namoriscasse sem autorização uma rapariga de um clã superior, o tribunal da aldeia decretava que uma irmã desse rapaz devia ser violada pelos homens do clã ofendido. Da mesma forma, só a economia do petróleo podia explicar o que sucedeu a Touria Tiouli, autora de “Despedaçada” (Campo das Letras). Esta fraco-marroquina foi violada por três homens no Dubai, mas, em vez de perseguir os criminosos, a polícia prendeu Tiouli, acusando-a de “relações sexuais fora do casamento”. Este é um evidente absurdo moral, mas nós, europeus, não tínhamos sequer a linguagem necessária para fazer esse juízo kantiano (Kant passou a ser racista); no máximo, podíamos fazer uma pequena nota de rodapé sobre a misoginia islamita no final da peroração habitual sobre os malefícios da globalização.
É por isso que artistas muçulmanas como a afegã Lida Abdul causavam e ainda causam um certo desconforto. Como a própria Abdul reconhece, o público ocidental nem sempre acolhe o seu trabalho, porque as fotografias e vídeos que expõe não entram na categoria do exótico ou porque não reflectem as agruras económicas vividas pelos povos muçulmanos. Nas suas obras, Abdul procura aquilo que todo o artista deve procurar: atingir um eco universal a partir de um contexto concreto, procurar uma parábola intemporal a partir de uma realidade histórica. Mas parece que o meio artístico ocidental nem sempre aprecia esta ambição transcendente do “outro”. É como se Lida Abdul não tivesse direito ou inteligência para atingir o nível conceptual que existe em Paris ou Nova Iorque. É como se ela só tivesse autorização para recriar as péssimas condições de vida dos afegãos e as pernas estropiadas por bombas americanas. É como se Abdul só pudesse ser um espelho passivo do complexo do homem branco. 
O resultado final desta falácia intelectual foi a incompreensão total do 11 de Setembro. Como o “outro” não podia pensar pela sua própria cabeça, como não se admitia a existência uma agência moral, religiosa e autónoma nos povos orientais, o maior ataque terrorista da história do Ocidente foi encarado como uma justa resposta dos exércitos maltrapilhos de Fanon e Negri contra o Império capitalista. O facto de Bin Laden e Mohammed Atta pertencerem a uma elite rica e educada não parecia perturbar ninguém. A esquerda da globalização predatória era tão paternalista como os liberais do fim de história.
 
 
Lida Abdul, «White House», 2005
 
A esquerda reacionária
A par da tese da globalização predatória, outra estirpe de esquerda fez o seu caminho nestes anos. Estamos a falar da esquerda multiculturalista. Apoiada no relativismo epistemológico e cultural de Said e Foucault, esta escola de pensamento empenhou-se na destruição activa do Direito Natural. Pela via religiosa ou secular, a velha tradição do Direito Natural garantia que todos os indivíduos nascem com direitos inalienáveis, direitos eternos e válidos em qualquer país ou cultura; antes de ser um cidadão, antes de ser membro de uma religião, um indivíduo tem direitos universais que não dependem da validação de políticos, imãs ou bispos. Assumindo que esta tradição era mais um pérfido tentáculo das estruturas de poder eurocêntricas, a esquerda multiculturalista começou a impor a ideia de que não existe uma moral acima do relativismo das culturas, pois cada cultura desenvolve a sua própria moral. Nesta grelha de pensamento, o homem ocidental não pode criticar as outras culturas porque não existe qualquer critério de avaliação universal, objectivo e verificável; não existe qualquer norma ética ou racional capaz de transcender a imanência da tradição vivida numa dada comunidade. Cada cultura, nação ou religião é uma verdade autónoma e orgânica que se auto-valida em circuito fechado, uma ilha de “nós” num oceano de “eles”. O que é espantoso nesta metamorfose da esquerda é que os progressistas não perceberam (ou não quiseram perceber) que estavam a entrar nos terrenos da velha direita nacionalista e mesmo pré-fascista.
Em “Direito Natural e História” (Edições 70), Leo Strauss afirmou que, apesar da derrota alemã na II Guerra Mundial, as ideias alemãs permaneceram no centro do debate europeu. O filósofo de Chicago tinha razão: o ataque relativista ao Direito Natural e a noção de que não existe uma transcendência moral ou racional acima da cultura histórica eram os dois pilares da direita romântica alemã que reagiu ao universalismo da Revolução Americana, da Revolução Francesa e do liberalismo inglês representado pela linhagem progressista de Mill e pela linhagem conservadora de Burke. Ora, na segunda metade do século XX, os filhos multiculturalistas de Said e Foucault reproduziram à esquerda este esquema romântico de Herder, Fichte, Tönnies, Spengler, Jünger, etc. Tal como estes velhos reaças, a esquerda multiculturalista reergueu a glória vitalista da gemeinschaft (comunidade) contra a Gesellschaft (sociedade). Sim, a esquerda multiculturalista construiu-se com base no erro clássico do reaccionário: reduziu o indivíduo a uma única identidade (religião/comunidade), desprezando todas as outras identidades (ideologia, patriotismo, profissão, clube de futebol, bairrismo, hóbis). Para os multiculturalistas, o muçulmano é só isso: o muçulmano. É como se a cultura fosse uma variável tão imóvel e sufocante como a biologia. É como se a “comunidade muçulmana” fosse um destino genético. 
As grandes vítimas deste irracionalismo de esquerda foram as mulheres muçulmanas. Esta pulsão reaccionária conhecida pelo eufemismo de “multiculturalismo” impediu uma crítica séria a atrocidades como aquela que se abateu sobre Asia Bibi, uma católica paquistanesa que foi condenada à morte porque ousou beber água de uma vasilha destinada a muçulmanos. Esta história contada em “Blasfémia” (Alêtheia) é chocante, mas ainda é mais chocante pensar a situação através do prisma multiculturalista: Asia Bibi estava a apanhar bagas, ficou com sede, bebeu da vasilha comum, foi rotulada de “porca católica” e, de seguida, foi condenada à morte pelo ancião da aldeia, mas nós, ocidentais, temos de respeitar o episódio porque há aqui um “contexto” cultural validado pelas suas próprias premissas; porventura, até devemos ficar comovidos com a misericórdia final do ancião: “se não queres morrer, deves converter-te ao islão”. Mas, verdade seja dita, o lado mais negro desta fraude intelectual não estava na relação entre os progressistas europeus e as mulheres a viver nos arrabaldes do Paquistão ou nas torres do Dubai. O problema estava na relação entre esta agenda multiculturalista e as muçulmanas europeias. Durante décadas, a esquerda europeia viu com bons olhos a implementação informal mas efectiva de um sistema legal paralelo baseado na sharia; durante décadas, os multiculturalistas exigiram que os Estados (sobretudo Inglaterra, Holanda, Alemanha) financiassem o imobilismo cultural das “comunidades muçulmanas” através, por exemplo, de escolas de fé. E este cenário até acabou por provocar uma situação caricata: o Estado que lançou guerras no Médio Oriente em nome da Liberdade à maneira de John Stuart Mill era o mesmo Estado que financiava escolas de fé corânicas que pregavam o obscurantismo qutbista no centro de Londres. Estamos a falar da Inglaterra de Tony Blair, o homem que foi liberal e multiculturalista ao mesmo tempo, o homem que falava de uma Liberdade em abstracto para o Grande Médio Oriente enquanto permitia a clausura das mulheres muçulmanas que viviam a poucos quilómetros do n.º10 de Downing Street. Viviam e vivem. Passados catorze anos sobre o 11 de Setembro preparado em Hamburgo, pouco ou nada mudou.
 
 
Lida Abdul, «What We Saw Upon Awakening», 2006
 
 
Nazneen
No romance “Brick Lane”, Monica Ali construiu o arquétipo literário destas muçulmanas europeias através da personagem Nazneen. Oriunda do Bangladesh, Nazneen é forçada a casar-se com um homem que já vivia em Londres. Parece que os homens do Bangladesh a viver em Londres são assim: gostam de importar esposas das aldeias da pátria antiga, pois assim garantem uma mulher-anjo, ingénua, moldável, espancável, com um pureza que as bengali contaminadas pela vida inglesa já não têm. Para citar Chanu, o marido, Nazneen é uma “rapariga da aldeia, totalmente intacta”. Nazneen casa, tem filhos, nunca sai do seu apartamento perdido numa torre já de si perdida, não fala inglês e continua a ver-se a si mesma como mercadoria. Foi educada para não desejar coisas e até para sentir culpa quando pensa pela própria cabeça. “Se Deus quisesse que nós fizéssemos perguntas, tinha feito de nós homens”, ensinou-lhe a mãe. Dentro dos conformes, Nazneen assume o papel de incubadora e de calista: depura os calos dos pés de Chanu todas as noites; corta pequenas fatias daquele pele amarelecida como se estivesse a cortar cebola com uma lâmina; de quando em vez, há sexo funcionário e reprodutor depois da pedicure. Na cena-chave desta clausura, Nazneen visita o centro de Londres trinta anos depois de chegar à cidade. Sim, trinta anos depois. É como se aqueles míseros quarteirões tivessem a dimensão de “Sete mares e treze rios” (o título da edição da Dom Quixote). Quando as filhas (Bibi e Shahana) começam a dar sinais de rebeldia, Chanu exige o regresso da família ao Bangladesh. É a forma que ele encontra para travar a aculturação das raparigas, sobretudo Shahana, a rebelde que insiste em viver como uma inglesa, que recusa o sari e que ameaça fugir. Depois de peripécias várias, Nazneen escolhe o lado das filhas. As três ficam em Londres, Chanu regressa. A heroína de Monica Ali liberta-se da prisão mental quando assume que “ficar ou ir depende de nós as três”.
O processo de libertação de Nazneen está relacionado com algo que ela considera misterioso ao início: a privacidade. Esta jovem bengali fica boquiaberta com a liberdade privada das suas vizinhas brancas. O véu delas é diferente, é um véu moral e até jurídico que lhes permite criar um espaço só delas onde podem fazer o que bem entendem, desde tatuar o braço até fazer amor com diversos namorados. Nazneen não compreende este véu privado, porque o seu apartamento é um prolongamento da comunidade; as anciãs da torre entram sem pedir licença, dão-lhe ordens até na educação das filhas e fazem campanha activa contra a tal privacidade. A Sra Islam, moralista-mor da torre e agiota nos tempos livres, é a rainha deste cilindro comunitário que esmaga qualquer nesga de privacidade. Ora, cá fora, na vida real do Médio Oriente e nas “comunidades muçulmanas” da Europa, a via sacra das mulheres começa aqui. “No País das Mulheres Invisíveis”, Qanta Ahmed vislumbra este problema na mulher mais bonita das Arábias: Ghadah. Depois de um início de vida conjugal no Canadá, Ghadah e o marido voltaram à Arábia e o choque foi inevitável:
 
“Não temos tempo para viver só em família. Nenhum! Às vezes até me dá vontade de gritar. Quero dizer, adoro os meus pais e os meus parentes, mas é evidente que um casamento, uma família, precisa de ter tempo só para si, um espaço só para si. E aqui sinto que não temos nenhum, que pertencemos aos outros”.
 
Em “Fim de Tarde em Mossul” (Ed. Presença), a jornalista Lynne O’Donnell fala-nos de duas inglesas que fizeram o percurso inverso ao de Nazneen e de Ghadah: foram viver para o Iraque porque casaram com dois iraquianos. A principal queixa destas duas mulheres, Pauline e Margaret, volta a ser a falta de privacidade. “As pessoas da família aqui pensam que a minha casa é a casa deles”, diz Pauline. Aparecem a qualquer hora do dia e da noite sem avisar, exigindo conversa, café, comida. Qual é o resultado desta profanação da privacidade? Se não existe na rua e se em casa não tem um espaço só para si, a mulher acaba por ser propriedade colectiva da família, faz parte do cenário, é o palco onde os outros representam a peça do dia-a-dia. Nem sequer é figurante, é o palco. Sem surpresa, esta concepção de Mulher acaba por gerar um facto insofismável: quando as Ghadah se revoltam, quando saem de casa, quando desafiam os pais e maridos, muitas famílias reagem através de assassínios descritos através do eufemismo “crimes de honra”; o mundo islâmico representa a esmagadora maioria dos crimes desta natureza à escala global; a “comunidade muçulmana” é responsável por 96% destes crimes na Europa.
 
 
Lida Abdul
 
 
 
Não é “violência doméstica”
Nas cidades europeias, o final feliz de Nazneen e Shahana nem sempre encontra reprodução na realidade, até porque nem todos os maridos e pais muçulmanos são tão bonacheirões como Chanu. As vidas das Naznnen reais são mesmo perigosas. Em 2006, Banaz Mahmod foi assassinada pelo pai, Mahmod Mahmod, pelo tio, Ari Mahmod, e pelo primo, Dana Amin; mataram-na com um cordão de sapato e deixaram o seu corpo num jardim de Birmingham. O que fez ela para merecer isto? Separou-se do marido e começou uma vida nova com outro homem. Na Alemanha, o flagelo é idêntico. Hatun Suruçu foi baleada pelos próprios irmãos numa paragem de autocarro em Berlim em 2005. O que fez ela para merecer isto? “A puta queria viver como uma alemã”, diziam. Aos 23 anos, Hatun divorciou-se do primo que lhe tinha sido imposto pelos pais aos 16 anos no casamento forçado da praxe; também deixou de usar lenço, recusou a vida de dona de casa (inscreveu-se numa escola profissional) e começou a namorar um alemão. Num claro eco de Sayyd Qutb, a família decretou que Hatun havia cometido o pecado dos pecados: deixou-se conspurcar pela vida impura do Ocidente. Matá-la era uma questão de honra.
Hatun não é um caso isolado. Na última década e meia, a Alemanha conheceu centenas de casos idênticos. Por norma, os familiares escolhem o irmão mais novo para o papel de assassino da irmã devassa, porque sabem que a justiça alemã não pode ser dura com menores de idade. Estes meninos acabam por crescer como “heróis de honra” da família e dos bairros que vivem num universo paralelo. Há relatos de crianças que chegam à escola sem compreenderem uma sílaba de alemão; há relatos de bairros controlados por um sistema legal paralelo e informal assente na sharia e tutelado por “mediadores islâmicos”. Estes mediadores, anciãos de aldeia a viver em marquises, realizam casamentos à margem da lei e, aos olhos da comunidade, aqueles casais ficam mesmo casados. Algumas associações de protecção de mulheres muçulmanas afirmam que estes casamentos paralelos já representam 20% da população muçulmana de Berlim; as associações também declaram que os tais “mediadores islâmicos” (outro belo eufemismo) nunca tomam o partido das raparigas que recusam casar com os primos impostos pelas famílias. Não surpreende. Estamos a falar de comunidades onde as meninas são forçadas a casar a partir dos doze anos e onde os meninos aprendem a apelidar de “puta alemã” qualquer rapariga que recuse usar o véu.
Esta barbárie foi construída com o beneplácito dos responsáveis pela integração e dos média que recusaram sempre fazer críticas à “comunidade turca” mesmo quando se tratava de expor a mais abjecta misoginia. Felizmente, este racismo invertido do multiculturalismo só podia desesperar as turcas-alemães que lutam pela sua liberdade. Serap Çileli é um desses casos. Durante os anos 90, Çileli tentou publicar artigos e livros sobre a condição feminina dos bairros turcos, até porque ela própria fora forçada a casar aos 15 anos, mas o meio literário e jornalístico recusou sempre os seus textos. “As pessoas”, diz Serap, “tinham medo de serem apelidadas de nazis caso levantassem questões sobre os muçulmanos. Tudo o que eu escrevia era rejeitado, até pelos jornais; diziam-me que estava a escrever sobre uma minoria e eles tinham medo de serem apelidados de racistas”. A perversão moral deste raciocínio fala por si. Serap é turca, experimentou as agruras do casamento forçado, estava a criticar o marialvismo islamita a partir de um ponto de vista muçulmano, estava a defender a emancipação das mulheres, mas mesmo assim o meio intelectual alemão só encontrava uma palavra para descrever os seus ensaios e livros: “racismo”. Outra autora turco-alemã, Seyran Ates, é ainda mais dura na crítica à mentalidade multiculturalista. Para esta autora e advogada especializada nos “crimes de honra”, a posição da esquerda feminista é insustentável. Por um lado, critica a Igreja católica e o machismo do homem branco, mas, por outro lado, fecha os olhos à repulsiva condição das mulheres muçulmanas. Ates levanta o véu e permite-nos ver a traição do feminismo ocidental em relação às mulheres muçulmanas.
Esta traição tem uma escala babilónica, porque a maioria das vozes feministas também está presa nos dois complexos ideológicos do costume: ou são multiculturalistas convictas, ou são defensoras do “politicamente correcto”, a versão descafeinada do multiculturalismo. Se são multiculturalistas a sério, as feministas argumentam que o véu e demais misoginias islamitas são uma representação legítima de uma cultura que temos de respeitar; isto quer dizer que, na prática, só defendem os direitos das mulheres brancas que são vítimas da alegada opressão cristã, capitalista e do homem caucasiano (o homem não-caucasiano, como se sabe, é o bom selvagem). Quando não caem neste fanatismo ideológico, as feministas deixavam-se ficar na estação agridoce do politicamente correcto, acabando por dizer que não existem diferenças entre a violência machista da maioria branca e a violência machista da minoria islâmica, isto é, tentam colocar os “crimes de honra” dentro da grande categoria da “violência doméstica”. Numa infeliz aliança com as organizações islamistas, demasiados grupos feministas colocam a tareia da Rihanna ou a morte da Dona Joaquina em Carrazeda de Anciães ao lado do assassinato de Hatun Suruçu ou Banaz Mahmod. É uma equivalência infeliz porque existe uma diferença de natureza entre a chamada “violência doméstica” e os “crimes de honra”. É claro que os homens da maioria branca matam mulheres. Muitas tascas portuguesas, por exemplo, ainda se regem pelo “ela estava a pedi-las” quando há provas ou rumores de adultério. Mas estes assassínios são actos isolados de um único indivíduo, o marido, que obviamente não encontra cúmplices materiais no sogro ou cunhados. Além disso, estes assassínios não são manifestos culturais ou religiosas contra a “cultura ocidental”. A conversa muda de figura nos “crimes de honra”. Estamos a falar de actos colectivos e familiares. O pai junta-se a irmãos, filhos e tios para matar a própria filha e a restante família apoia o assassino e não a vítima. Em 2008, em Hamburgo, Ahmad esfaqueou a irmã Morsal vinte e três vezes. A justiça condenou-o a prisão perpétua e a decisão causou indignação na família que estava ao lado do irmão assassino e não ao lado da irmã assassinada. Sim, existe uma diferença entre “violência doméstica” e os “crimes de honra” muçulmanos. Mas feministas ocidentais e islamistas continuam a argumentar que a mera constatação desta diferença é um acto “racista”.
Seyran Ates e Serap Çileli não são as únicas autoras que se sentem abandonadas. Hirsi Ali é outro caso famoso de abandono. De resto, a sua autobiografia (“Uma Mulher Rebelde”, Ed. Presença) é uma história de desilusão com a esquerda. Natural da Somália, Hirsi Ali chegou à Holanda no início dos anos 90 depois de sofrer os danos da sua cultura natal (excisão genital, casamento forçado). Cedo ingressou naquele que lhe parecia o partido natural para a sua posição crítica em relação à misoginia islamita – o Partido Trabalhista. Estava enganada. No dia 12 de Setembro de 2001, Hirsi Ali encontrou o líder dos trabalhistas, Ruud Koola, que de imediato quis mostrar a sua compreensão: “não achas estranho que toda a gente pense que a culpa é do Islão!?”. Hirsi Ali teve ali a sua epifania e começou de imediato a tentar acordar os colegas de partido. Começou a avisá-los em relação aos perigos do multiculturalismo, uma política pública que legitimava e financiava comunidades inteiras que não respeitavam os direitos mais básicos das mulheres e dos homossexuais. Quando ouviam este discurso, os colegas trabalhistas de Ali franziam os olhos e diziam que não, aquilo era um discurso “direitista”; estavam paralisados pela necessidade de se mostrarem sensíveis às culturas das minorias, fosse qual fosse a essência dessas culturas, fosse qual fosse a condição feminina vigente nessas minorias. Quem está mal, muda-se. Hirsi Ali acabou por ingressar no Partido Liberal e, após o assassínio do amigo Theo Van Gogh, emigrou para os EUA. Já não se sentia segura ou respeitada na Holanda. Os seus vizinhos exigiram em tribunal que ela saísse da própria casa.
Hirsi Ali, Seyran Ates e Serap Çileli e as milhares de vítimas dos “crimes de honra” foram, são e serão traídas por uma esquerda bloqueada na questão islâmica. Este espectáculo de incoerência dura há décadas e deverá continuar por mais algum tempo: os alegados progressistas defendem o modo de vida mais reaccionário e misógino do mundo. Naquele que continua ser o livro definitivo sobre o assunto (“Identidade e Violência”, Tinta-da-China), Amartya Sen expôs ao ridículo esta esquerda reaccionária com um exemplo muito simples: imagine-se que uma rapariga muçulmana de Londres, uma Shahana real, quer namorar com um rapaz inglês; este desejo é travado pela família, pelos alegados líderes religiosos da “comunidade muçulmana” e pelos ideológicos multiculturalistas da esquerda britânica. Como salienta um espantado Sen,
 
“é precisamente a proibição dos pais que parece receber a defesa mais clara e visível dos alegados multiculturalistas, com base na importância de honrar as culturas tradicionais, como se a liberdade da jovem não tivesse relevância.”
 
Além de trair as muçulmanas, esta esquerda também atraiçoa os intelectuais muçulmanos que procuram reformar e racionalizar o Islão. Esta indústria intelectual que grita “islamofobia” a cada momento acaba por reconhecer os radicais islamistas como os líderes legítimos do Islão, deixando de parte os reformadores como Sayd Bahodine Majrouh, o Voltaire afegão que recolheu os poemas de um género popular cantado em segredo pelas mulheres afegãs – os landay. Em “A Voz Secreta das Mulheres Afegãs” (Cavalo de Ferro), podemos ler estes poemas que gozam com a repressão masculina. Não, não são poemas da mulher-anjo desejada pelos islamitas, não são sussurros místicos e inocentes. São ânsias carnais. Estas mulheres querem sexo, cantam sobre sexo porque – muito simplesmente – não o têm. Os homens passam o dia a discutir assuntos tribais e religiosos; à noite, dormem. É um coro de donas de casa desesperadas: “Não haverá um louco nesta aldeia? / As minhas calças cor de fogo ardem-me nas coxas”. Estas pequenas quadras têm um poder de fogo superior a toda a armada americana, porque submetem ao ridículo o código de honra islamita a partir da cama dos mullah: “Que o mullah grite a sua chamada à oração matinal / Enquanto o meu amante quiser, não me levantarei”. Como se sabe, estas mulheres são assassinadas se forem apanhadas com o tal amante. E, como seria de esperar, Majrouh foi assassinado por islamitas no mesmo ano da fatwa lançada sobre Salman Rushdie (1988), outro intelectual traído. Tal como o próprio recorda na sua autobiografia (“Joseph Anton”, Dom Quixote), Rushdie sentiu-se abandonado pelos seus pares, pelo meio intelectual, e figuras como Cat Stevens e John Le Carré colocaram-se objectivamente ao lado dos Ayatollah.
Entre 1988 e 2015, a posição de John Le Carré tornou-se cada vez mais poderosa. Este predomínio ficou evidente na polémica dos cartoons e ainda se vê na forma como mulheres da linha de Hirsi Ali e Qanta Ahmed são rotuladas de traidores da sua própria cultura. Não deixa de ser curioso: as intelectuais muçulmanas que rompem com o Islão (Ali) ou com o islamismo radical (Ahmed) são destratadas como “direitistas” ou “vendidos ao Ocidente”, tal como os dissidentes dos países comunistas há trinta ou quarenta anos. Nos anos 60, 70 e 80, os dissidentes na linha de Havel, Sakharov ou Soljenitsine eram criticados ou ignorados pelos marxistas ocidentais que viviam no conforto do mundo NATO; de forma quase cómica, aqueles que conheciam de facto o comunismo recebiam lições de moral dos intelectuais marxistas que nunca viveram de facto em países comunistas; hoje em dia, as mulheres que viveram e vivem de facto as agruras do islamismo são silenciadas, secundarizadas ou mesmo rotuladas de “vendidas” pelos intelectuais pós-marxistas que têm as seus cátedras financiadas pela indústria da “islamofobia”.
 
 
 
Lida Abdul
 
Compromisso
Como é que podemos chegar a um acordo? Como é que podemos encontrar um chão comum entre a velha arrogância liberal que via no “outro” uma tábua rasa e o actual multiculturalismo que vê no “outro” um espelho passivo da culpa ocidental? Talvez valha a pena recordar Edmund Burke, um liberal à moda antiga, um liberal-conservador que era – ao mesmo tempo – um adversário da arrogância iluminista à James Mill e um inimigo do romantismo relativista de Herder. Burke defendia a governação e os valores britânicos, mas recomendava cautela à arrogância imperial, visto que existiam elementos válidos nos valores indianos. Temos de recuperar esta velha prudência burkeana. Em “Two Faces of Liberalism”, John Gray tenta esse exercício e recorda-nos que diferentes concepções de Bem podem coexistir na mesma sociedade. Não, não devemos considerar que uma cultura é o Inimigo só porque defende uma concepção de Bem diferente da nossa. Contudo, este pluralismo deve ter limites. Sem limites, o pluralismo cosmopolita transforma-se em relativismo. Mas como é que traçamos esse risco? Ou melhor: onde é que traçamos o risco entre pluralismo e relativismo? Só é possível resolver a equação através de exemplos práticos. Neste sentido, devemos olhar para o par que toda a gente tem na cabeça: o muçulmano e a sua mulher a viver na Europa.
Não apreciamos e até podemos considerá-las repugnantes, mas podemos tolerar a existência de comunidades patriarcais que colocam a mulher num lugar subalterno. Não apreciamos, até podemos considerar repugnantes alguns aspectos, mas os nossos espaços legais podem aceitar essa diversidade. É assim com as “comunidades ciganas” há anos. Pode ser assim com a “comunidade muçulmana”. Ou seja, podemos aceitar a condição doméstica das Nazneen. Não concordamos com essa realidade, mas podemos aceitá-la se existir consentimento da parte da mulher. Devemos ter a humildade para conceber que pode estar ali outra concepção de Bem. Não podemos estar sempre a traçar riscos na areia, até porque a tolerância é isto: aceitar realidades de que não gostamos. Tolerar não é amar acriticamente o “outro” em toda a sua diversidade; tolerar é respeitar o “outro” apesar de odiarmos partes da sua natureza. Há, porém, limites à tolerância e ao esforço contextualizador. Se tudo fosse relativo, o canibalismo seria uma questão culinária; se tudo fosse cultural, o apedrejamento de mulheres seria uma questão de pontaria; se tudo fosse relativo ao contexto, o único ponto a debater na excisão genital seria o grau de desinfecção da lâmina. Portanto, se podemos aceitar a subalternidade das Nazneen, não podemos aceitar os casamentos forçados das Shashana aos doze anos. Se podemos aceitar o véu, não podemos aceitar a excisão genital de meninas como Bibi. Se podemos aceitar que a mulher ande dois passos atrás do marido, não podemos aceitar desculpas culturalistas para actos tão graves como uma violação. Mas, infelizmente, isto já é uma realidade. Na Austrália, um afegão chamado Esmatullah Sharifi violou duas raparigas. O tribunal de primeira instância condeno-o à pena máxima, mas o tribunal de segunda instância aceitou a argumentação relativista do advogado de defesa. O juiz reduziu a pena porque Sharifi é oriundo de uma cultura sem “uma noção clara do conceito de consentimento da mulher no momento do acto sexual”. É a glória do multiculturalismo: um crime contra uma mulher passa a ser um fenómeno cultural se for perpetrado por um homem sem pele branca.
O panorama é este e não há sinais de mudança mesmo depois do 7 de Janeiro de 2015. A BBC, por exemplo, recusa apelidar de “terroristas” os assassinos que mataram doze pessoas no “Charlie Hebdo”. O termo correcto, diz a estação inglesa, é “militantes”. Em Paris, no final de Janeiro, uma peça da artista francesa Zoulikha Bouabdellah foi retirada de uma galeria de arte para não ferir susceptibilidades. Um grupo local de muçulmanos avisou que a presença daquele peça poderia desencadear “violência incontrolável”. O que mostra a peça? Saltos altos pousados num tapete de oração.
A traição continua.
 
Henrique Raposo
 
(ensaio originalmente publicado na revista Ler, no início deste ano, aqui reproduzido com autorização de Henrique Raposo – obrigado e um abraço, Henrique!)