Fez
há pouco 40 anos. A 24 de Janeiro de 1975, Keith Jarrett tocou na Ópera de
Colónia, e em público. Segundo dizem, a gravação desse concerto, com o selo da
então recém-criada ECM Records, é o álbum de jazz a solo mais vendido de todos
os tempos. E, já agora, o disco de piano a solo mais vendido de todos os
tempos, em todos os géneros musicais.
Vendeu qualquer coisa como 3,5 milhões de cópias.
Mais espantoso do que os milhões de vendas
é o facto desse momento mágico ter sequer acontecido. Tudo sucedeu por um triz
feliz, um acaso do destino. O concerto de Colónia foi organizado por uma
rapariga quase adolescente, Vera Brandes, que na altura contava apenas 19 anos e
era a mais jovem promotora de espectáculos da Alemanha. O músico chegou cansado
a Colónia no próprio dia do concerto, já tarde, após uma viagem extenuante de
carro. Vinha de longe, da suíça Zurique. Não dormia bem há vários dias, sofria
de dores lancinantes nas costas, tão lancinantes que chegou à Alemanha de braço
ao peito, o que não é propriamente a melhor forma de um pianista se apresentar
a conserto. Por uma malvada conjunção astral, nos bastidores tudo correra mal.
Enganaram-se no piano, colocando em palco o instrumento que estava preparado
para os ensaios, um modelo bastante diferente – e muito pior – do que aquele
que Keith Jarrett solicitara. Nem sequer os pedais funcionavam bem, obrigando o
músico a ultrapassar a falha através do seu dotes geniais de improvisação.
Segundo disse mais tarde o produtor da ECM Records, «provavelmente, ele tocou assim
porque não tinha um bom piano. Não conseguiu apaixonar-se pelo som do
instrumento e, por isso, teve de arranjar outra forma de tirar o melhor que
podia daquele piano». Ao início, Jarrett recusou tocar no piano roufenho que o
aguardava em palco, mas Vera Brandes convenceu-o: na sala esgotada, 1.400
pessoas aguardavam, impacientes. O concerto fora marcado para uma hora
esdrúxula, onze e meia da noite. Era a única hora que os responsáveis pela
Ópera de Colónia tinham concedido a Vera Brandes para se realizar um
espectáculo de jazz naquele recinto distinto. Quando tudo apontava para um
desastre, aconteceu um milagre. Ainda hoje, quando ouvimos o Köln Concert, ficamos boquiabertos ao
saber que aquilo poderia nem sequer ter
acontecido. Se o concerto fosse realizado no dia seguinte, com o piano adequado,
afinadinho, tudo seria diferente, não seria aquele, não seria aquilo, como o demonstra o facto de,
muitos anos depois, Jarrett o ter repetido no Carnegie Hall. Concerto de Jarrett no
Carnegie Hall: alguém notou, alguém morou? Não; o que fica e ficará é o
Concerto de Colónia. Um improviso a solo num piano de reserva.
Let us not wallow in the valley of despair.
Anos
antes, em 1963, outro feliz acaso do destino, mais um triunfo do improviso
sobre as forças do mal iminente e prenunciado. Na véspera da Marcha sobre
Washington, Martin Luther King Jr. reuniu-se com os seus companheiros de luta,
um grupo que sofrera na carne, com prisões e humilhações várias, o combate
heróico contra os preconceitos fundados na cor da pele. Nesse combate, Luther
King era o cavaleiro que trespassava o dragão do ódio, como no quadro de Ucello
na National Gallery.
Paolo Ucello, São Jorge e o Dragão, c. 1470
National Gallery, Londres
|
Os
colaboradores de King aconselharam-no a não usar o refrão I have a dream. Martin já o utilizara diversas vezes, era um cliché, uma fórmula batida e repisada,
sem qualquer novidade ou carga apelativa. Discutiram o texto horas a fio. Pelas
4 da madrugada, cansado e gasto, King subiu ao seu quarto, dizendo aos companheiros
que ia rezar para que Deus lhe dissesse que palavras deveria usar na manhã
seguinte. A Marcha sobre Washington, por causa de mil e uma peripécias, esteve
quase para não se realizar. Muitos tentaram boicotá-la. Ao longo dessa manhã de
28 de Agosto de 1963 milhares de pessoas, vindas de toda a América,
aglomeraram-se junto ao Monumento a Lincoln. Muitos oradores falaram antes de
Martin Luther King Jr. Quando chegou a vez deste, o último a discursar, Martin
começou a desfiar o que trazia escrito. A sua voz tonitruante ia percorrendo as
linhas escritas no papel. Mas, de súbito, King largou os papéis, começou a
improvisar: «So even though we face the difficulties of today and tomorrow, I
still have a dream.»
Wyatt
Tee Walker, um dos seus conselheiros, aquele que mais inflamadamente estivera
contra o uso do refrão do sonho, olhou para o chão do Mall; desalentado, disse
para si, entre dentes: «Aw shit. He’s using the dream». Martin Luther King já falara
do seu sonho diversas vezes, inclusive na semana anterior, num discurso em
Chicago; e poucos meses antes, num comício gigantesco em Detroit. Se tivesse
seguido os avisados conselhos dos seus companheiros, plenos de sensatez e tino,
Luther King não teria dito as palavras I
have a dream – e tudo o mais que improvisou depois, sem papel escrito, arredando
as folhas do discurso que trazia consigo. Mas, muito provavelmente, se não
tivesse falado do seu sonho hoje não saberíamos sequer que Martin Luther King Jr.
fizera um discurso em Washington. Ignoraríamos até, muito provavelmente, que em
1963 houve uma Marcha sobre Washington contra a segregação racial. Pelo sonho é
que foi. E pensarmos que James Earl Ray, o assassino de Luther King, na sua fuga
à polícia passou por Lisboa, hospedando-se numa pensão do Cais do Sodré, contratando os
serviços de uma prostituta… Chamava-se simplesmente Maria, deixou-se
fotografar, o seu rosto correu mundo.
Maria
|
O quarto em que pernoitou o foragido James Earl Ray
|
A
história do estribilho I have a dream
é mais ou menos como a do piano da Ópera de Colónia: se Keith Jarrett não
tivesse que tocar num piano roufenho talvez não improvisasse daquela maneira
única, de um lirismo transcendente. Num e noutro caso, o acaso feliz produziu
uma mudança histórica. A partir da Marcha sobre Washington, nada seria igual na
luta contra a segregação dos negros. O Concerto de Colónia, por sua vez,
assinala uma viragem na história do jazz, que à época se encontrava bloqueado pelo
tédio da fusão jazz-rock (antes que os especialistas me apedrejem e lapidem,
leiam isto e já agora isto).
Um
dia, há um par de meses, numa das nossas conversas, a Mena Mónica usou a palavra
serendipity. Sim, sei que a expressão
tem um significado preciso e bem definido, e que se não confunde com sorte ou
azar, destino ou acaso. Mas isto é só um blogue, não façam caso. A serendipidade
não aconteceu apenas em Colónia, quando um piano de terceira categoria, tocado
pelo génio humano, produziu uma sonoridade única, irrepetível.
A
serendipidade, o acaso feliz, aconteceu noutros lugares da Alemanha, e há muitos anos atrás.
Dentro de dias, a 30 de Abril, assinala-se o 70º aniversário do suicídio de
Hitler no bunker de Berlim. Em 8 de
Maio de 1945, a população de Demmin, uma pequena cidade do nordeste da
Alemanha, decidiu suicidar-se em massa ante as notícias da morte do Führer e da chegada iminente dos russos.
O maior suicídio colectivo da história da Alemanha, um país que, ao longo da
história, já se suicidou várias vezes. Dos 15.000 habitantes de Demmin, entre
700 e 1.000 pessoas optaram pela morte voluntária. Levaram meses e meses a
resgatar os cadáveres na correnteza do rio Penne. Diversas mães atiraram os
filhos ao rio antes de se lançarem elas próprias nas águas vorazes. A mãe de
Bärbel Schreiner, então uma menina de seis anos, preparava-se para o salto
derradeiro. O irmão de Bärbel interrompeu-a, com a inocente pergunta: «Mãe, nós
não, pois não?» «Ainda me lembro da água avermelhada pelo sangue», diz Bärbel
Schreiner, hoje uma senhora de 76 anos, que acrescenta: «sem aquela pergunta, estou
convencida de que a minha mãe nos teria afogado aos dois.»
Bärbel Schreiner em criança, com a mãe e o irmão mais velho
Demmin, 1944
|
Falando
de efemérides e da Alemanha, e dos grandes momentos da História do Ocidente,
convém recordar outra data fundamental da nossa civilização. A partir de raízes
judaico-cristãs milenares, o Ocidente, que muitos asseveram estar em putrefacção
e declínio, produziu coisas tão grandiosas como as cantatas de Bach, as
catedrais ogivais e as ogivas atómicas, o papel higiénico e Manuel Luís Goucha.
No cúmulo das maravilhas, uma instalação escultórica concebida em Horizontina,
sul do Brasil, há precisamente 34 anos. No passado dia 15 de Abril, a modelo
Gisele Caroline Bündchen, fruto natural da frondosa miscigenação
germânico-tropical, abandonou as passerelles.
Fê-lo no preciso lugar onde, vinte anos antes, desfilara pela primeira vez, a
Semana da Moda de São Paulo. No ano 2000, já estrela bioagradável,
apareceu num anúncio da Victoria’s Secret ostentando aos peitos um soutien avaliado em 15 milhões de
dólares. Que no mundo existia um soutien
de 15 milhões de dólares, enquanto só neste ano já morreram 1.600 seres humanos
a tentar atravessar o Mediterrâneo, é algo que nos deixa confusos. Mas só se
admira quem quer. Por nós, já aqui o temos dito, vezes sem conta: o mundo é um lugar estranho. Num
instante, num segundo, a vida muda, e o mundo é capaz de reunir em si o melhor e
o pior. Na semana passada, uma jovem migrante, Wegasi Neblat, foi salva de um
naufrágio por um sargento do exército grego, Antonis Deligorgis. Tudo aconteceu
por acaso, o puro acaso: o militar estava com a mulher, Theodora, e decidiram
beber um café junto ao mar, numa praia da ilha de Rodes. Ao ver o naufrágio, o
sargento Antonis fez-se ao mar traiçoeiro. Feriu-se a valer, com golpes fundos
nas mãos e nos pés, mas salvou da morte 20 dos 93 migrantes que seguiam no
navio destroçado. Três dias depois, Wegasi Neblat deu à luz a criança que
trazia no ventre. Pôs-lhe o nome do seu salvador, Antonis, que de Rodes foi
colosso.
Antonis Deligorgis salvando Wegasi Neblat
Rodes, Abril de 2015
|
Além
de uma fortuna avaliada para cima de 400 milhões de euros, Gisele Bündchen é a
serendipidade em forma de gente. A par de Elle McPherson, o que a torna diferente dos outros modelos não é ser mais bela ou mais elegante; é ser uma
celebração festiva à vida, uma conjunção radiosa e felicíssima de células e tecidos: 53
quilogramas de alcatra humana, estendida ao comprido por 1,80m de altura.
O
cancro é a serendipidade às avessas, uma conjunção celular negativa. Gisele
Bündchen é o oposto disso, o anti-cancer.
Não interessam nada as fotografias de agora, fabricadas e artificiais. O
erotismo é tanto, e tão fogoso, que atordoa a nossa racionalidade e obscurece o ponto que em Gisele mais importa, a vitalidade
primordial. Esta encontra-se muito mais nas imagens de infância. Já lá estava,
intacto e puro, o dom originário, a perfeita e saudável harmonia mitocondrial.
Gisele Bündchen, a própria, em criança
|
A Mena não acredita muito nestes acasos. Há
dias, falando os dois de acasos e destinos, respondeu-me à grande, com uma citação
caríssima. William Shakespeare, e o Acto I de Júlio César:
Men at some time are masters of their fates;
The fault, dear Brutus, is not in our stars,
But in ourselves, that we are underlings.
Admito, o destino é nosso, não está nas
estrelas. Keith Jarrett, Luther King e a mãe de Bärbel Schreiner agiram, cada
um a seu modo, seguindo a lei terrena do livre-arbítrio. Daí tivemos, por esta
ordem, um concerto em Colónia, um discurso em Washington e duas crianças resgatadas
à morte por afogamento na vila-suicida de Demmin. O sargento grego, é certo,
poderia não se ter lançado às águas para salvar os seus semelhantes. Logo ele,
cidadão de um país à deriva, que desesperadamente tenta salvar-se
do naufrágio. Em todo o caso, Antonis agiu; e agiu de uma forma tão impulsiva e
imprevista como Keith Jarrett improvisou em Colónia ou Martin Luther King falou em
Washington. O facto de ele e a mulher estarem ali, a metros da catástrofe, na
praia de Rodes, não tem outra explicação que não esta: serendipidade.
Em 1937, o professor Johanes Theinert e
a sua mulher Hildegard, casados de fresco, começaram a escrever um diário. A
última entrada tem data de 9 de Maio de 1945. «A guerra acabou. As armas
calaram-se». Nesse mesmo dia, o professor Theinert deu um tiro na mulher e
depois virou a arma contra si próprio, e disparou. Perante um gesto destes, outro trecho do diário
do casal, escrito no dia fatal:
Quem
se lembrará de nós?
Quem saberá como
acabámos?
Terão estas linhas
algum sentido?
O
diário seria encontrado. No meio de tanta devastação, só um acaso permitiu descobrir
o caderno íntimo. Por causa disso, hoje sabemos como acabaram as vidas de
Johanes e Hildegard Theinert. E, respondendo à outra pergunta que então fizeram,
lembramo-nos deles hoje, 70 anos depois, pelo feliz destino que levou à
descoberta do seu diário. Há nele uma derradeira interrogação, a mais difícil
de todas: «terão estas linhas algum sentido?».
Não sei. Esta é uma pergunta que tanto
se pode aplicar ao diário dos Theinert como às linhas que acabei de escrever. Farão
sentido? Não sei.
De certeza certa, só sei uma coisa: no mundo, Mena, neste lugar estranho e desconcertado,
no mundo de soutiens de 15 milhões de
dólares, não há maior serendipidade do que a amizade. À nossa.
Para Maria Filomena
Mónica.
António Araújo
post-it
– já agora, e sem ofensa, dedico também este texto ao casal octogenário amoroso que anteontem
vi no IKEA de Alfragide à volta de um prato de degustação de bolachas de
gengibre. Cada um deles alambazou, no mínimo, umas sete ou oito bolachas (de
gengibre). Depois foram para casa, todos contentes.