No 90º aniversário de Mein Kampf (I)
Nietzsche nazificado
ou
De como o seu pensamento foi deturpado e falsificado pelos nazis
“A alma alemã
tem galerias e corredores dentro de si,
há nelas
cavernas,
esconderijos, masmorras; a sua desordem tem muito de encanto misterioso;
o alemão conhece bem os caminhos furtivos para o caos.”
Nietzsche, Para além do Bem e do
Mal (1886).
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John Heartfield
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Otto Strasser comprova, no
seu livro de memórias Hitler e eu, até
que ponto o Mein Kampf (2 vols., 1925
e 1926) de Hitler seria, apesar de best-seller,
o livro mais ignorado da Alemanha, até entre nazis. A verdade é que, apesar do
seu crescente êxito editorial, o Mein
Kampf foi, na verdade, um livro que raros liam, mesmo entre os seguidores
do Führer. O mesmo dirigente nazi – e
futuro dissidente –, explicava alguns dos defeitos essenciais desta tão pouco
lida bíblia racista e ultra-nacionalista, assim como referia os principais
ideólogos que a tinham inspirado:
“Mein Kampf, em estado bruto, era um verdadeiro caos de lugares
comuns, de reminiscências escolares, de juízos subjectivos, de rancores
pessoais. Leituras políticas mal digeridas misturavam-se ali com discursos
antigos de um Lueger (fundador do Partido Cristão-Social na Áustria) ou de um Schönerer
(chefe do Partido da Grande Alemanha) e anti-semita que tinham formado os
Alemães dos Sudetas durante a dupla monarquia.
Encontrava-se ali Huston
Chamberlain assim como Lagarde, dois autores cujo pensamento tinha sido
transmitido a Hitler pelo pobre Dietrich Eckart; reconhecia-se cóleras
anti-semitas de Streicher, as
suas opiniões sobre os excessos sexuais dos judeus e as visões engenhosas de Rosenberg
sobre política estrangeira. Tudo aquilo estava redigido no estilo dum aluno do
sexto ano, que seria de esperar deveras mais claros no futuro. Um capítulo.,
creio que do Padre Staempfle, que reviu a obra inteira, um só capítulo se
mostrava inteiramente original, naquele em que se trata de propaganda.
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John Heartfield
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O Padre Staempfle, um
eclesiástico de uma grande erudição, chefe de redacção do jornal diário de
Miessbach, trabalhou durante meses para ordenar e condenar os pensamentos que
se exprimiam no Mein Kampf; eliminou
os erros flagrantes e as banalidades demasiado infantis. Hitler nunca lhe
perdoou, ao corrigir a sua obra, ter-se aproximado demasiado das suas
fraquezas. Fê-lo assassinar por um «destacamento especial de morte » na noite
de 30-VI-1934.
A propósito de Mein Kampf, recordo-me duma história
divertida (…). Estávamos no congresso do partido em Nuremberga, em 1927. Eu era
membro do partido há dois anos e meio e encarregado do relatório. Citei algumas
frases do Mein Kampf, o que provocou
uma certa sensação. À noite, quando eu jantava com alguns camaradas do partido,
Feder, Kaufmann e outros, estes perguntaram-me se eu tinha verdadeiramente lera
o livro que nenhum deles parecia conhecer. Confessei ter extraído algumas
frases significativas sem de todo me ter ocupado do contexto. Foi a hilaridade
geral de modo que se decidiu que o primeiro a chegar que tivesse lido o livro
pagaria a conta dos demais. Gregor Strasser, interrogado à entrada, respondeu
com um «não» sonoro, Goebbels sacudiu a cabeça acabrunhado, Goering soltou uma
gargalhada, o conde Reventlow desculpou-se dizendo que tivera falta de tempo.
Contudo nem um só estava ao corrente da sanção, de maneira que cada um teve de
pagar a sua conta.”
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Karl Lueger
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Georg Ritter von Schönerer
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Paul Anton de Lagarde
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Paul Anton de Lagarde
(nome original: Paul Bötticher, Berlim, 2-XI-1827 – Göttingen, 22-XII-1891),
orientalista alemão, pensador político e filólogo, precursor do Nazismo, fez
carreira universitária em Göttingen, sucedendo a G. H. Ewald na filosofia
oriental, trabalhando sobretudo em antigos textos aramaicos, gregos e arábicos,
defendendo nos seus escritos um nacionalismo Völkisch (“popular”),
pedindo que se procedesse a uma depuração étnica da Alemanha, além de que,
segundo ele, também o cristianismo devia ser purificado, tornando-se então uma
forma positiva de cristandade, exigindo, acima de tudo o fim do poder espiritual
e económico dos judeus, responsáveis pelo materialismo e comercialização
reinantes, “fornecedores de decadência”, não devendo haver preconceitos
“humanitários” em relação a eles, já que a judiaria seria feita de parasitas e
pestes, havendo que os suprimir o mais depressa possível. A sua influência
directa em Hitler e Rosenberg foi
evidente, assim como a sua severa disposição em relação a eliminar os judeus
abria ao nazismo a via genocidária. No seu Diário,
Rosenberg cita-o 6 vezes, afirmando ali, em 17-IX-1936, que Nietzsche, Wagner e
Lagarde tinham sido “profetas.”
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Richard Wagner
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Quanto a Richard Wagner
(Leipzig, 22-V-1813), o compositor da Tetralogia
foi um dos precursores mais importantes do ideário nazi, como o assinalaram
tanto contemporâneos (Hermann Raushchning, Konrad Heiden) como nos estudiosos
do nosso tempo (v.g., William Shirer, Joachim Fest, Ian Kershaw). Nas
suas intensas conversas com o primeiro, Hermann Rauschning,
Hitler declarava que não admitia precursores: “Só uma excepção: − Ricardo Wagner”,
confessando que, desde a sua mocidade, fora muitas vezes a Bayreuth,
considerando agora não só a música do famoso compositor mas “toda a doutrina
wagneriana e a sua teoria de cultura germânica", desde o horror do mestre
à alimentação carnívora, considerando o autor do Parsifal como, “acima de tudo, a maior figura de profeta que o povo
alemã jamais possuíra”..
Coincidindo com Wagner, o anti-semita que desprezava Mendelsohn e Meyerbeer por
serem judeus, ainda em diálogo com o mesmo Rauschning, Hitler explicava porque
via no mundo das óperas de Wagner o mito da chefia, do herói germânico salvador
e do Graal dos homens de sangue puro:
“Não é a religião da
piedade que se glorifica, segundo o evangelho neo-cristão de Schopenhauer; é o
culto do sangue nobre e precioso, da pura e irradiante jóia em torno da qual se
agrupa a confraria dos heróis e dos sábios. Parsifal, o herói ignorante mas
puro, deve escolher entre as voluptuosidades do jardim de Klingsor, que
simboliza os desvarios duma civilização corrompida e os austeros deveres dos
cavaleiros que velam o sangue puro, fonte mística de toda a vida. É o drama de
todos nós. (…). A vida terna que nos concede o Graal é reservada só aos homens
de sangue puro, só aos homens nobres. Conheço a fundo todo o pensamento de
Wagner. A cada nova fase da minha vida, a ele regresso.”
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John Heartfield
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Podemos levar mais longe
esta identificação hitleriana com a mitologia anti-semita e germânica do seu adorado
mestre Wagner se pensarmos que ele procurou, nos dias finais da sua
catastrófica carreira como chefe absoluto da Alemanha nazi, fechado nesse
Bunker de Berlim bombardeado pelas tropas russas e em vésperas de ser tomado
pelos tanques do Exército Vermelho de Jukov, rivalizar com Wotan, desaparecendo
no meio das chamas de uma gigantesca pira funerária de apocalipse, à maneira
dum novo Ragnarök, em
que a suprema divindade nórdica era destruída, devorada pelo colossal lobo
gigante Feirir, caindo a terra como em fogo no mar – o que dava um remate fatal
ao seu prometido vaticínio do curso do III Reich milenar como uma opção trágica
final entre Weltmacht oder Niedergang (“domínio
mundial ou declínio”): esse Walhalla da saga da visão wagneriano-hitlerianas, a
que Wotan lançava fogo no Crepúsculo dos
Deuses, seria de facto e em
escala total a Alemanha destroçada nos derradeiros dias de Maio de 1945,
extinguindo-se o Führer que conduzira
esse destruição e todos os que seguiam atrás deste alucinado flautista de
Hameln. Em
suma, o Wotan wagneriano-nazi tragicamente devorado pelo pelos monstros e pela
chamas da catástrofe final do seu reino não deixava de o tornar semelhante ao
Behemoth bíblico, símbolo do caos, espécie de hipopótamo diferente dessa outra
figura mítica mencionada também no Pentateuco, o Leviatã no qual que Hobbes
simbolizara o monstro da ordem e do poderio, não sendo por isso curioso que
alemão judeu exilado tivesse dado, em 1942, na primeira edição da sua
interpretação do fenómeno nazi, o título de Behemtoth.
Pensamento e Acção no Nacional-Socialismo.
O ensinamento capital
recebido de Wagner por este “cabo da Boémia” (como se exprimia com desprezo
acerca dele o general Hindenburg antes de o nomear para a chancelaria, depois
de lhe ter proposto em vão um lugar de ministro dos correios), o antigo
vagabundo e artista recusado duas vezes pela Academia de Belas Artes de
Viena, que falhara nas suas grandes
esperanças milenaristas como dirigente político carismático e absoluto, destino
que levou um dos seus melhores biógrafos, Joachim Fest, a considerar que, com o
compositor de Leipzig venerado por Hitler como seu mestre absoluto, cuja música
era “a conquista desonesta da multidão que começa”(Fest, op. cit., p.48): na senda do seu entranhado wagnerismo, igualmente
ultranacionalista e anti-semita, delirantemente apocalíptico, Hitler aprendera
a manipular desonestamente a multidão, primeiro com o Putsch de farsa em 1923, depois pelo “milagre” desta Machtergreifung (conquista do poder) de
30 de Janeiro de 1933.
Passemos agora a um
filósofo da segunda metade do século XIX que seria abusivamente considerado como
precursor do nazismo e que a movimento da suástica faria um uso deturpado e inteiramente
falseado: Nietzsche. O filósofo foi, de facto, utilizado, de modo espúrio e
desonesto pela ideologia nazi como sendo um dos seus alegados profetas, sobretudo
em dois vectores da sua filosofia, a ideia do super-homem (Übermensch ou sobre-homem) do Assim
falava Zaratustra, herói no qual Hitler se julgara profetizado, e, por
outro, no seu desprezo pelo cristianismo, condenado este como religião de
raízes judaicas, o que facilitaria a sua injustificada assimilação como
pensador anti-semita, interpretação que não tinha base alguma, dada a simpatia
pessoal e genérica que o filósofo tinha pelos judeus e ainda pela seu asco
pelos sentimentos anti-semitas da sua irmã Elizabeth e do seu cunhado Förster.
Lembrando que a irmã do filósofo oferecera a Hitler uma bengala que pertencera
ao irmão, Daniel Halévy, um dos biógrafos franceses de Nietzsche, indignara-se
com esse gesto incompreensível: “O cajado do peregrino solitário nas mãos do
homem das multidões, que erro! Sabíamos, já de longa data, que Lizabeth era
especialista em cometer gaffes.
Nietzsche teria rido amargamente dessa aristocracia de setenta milhões de seres
que o nazismo pretendeu criar.”
Não deixa de ser
surpreendente que, nas suas conversas com Rauschning, Hitler lhe dissesse:
“Quem considera o nacional-socialismo senão como movimento político, bem pouco
o entende. O nacional-socialismo e mais do que uma religião – é a vontade de
criar o super-homem”, observando-lhe o céptico autor do Hitler disse-me que lhe parecia “impossível realizar a cultura
biológica do super-homem”, pois lhe lembrava uma ideia de criadores de gado, ao
que o Führer retorquiu que “toda a
política que não tenha uma base biológica ou objectivos biológicos é uma
política de cegos, uma política realmente cega”, acrescentando triunfalmente:
“O homem novo vive a nosso lado. Está ali! (…). Vou-lhe dizer um segredo. Vi o
homem novo. É intrépido e cruel. Senti medo diante dele” – e o então presidente
do senado de Dantzig e futuro dissidente do nazismo acrescenta que Hitler,
pronunciando “estas palavras singulares (…), vibrava e tremia de êxtase.” Esta
versão tão absurda e deturpada do nietzschismo e do seu Super-Homem mostra-nos
bem como foi espúrio e falsificador da obra de Nietzsche a leitura feita pelos
homens que brandiam a suástica como bandeira, incapazes que eram de compreender
o grande poema lírico ditirâmbico sobre o profeta que, aos trinta anos, desceu
da montanha para anunciar aos homens da cidade que lhes vinha ensinar “o
sobre-humano”, já que “o homem é algo que deve ser superado”, porquanto “Deus
morreu” e o homem não passava duma “corda amarrada entre o animal e o
super-homem – uma corda por cima d de um abismo.(…). O que é grande no homem é
que ele é uma ponte e não um fim”.
Sumarizemos o essencial
desta inaceitável assimilação nazi do pensamento de Nietzsche. Em
muitas das suas obras o filósofo do Zaratustra
condena
repetidamente os alemães e faz o elogio dos judeus, como em Para além do Bem e do Mal (Jenseits von Gut und Böse, 1886): desde
a frase que figura em epígrafe deste estudo, garantindo que “o alemão conhece
bem os caminhos furtivos para o caos”(Schleichwege
zum Chaos) até à pergunta “o que
deve a Europa aos judeus?”, Nietzsche levantava invencíveis críticas aos seus
compatriotas, da mesmo modo que via no povo da Aliança um força que admirava,
respondendo à referida questão com esta passagem “Muitas coisas boas, boas e
más, e sobretudo uma, que é ao mesmo tempo das melhores e das piores: o grande
estilo na moral, a terrível majestade de infinitas reivindicações. De infinitos
significados, todo o romantismo e todo o carácter sublime das problemáticas
morais”, respondendo: “Nós, artistas entre os espectadores e filósofos, temos
por isso, para com os judeus – gratidão”, acrescentando logo a seguir que eles
eram “a raça mais forte, mais rija, mais pura de quantos vivem actualmente na
Europa”, de tal modo que, “um pensador em cuja consciência pés a
responsabilidade pelo futuro, contará em todos os projectos que fizer sobre
este futuro, com os judeus e com os russos, como sendo os dois factores, por
enquanto mais seguros e mais prováveis, no grande jogo do conflito de forças”,
garantindo que eles “não trabalham
para nesse sentido. Querendo apenas ser integrados na Europa e por ela
absorvidos, (estando) sequiosos por se fixarem seja onde for e, uma vez
admitidos, respeitados, acabarem com a vida nómada, com o «Judeu Errante» − e
devia-se atender a esta aspiração e ir
ao seu encontro”. Filo-semita, tendo entre
os seus amigos mais íntimos diversos judeus, Nietzsche detestava os
anti-semitas, a começar pela sua irmã e o marido desta, Bernhard Förtser,
acrescentando, no mesmo livro citado, que “talvez fosse útil e conveniente expulsar
do país os vociferadores anti-semitas”.
Além de profundamente
crítico da germanidade e do “alienamento doentio que a loucura do nacionalismo
provocou e ainda provoca entre os povos da Europa”(die Entfremdung, welche der Nationalitäts-Wahnsinn zwischen die die
Völker Europas gelegt und noch legt), em ruptura com Wagner por este se
revelar um feroz, anti-semita, além de
progressivamente cristão com o seu Parsifal, contra “a guincharia sórdida” deste (dies schwüle Kreischen), ao mesmo tempo
que o compositor apregoava o “caminho para Roma”, além
de autor, desde 1850, de uma furiosa obra anti-semita do mesmo contra a música
judaica, O Judaísmo na Música (1850),
enquanto Nietzsche se distanciava cada vez mais dos seus compatriotas, a ponto
de garantir em 1883, e mais tarde, ao crítico e filósofo dinamarquês Georg
Brandes, em carta de 10-IV-1888, uma ascendência nobre polaca para o seu
apelido, os Nietzky (o que nunca foi confirmado pelos genealogistas),
enaltecendo a França e o espírito gaulês ou apreciava sobremaneira o “espírito
de bom humor, exaltado e amoroso” de Mozart, lembrando que este, “por
felicidade, não era alemão”. Um
dos primeiros politólogos do nazismo, Franz Neumann, acima referido, lembrava
em 1942 que Nietzsche atacara o nacionalismo e o imperialismo alemão com o
mesmo desprezo com que repudiava a democracia, o liberalismo e o cristianismo,
sublinhando ainda que, embora a sua filosofia e a ideologia nacional-socialista
contivessem muitas semelhanças, “há entre elas um abismo intransponível, já que
o individualismo daquele transcende o nível de toda a ordem autoritária.” Sublinhe-se
que a assimilação do pensamento de Nietzsche pelo III Reich teve ainda a
facilitá-lo a acção da figura da abusiva irmã do filósofo, a já mencionada
Elizabeth Nietzsche-Förtser. (Röcken, Saxónia,1846 – Weimar, 8-XI-1935).
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Elisabeth Nietzsche
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Elizabeth Nietzsche casou
com um antigo professor liceal, Bernard Förster, rabioso anti-semita, acabando
ambos por emigrarem ambos, em 1887, para o Paraguai, onde fundaram uma colónia
germânica de fazendeiros, a Nueva
Gernania, experiência de emigração
que acabaria por se revelar desastrosa, acabando o cunhado do filósofo por se
suicidar em 3-VI-1889 e regressando a viúva à Alemanha, quatro anos depois. Em
cartas à irmã, de 1887, o filósofo repetiria a sua aversão pelo anti-semitismo
do seu cunhado, assim como pela sua colonização sul-americana da Nueva Germania: “Dizes que a
Neo-Germania nada tem a ver com o anti-semitismo, mas sei de modo certo que o
projecto de colonização é de carácter essencialmente anti-semita por essa
famosa «Correspondência» que me enviam em segredo e apenas aos membros mais
seguros do partido. (Esperemos que o senhor meu cunhado não ta dará a ler! Ela
torna-se cada vez mais desagradável). Ah, meu bom lama, como é que tu te
pudeste lançar numa semelhante aventura?” (carta enviada de Chur, 21-V-1887).
“O teu casamento com um chefe anti-semita exprime, para toda a minha maneira de
ser, um afastamento que me enche sempre de rancor e de melancolia. Bem me dizes
que casaste o colonizador e não com o anti-semita (…), mas aos olhos do mundo
Förster ficará sempre até à sua morte, o chefe dos anti-semitas.”(carta de Nice, 26-XII-1887).
Após o colapso mental do
irmão em Turim, Elizabeth velaria pelo
filósofo, seguindo-o no hospício onde seria internado, ficando, sobretudo, com
o encargo de conservar o seu espólio, que se transformaria, algum tempo
volvido, no Arquivo Nietzsche, em Weimar,
local de peregrinação de Hitler e outros dirigentes do III Reich, como Alfred
Rosenberg e o Dr. Wilhelm Frick, o
jurista e íntimo do Führer nos anos
de tomada do poder, nomeado ministro do Interior na Turíngia (1930) e, depois,
ministro do Interior do Reich (1933), o autor das leis antijudaicas de 1935,
sendo, por fim julgado em Nuremberga e condenado à forca, sendo ali executado.
Quanto à irmã de Nietzsche, coube-lhe a honra de receber as visitas do Führer no Arquivo Nietzsche em Weimar,
sendo Hitler fotografado ali, olhando com ar grave e concentrado um busto de
pedra do filósofo do Ecce Homo, autor
que ele nunca tenha lido. Quanto a Frau
Nietzche-Förtser, faleceu em 8-XI-1935 e no seu funeral daquela que não
hesitara em fabricar uma obra que o irmão nunca escrevera, agora pastichado pela
irmã e imbuído de espírito nazificante, o Wille
zur Mchat (Vontade de Poderio),
estariam presentes os barões do III Reich, a começar com Hiutler, estando ainda
nessa cerimónia fúnebre Alfred Rosenberg, Baldur von Schirach,
Wilhelm Frick, Fritz Stauckel, além de uma guarda de honra da SA e da SS.
Goebbels, estando adoentado com uma constipação, enviou os seus pêsames e uma
coroa funerária. Durante esse funeral nacional, a face do Führer exprimia um profundo pesar, não tendo dito uma só palavra,
cabendo a Fritz Sauckel fazer a oração fúnebre.
Futuro general das SS e ministro do Trabalho, seria acusado pelo tribunal
internacional de Nuremberga como dirigente do trabalho escravo do III Reich,
além responsável pelo extermínio de operários judeus na Polónia, sendo
enforcado em 1946.
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John Heartfield
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A mais dramática e
mórbida coincidência é que, nesse funeral da irmã de Nietzsche, quatro dos seus
participantes mais altos na esfera dos barões do III Reich seriam todos
enforcados, por decisão do tribunal internacional de Nuremberga, nessa mesma
data de 16-X-1946: Alfred Rosenberg, o “filósofo” nazi da raça, Hans Frank, o
carrasco da Polónia conquistada pela Wehmacht depois de celebrado o infame
tratado russo-alemão de 1939,
Wilhelm Frick, o jurista que confeccionara as leis racistas anti-judaicas de
Nuremberga, em 1935, e Fritz Sauckel, o ministro dos escravos na indústria
germânica durante a guerra, o distinto orador mencionado, que ali fazia a
oração fúnebre em honra da abusiva irmã do filósofo de Para além do Bem e do Mal. Podemos assim dizer, sem forçar os
factos, que a sombra ominosa e perturbadora de Elizabeth Nietzsche-Förster,
pairara sobre esse julgamento internacional que decorrera entre 1945 e 1946 na
mesma cidade que o nazismo fizera um dos seus santuários e, ao mesmo tempo,
sinónimo de leis racistas e, por fim, da Nemesis internacional encarregada de
julgar todos esses assassinos, psicopatas, além de falsificadores do pensamento
do autor de Assim falava Zaratustra.
João Medina
NB: Este texto é um excerto dum ensaio nosso intitulado Hitler como ideólogo e político do Nazismo (inédito).
A continuação deste capítulo será oportunamente publicada no Malomil.