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terça-feira, 28 de abril de 2015

You must believe in Spring.

 
 
 
 
 
 
 
Fez há pouco 40 anos. A 24 de Janeiro de 1975, Keith Jarrett tocou na Ópera de Colónia, e em público. Segundo dizem, a gravação desse concerto, com o selo da então recém-criada ECM Records, é o álbum de jazz a solo mais vendido de todos os tempos. E, já agora, o disco de piano a solo mais vendido de todos os tempos, em todos os géneros musicais. Vendeu qualquer coisa como 3,5 milhões de cópias.
         Mais espantoso do que os milhões de vendas é o facto desse momento mágico ter sequer acontecido. Tudo sucedeu por um triz feliz, um acaso do destino. O concerto de Colónia foi organizado por uma rapariga quase adolescente, Vera Brandes, que na altura contava apenas 19 anos e era a mais jovem promotora de espectáculos da Alemanha. O músico chegou cansado a Colónia no próprio dia do concerto, já tarde, após uma viagem extenuante de carro. Vinha de longe, da suíça Zurique. Não dormia bem há vários dias, sofria de dores lancinantes nas costas, tão lancinantes que chegou à Alemanha de braço ao peito, o que não é propriamente a melhor forma de um pianista se apresentar a conserto. Por uma malvada conjunção astral, nos bastidores tudo correra mal. Enganaram-se no piano, colocando em palco o instrumento que estava preparado para os ensaios, um modelo bastante diferente – e muito pior – do que aquele que Keith Jarrett solicitara. Nem sequer os pedais funcionavam bem, obrigando o músico a ultrapassar a falha através do seu dotes geniais de improvisação. Segundo disse mais tarde o produtor da ECM Records, «provavelmente, ele tocou assim porque não tinha um bom piano. Não conseguiu apaixonar-se pelo som do instrumento e, por isso, teve de arranjar outra forma de tirar o melhor que podia daquele piano». Ao início, Jarrett recusou tocar no piano roufenho que o aguardava em palco, mas Vera Brandes convenceu-o: na sala esgotada, 1.400 pessoas aguardavam, impacientes. O concerto fora marcado para uma hora esdrúxula, onze e meia da noite. Era a única hora que os responsáveis pela Ópera de Colónia tinham concedido a Vera Brandes para se realizar um espectáculo de jazz naquele recinto distinto. Quando tudo apontava para um desastre, aconteceu um milagre. Ainda hoje, quando ouvimos o Köln Concert, ficamos boquiabertos ao saber que aquilo poderia nem sequer ter acontecido. Se o concerto fosse realizado no dia seguinte, com o piano adequado, afinadinho, tudo seria diferente, não seria aquele, não seria aquilo, como o demonstra o facto de, muitos anos depois, Jarrett o ter repetido no Carnegie Hall. Concerto de Jarrett no Carnegie Hall: alguém notou, alguém morou? Não; o que fica e ficará é o Concerto de Colónia. Um improviso a solo num piano de reserva.
 
 

 
Let us not wallow in the valley of despair.
 
 
Anos antes, em 1963, outro feliz acaso do destino, mais um triunfo do improviso sobre as forças do mal iminente e prenunciado. Na véspera da Marcha sobre Washington, Martin Luther King Jr. reuniu-se com os seus companheiros de luta, um grupo que sofrera na carne, com prisões e humilhações várias, o combate heróico contra os preconceitos fundados na cor da pele. Nesse combate, Luther King era o cavaleiro que trespassava o dragão do ódio, como no quadro de Ucello na National Gallery.
 
 
Paolo Ucello, São Jorge e o Dragão, c. 1470
National Gallery, Londres
 
 
 
Os colaboradores de King aconselharam-no a não usar o refrão I have a dream. Martin já o utilizara diversas vezes, era um cliché, uma fórmula batida e repisada, sem qualquer novidade ou carga apelativa. Discutiram o texto horas a fio. Pelas 4 da madrugada, cansado e gasto, King subiu ao seu quarto, dizendo aos companheiros que ia rezar para que Deus lhe dissesse que palavras deveria usar na manhã seguinte. A Marcha sobre Washington, por causa de mil e uma peripécias, esteve quase para não se realizar. Muitos tentaram boicotá-la. Ao longo dessa manhã de 28 de Agosto de 1963 milhares de pessoas, vindas de toda a América, aglomeraram-se junto ao Monumento a Lincoln. Muitos oradores falaram antes de Martin Luther King Jr. Quando chegou a vez deste, o último a discursar, Martin começou a desfiar o que trazia escrito. A sua voz tonitruante ia percorrendo as linhas escritas no papel. Mas, de súbito, King largou os papéis, começou a improvisar: «So even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream.»
Wyatt Tee Walker, um dos seus conselheiros, aquele que mais inflamadamente estivera contra o uso do refrão do sonho, olhou para o chão do Mall; desalentado, disse para si, entre dentes: «Aw shit. He’s using the dream». Martin Luther King já falara do seu sonho diversas vezes, inclusive na semana anterior, num discurso em Chicago; e poucos meses antes, num comício gigantesco em Detroit. Se tivesse seguido os avisados conselhos dos seus companheiros, plenos de sensatez e tino, Luther King não teria dito as palavras I have a dream – e tudo o mais que improvisou depois, sem papel escrito, arredando as folhas do discurso que trazia consigo. Mas, muito provavelmente, se não tivesse falado do seu sonho hoje não saberíamos sequer que Martin Luther King Jr. fizera um discurso em Washington. Ignoraríamos até, muito provavelmente, que em 1963 houve uma Marcha sobre Washington contra a segregação racial. Pelo sonho é que foi. E pensarmos que James Earl Ray, o assassino de Luther King, na sua fuga à polícia passou por Lisboa, hospedando-se numa pensão do Cais do Sodré, contratando os serviços de uma prostituta… Chamava-se simplesmente Maria, deixou-se fotografar, o seu rosto  correu mundo.
 
Maria

O quarto em que pernoitou o foragido James Earl Ray
 
A história do estribilho I have a dream é mais ou menos como a do piano da Ópera de Colónia: se Keith Jarrett não tivesse que tocar num piano roufenho talvez não improvisasse daquela maneira única, de um lirismo transcendente. Num e noutro caso, o acaso feliz produziu uma mudança histórica. A partir da Marcha sobre Washington, nada seria igual na luta contra a segregação dos negros. O Concerto de Colónia, por sua vez, assinala uma viragem na história do jazz, que à época se encontrava bloqueado pelo tédio da fusão jazz-rock (antes que os especialistas me apedrejem e lapidem, leiam isto e já agora isto).
Um dia, há um par de meses, numa das nossas conversas, a Mena Mónica usou a palavra serendipity. Sim, sei que a expressão tem um significado preciso e bem definido, e que se não confunde com sorte ou azar, destino ou acaso. Mas isto é só um blogue, não façam caso. A serendipidade não aconteceu apenas em Colónia, quando um piano de terceira categoria, tocado pelo génio humano, produziu uma sonoridade única, irrepetível.
A serendipidade, o acaso feliz, aconteceu noutros lugares da Alemanha, e há muitos anos atrás. Dentro de dias, a 30 de Abril, assinala-se o 70º aniversário do suicídio de Hitler no bunker de Berlim. Em 8 de Maio de 1945, a população de Demmin, uma pequena cidade do nordeste da Alemanha, decidiu suicidar-se em massa ante as notícias da morte do Führer e da chegada iminente dos russos. O maior suicídio colectivo da história da Alemanha, um país que, ao longo da história, já se suicidou várias vezes. Dos 15.000 habitantes de Demmin, entre 700 e 1.000 pessoas optaram pela morte voluntária. Levaram meses e meses a resgatar os cadáveres na correnteza do rio Penne. Diversas mães atiraram os filhos ao rio antes de se lançarem elas próprias nas águas vorazes. A mãe de Bärbel Schreiner, então uma menina de seis anos, preparava-se para o salto derradeiro. O irmão de Bärbel interrompeu-a, com a inocente pergunta: «Mãe, nós não, pois não?» «Ainda me lembro da água avermelhada pelo sangue», diz Bärbel Schreiner, hoje uma senhora de 76 anos, que acrescenta: «sem aquela pergunta, estou convencida de que a minha mãe nos teria afogado aos dois.»   
 
 
Bärbel Schreiner em criança, com a mãe e o irmão mais velho
Demmin, 1944
 
 
 
 
 
Falando de efemérides e da Alemanha, e dos grandes momentos da História do Ocidente, convém recordar outra data fundamental da nossa civilização. A partir de raízes judaico-cristãs milenares, o Ocidente, que muitos asseveram estar em putrefacção e declínio, produziu coisas tão grandiosas como as cantatas de Bach, as catedrais ogivais e as ogivas atómicas, o papel higiénico e Manuel Luís Goucha. No cúmulo das maravilhas, uma instalação escultórica concebida em Horizontina, sul do Brasil, há precisamente 34 anos. No passado dia 15 de Abril, a modelo Gisele Caroline Bündchen, fruto natural da frondosa miscigenação germânico-tropical, abandonou as passerelles. Fê-lo no preciso lugar onde, vinte anos antes, desfilara pela primeira vez, a Semana da Moda de São Paulo. No ano 2000, já estrela bioagradável, apareceu num anúncio da Victoria’s Secret ostentando aos peitos um soutien avaliado em 15 milhões de dólares. Que no mundo existia um soutien de 15 milhões de dólares, enquanto só neste ano já morreram 1.600 seres humanos a tentar atravessar o Mediterrâneo, é algo que nos deixa confusos. Mas só se admira quem quer. Por nós, já aqui o temos dito, vezes sem conta: o mundo é um lugar estranho. Num instante, num segundo, a vida muda, e o mundo é capaz de reunir em si o melhor e o pior. Na semana passada, uma jovem migrante, Wegasi Neblat, foi salva de um naufrágio por um sargento do exército grego, Antonis Deligorgis. Tudo aconteceu por acaso, o puro acaso: o militar estava com a mulher, Theodora, e decidiram beber um café junto ao mar, numa praia da ilha de Rodes. Ao ver o naufrágio, o sargento Antonis fez-se ao mar traiçoeiro. Feriu-se a valer, com golpes fundos nas mãos e nos pés, mas salvou da morte 20 dos 93 migrantes que seguiam no navio destroçado. Três dias depois, Wegasi Neblat deu à luz a criança que trazia no ventre. Pôs-lhe o nome do seu salvador, Antonis, que de Rodes foi colosso.      
 
Antonis Deligorgis salvando Wegasi Neblat
Rodes, Abril de 2015
 
Além de uma fortuna avaliada para cima de 400 milhões de euros, Gisele Bündchen é a serendipidade em forma de gente. A par de  Elle McPherson, o que a torna diferente dos outros modelos não é ser mais bela ou mais elegante; é ser uma celebração festiva à vida, uma conjunção radiosa e felicíssima de células e tecidos: 53 quilogramas de alcatra humana, estendida ao comprido por 1,80m de altura.      
O cancro é a serendipidade às avessas, uma conjunção celular negativa. Gisele Bündchen é o oposto disso, o anti-cancer. Não interessam nada as fotografias de agora, fabricadas e artificiais. O erotismo é tanto, e tão fogoso, que atordoa a nossa racionalidade  e obscurece o ponto que em Gisele mais importa, a vitalidade primordial. Esta encontra-se muito mais nas imagens de infância. Já lá estava, intacto e puro, o dom originário, a perfeita e saudável harmonia mitocondrial.
 

Gisele Bündchen, a própria, em criança


 
 A Mena não acredita muito nestes acasos. Há dias, falando os dois de acasos e destinos, respondeu-me à grande, com uma citação caríssima. William Shakespeare, e o Acto I de Júlio César:
Men at some time are masters of their fates;
The fault, dear Brutus, is not in our stars,
But in ourselves, that we are underlings.
 
         Admito, o destino é nosso, não está nas estrelas. Keith Jarrett, Luther King e a mãe de Bärbel Schreiner agiram, cada um a seu modo, seguindo a lei terrena do livre-arbítrio. Daí tivemos, por esta ordem, um concerto em Colónia, um discurso em Washington e duas crianças resgatadas à morte por afogamento na vila-suicida de Demmin. O sargento grego, é certo, poderia não se ter lançado às águas para salvar os seus semelhantes. Logo ele, cidadão de um país  à deriva, que desesperadamente tenta salvar-se do naufrágio. Em todo o caso, Antonis agiu; e agiu de uma forma tão impulsiva e imprevista como Keith Jarrett improvisou em Colónia ou Martin Luther King falou em Washington. O facto de ele e a mulher estarem ali, a metros da catástrofe, na praia de Rodes, não tem outra explicação que não esta: serendipidade.
         Em 1937, o professor Johanes Theinert e a sua mulher Hildegard, casados de fresco, começaram a escrever um diário. A última entrada tem data de 9 de Maio de 1945. «A guerra acabou. As armas calaram-se». Nesse mesmo dia, o professor Theinert deu um tiro na mulher e depois virou a arma contra si próprio, e disparou. Perante um gesto destes, outro trecho do diário do casal, escrito no dia fatal:
         Quem se lembrará de nós?
Quem saberá como acabámos?
Terão estas linhas algum sentido?
        
O diário seria encontrado. No meio de tanta devastação, só um acaso permitiu descobrir o caderno íntimo. Por causa disso, hoje sabemos como acabaram as vidas de Johanes e Hildegard Theinert. E, respondendo à outra pergunta que então fizeram, lembramo-nos deles hoje, 70 anos depois, pelo feliz destino que levou à descoberta do seu diário. Há nele uma derradeira interrogação, a mais difícil de todas: «terão estas linhas algum sentido?».
         Não sei. Esta é uma pergunta que tanto se pode aplicar ao diário dos Theinert como às linhas que acabei de escrever. Farão sentido? Não sei.
De certeza certa, só sei uma coisa: no mundo, Mena, neste lugar estranho e desconcertado, no mundo de soutiens de 15 milhões de dólares, não há maior serendipidade do que a amizade. À nossa.   
 
Para Maria Filomena Mónica.
 
António Araújo
 
 
post-it – já agora, e sem ofensa, dedico também este texto ao casal octogenário amoroso que anteontem vi no IKEA de Alfragide à volta de um prato de degustação de bolachas de gengibre. Cada um deles alambazou, no mínimo, umas sete ou oito bolachas (de gengibre). Depois foram para casa, todos contentes.  
 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Manuel de Lucena.

 
 
 
 



 
Sempre considerei o Manuel um dos homens mais inteligentes, perspicazes e cultos que conheci. Aprendi mais com ele do que com a maior parte dos meus colegas, portugueses ou estrangeiros. Há dias, reli a Autobiografia de G. K. Chesterton. Foi então que notei algumas semelhanças entre este católico inglês e o Manuel. Não falo da mais óbvia, a excentricidade, mas de uma outra, a distracção. Eis apenas um exemplo do que poderia ter acontecido ao Manuel.

 
G. K. Chesterton decidira proferir uma conferência algures no norte de Inglaterra. A meio da viagem notou que se esquecera do local onde era suposto ir, pelo que, na primeira estação, saiu, a fim de mandar à mulher o seguinte telegrama: «Estou em Market Harborough. Onde deveria estar?» O seu espírito era ocupado por coisas por ele tidas como mais importantes do que prazos, datas e compromissos.
 

Ainda há pouco, tendo combinado almoçar com ele, pediu-me para lhe ligar meia hora antes, não fosse esquecer-se do encontro. Assim fiz. O telefone tocou, tocou, tocou, mas ninguém atendeu. No dia seguinte, explicou-me que tinha perdido «o telefone fixo». Pensei que estava a brincar. Em parte, a culpa era minha, uma vez que julgava que este tipo de telefones estava ligado à parede por um fio. Acabámos por não almoçar: eu adoeci e ele perdeu o meu número de telefone.
 
 

                            Maria Filomena Mónica
 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Diamonds are forever.

 
 
 
Deodatus (Roggenburg, Alemanha)
 
St Albertus (Baviera, Alemanha)
 
St Benedictus (Munique, Alemanha)
 
St Friedrich (abadia de Melk, Áustria)
 

St Getreu (Ursberg, Alemanha)

 
St Luciana (Baviera, Alemanha)
 
St Valentin (Bad Schusssenried, Alemanha)
 
St Valentinus (Waldsassen, Alemanha)
 
St Valerius (Weyan, Alemanha)
 
St Vincentus (Innsbruck, Áustria)


Dr. Paul Koudounaris


                           



Tenho uma amiga que é uma santa, ou para lá caminha. Gosta de nuvens e é tão devota, mas tão devota, que me passa os dias, as manhãs solares, a comprar pagelas nas Paulinas, à Baixa da capital. Já nem a podem ver entrar nas Paulinas, acreditem n’Isto! Compra pagelas como antigamente se compravam cromos da bola, já tem santos e santas para dar e trocar. E, como é generosa até mais não, deu-me esta notícia de um jornal de paróquia, O Guardião.

          Esta notícia remetia, por sua vez, para o trabalho de um rapaz muito giro, o Dr. Paul Koudounaris, que vive em Los Angeles e se doutorou na University of California Los Angeles, a reputadíssima UCLA, no Departamento de História de Arte. Admiro há muito este rapaz, não só porque é muito giro mas também porque faz uns livros cheios de fervor. Dele tenho um coffee table book, saído há dois anos, The Empireof Death. A Cultural History of Ossuaries and Charmel Houses. Aqui há atrasado, creio que no ano passado ou no anterior, a Mena (outra senhora piedosíssima), contou-me que tinha ido ver a Capela dos Ossos, a Évora. Em resposta, disse-lhe que havia alguns ossários daqueles, tão bons ou até em melhor, por essa Europa fora (dizem que na Hungria é com cada capela dos ossos que até faz vista e o Paulo está sempre, mas sempre, a falar-me do que viu em Itália, na cripta da Santa Maria della Concezione dei Capuccini). Recomendei à Mena, claro, o livro do Dr. Koudounaris, que ela mandou logo vir da Amazon. Depois contou a história dos ossários numa das suas crónicas semanais do Expresso 

          Agora, aqui há uns tempos recentes, o Dr. Koudounaris acaba de lançar novo livro, versando uma temática mais ou menos parecida. Heavenly Bodies trata de relíquias macabras, santos adornados pela opulência do barroco bávaro e austríaco (já na altura eram povos riquíssimos). No transacto mês de Junho, passei uma temporada ainda grande por aquelas terras, onde a cada esquina somos esmagados pelo esplendor das igrejas. Em todas elas, a figura da Morte, tópico obsessivo do drama barroco alemão. Deve existir alguma ligação, provavelmente remota, entre estas figurações da Morte e o nazismo. Não sei, parece-me. Pelo menos, as SS cultivavam muito as caveiras, com roupas Hugo Boss, como bem sabeis e até já deu polémica.

          A concluir, apenas um pensamento que me ocorreu mesmo agora: se repararmos bem, há alguma continuidade entre os santos com aquelas jóias todas, numa opulência espectacular e desmesurada, e os décors em que o Dr. Paul Koudounaris gosta de se fazer fotografar. O look do Dr. Koudounaris, doutorado pela Universidade da Califórnia e publicado pela prestigiada Thames & Hudson, remete muitíssimo para o look de St. Benedictus ou de St Friedrich (não traduzi os nomes para não meter água). Antigamente, colocavam jóias luzidias para brilhar e ofuscar os crentes, agora são piercings, animais empalhados, barbichas e chapéus altos. É óbvio que, para lá de uma eventual identificação algo insana com os seus objectos de estudos, o look do Dr. Koudouranis constitui um artifício de marketing, com aqueles cenários góticos e gore, carregadíssimos de material visual. Mas também não sucedia assim com os relicários barrocos, uma operação de marketing para dar nas vistas? Nada disto é, ou pretende ser, ofensivo para a religião ou para a devoção do povo, entendamo-nos bem. Quem vir esta reportagem, sobretudo as imagens, da «santa» de Arcozelo, vai compreender o poder de atracção destas figuras, outrora homens e mulheres santíssimos mas que agora já nem a pele trazem no corpo. Veja-se a quantidade de povo e de preces que atraem, mesmo quando são visualmente fraquitas, como acontece com a «santa» Maria Adelaide de Arcozelo (decididamente, não tinha uma boa dentição). A continuidade visual entre o St. Benedictus e o Dr. Koudounaris é que me intriga o espírito, confesso. O mundo é, e foi, um lugar estranho, Quanto ao mais, que não é pouco, a minha eterna gratidão à devota das pagelas, uma santa com S. grande.  
 
 
António Araújo
 
 
 
 
 
 
 


sábado, 7 de abril de 2012

Darwin.

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Página do caderno de apontamentos de Darwin, de Julho de 1837, onde surge pela primeira vez um desenho da árvore da evolução. O texto começa, modestamente, pelas palavras «I think».






A publicação de A Origem das Espécies foi um dos mais impressionantes acontecimentos do século XIX. Quando o livro saiu, Darwin foi visto como o homem que tentara assassinar Deus. Começava uma polémica – será que descendemos dos macacos? teremos que deixar de acreditar em Adão e Eva? seremos obrigados a aceitar que o mundo não tem significado? – que durou até hoje.
A 12 de Fevereiro de 2008, celebrou-se o segundo centenário do seu nascimento e em 2009 festejou-se o 150º aniversário de A Origem das Espécies. Se, em Portugal, o livro pouca atenção suscitou, tal deriva de o Vaticano desaconselhar a leitura da Bíblia, tendo os católicos aceite, como alimento espiritual, a magra dieta do Catecismo. Nos EUA, um país que nasceu umbilicalmente ligado à religião, as coisas fiaram mais fino. Apesar de o conceito da separação da Igreja e do Estado estar no cerne da Constituição, a América ainda é o país protestante no qual a Bíblia desempenha um papel mais importante. Não admira que tenha sido aqui que apareceu uma candidata a vice-presidente dos EUA insistindo em que o relato da Criação deveria ser tomado a letra.
Curiosamente, este tipo de fundamentalismo é uma criação moderna: o que preocupava os Vitorianos não era a interpretação da Bíblia – eram suficientemente cultos para saber que o texto sagrado era para ser lido como uma metáfora – mas a possibilidade de o Darwinismo poder transformar a vida num caos amoral. A expansão moderna das teses anti-darwinistas foi uma reacção ao abrandamento, nos anos 1960, dos códigos morais.
Charles Robert Darwin nasceu no seio de uma família rica, culta e ilustre. Depois de ter feito vários estudos nas Universidades de Edimburgo e de Cambridge, optou por ser geólogo. Foi nessa qualidade que, aos 25 anos, partiu, a bordo do Beagle, para uma viagem que o levaria aos Açores, Cabo Verde, Baía, Rio de Janeiro, ilhas Falklands, Valparaíso, Galápagos, cidade do Cabo, ilhas Maurícias e a Austrália. A 2 de Outubro de 1836, ao pôr os pés em Inglaterra, tinha já em mente os fundamentos da sua teoria, mas, com receio, não tanto da opinião pública, mas da forma como a mulher, uma anglicana fervorosa, reagiria, decidiu nada publicar. Foi preciso um susto para divulgar o que sabia. Em 1859, apercebeu-se que, se não o fizesse, outro – Alfred Russel Wallace - avançaria. Por muito amor que tivesse pela mulher – e tinha – sentiu-se obrigado a dar a conhecer a sua tese.
Do ponto de vista social, o pior ficava para trás. As décadas de 1830 e 1840 tinham assistido a momentos difíceis: os motins dos trabalhadores tinham-se multiplicado, os Dissenters enchido as igrejas de cânticos revolucionários e as classes médias exigido leis tidas como impensáveis. Neste contexto, como podia um jovem respeitável abrir um livro com notas de viagem e, de forma despreocupada, afirmar que os nossos antepassados eram chimpanzés? O dilema, entre o que sabia ser verdade e as exigências do meio social a que pertencia, dilacerou-o. Quando, um dia, se decidiu a contar a um amigo as conclusões a que chegara afirmou-lhe que, para ele, tal era idêntico a «confessar um crime».
Mal A Origem das Espécies apareceu nas livrarias, os anglicanos classificaram-na como ateia, afrancesada e imoral. Apesar do cuidado de Darwin em apresentar todas as provas e do apelo aos leitores para as considerarem imparcialmente, não era possível aos contemporâneos aceitarem, de ânimo leve, as conclusões do livro. Porque, do ponto de vista intelectual, Darwin era um revolucionário. Terá aliás sido o reconhecimento desta faceta que levou Karl Marx a, depois de ter pensado em dedicar-lhe a obra, lhe enviar O Capital.
Darwin continuou a observar a Natureza de forma obsessiva, tendo chegado a dizer que os corais o fascinavam mais do que a música de Handel. Na velhice, perseguido por sentimentos de culpa, escreveria uma Autobiografia destinada a ser lida pelos filhos e netos. Vinte e três anos depois da publicação do seu mais célebre livro, morria. Com o tempo, Darwin passara a ser considerado como alguém cujo estatuto intelectual só era comparável ao de Newton. Enquanto o coro cantava, em Westminster Abbey, «Happy is the man that findeth wisdom», a catedral, onde ficaria sepultado o seu corpo, enchia-se de professores, clérigos e aristocratas que vinham prestar a derradeira homenagem a um homem sábio e bom.


Maria Filomena Mónica



sábado, 17 de dezembro de 2011

O que eu diria a Deus.

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....Ao longo dos anos, as tentativas para encontrar provas da Tua existência não resultaram. Sei que é absurdo interpelar-Te, mas é isso que vou fazer, até porque este tipo de exercício é aprovado nas Universidades. No chamado contrafactual, os académicos interrogam-se como seriam as coisas se, em vez de ser como são, fossem outras. Eis alguns exemplos: o que se teria passado se Hitler tivesse ganho a II Grande Guerra, se em 1968 Salazar não tivesse caído da cadeira ou se, no século XIX, o nosso país tivesse exibido taxas de alfabetização iguais às europeias.
Imaginemos que Deus existe e que, durante as minhas caminhadas terapêuticas, eu O encontrava no Jardim da Estrela. À cabeça das minhas interrogações estaria a crise mundial. Como sabemos, tudo começou com a bancarrota dos Lehman Brothers, nos EUA, quando o universo tropeçou em credit default swaps e em subprimes, tendo-se espatifado.
De bancos, nada percebo. É para isso, pensava, que existiam banqueiros, pessoas em quem podia depositar a minha confiança. Imaginei  tratar-se de gente responsável, coisa que a realidade tem vindo a demonstrar não ser verdade. Enquanto, nos EUA, rebentava o escândalo Madoff, por cá sucediam-se, em cadeia, os do Banco Português de Negócios, do Banco Privado e do BCP. Não tendo conta em qualquer destes estabelecimentos, notei apenas que o banqueiro americano fora expeditamente julgado e preso, enquanto os responsáveis pelos bancos nacionais por aí andavam, e andam, à solta. Ora, sendo Tu Omnisciente, como deixaste que isto acontecesse?
Ando baralhada. Se nem os governantes, nem os banqueiros nem Tu me podem garantir que o dinheiro que consegui amealhar ao longo dos anos está seguro, não sei que fazer. Claro que o podia legalmente transferir para o país da União Europeia onde, desde 1971, vou todos os anos, e que, entre outra vantagens, tem a de não usar euros, mas sendo reduzido o meu tesouro não sei se valerá a pena. Seja como for, gostava que me desses um sinal de que vale a pena trabalhar, sabendo que, no fim, ninguém me rouba o que tiver poupado.
 Se eu, que faço parte da elite nacional, me sinto insegura, como  hão-de estar os milhões de compatriotas com salários que não atingem os 1.000 Euros? O destino desta gente não Te preocupa? Não amaldiçoas os políticos que fizeram do governo um trampolim para cargos chorudos em empresas privadas, onde nada mais fazem do que traficar influências? Não Te indigna o estado em que os últimos governantes deixaram o meu país?
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Dorothea Lange, Man in Dust Storm, New Mexico, 1935.
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Foi ao escrever este parágrafo que me lembrei de recorrer aos Evangelhos, a fim de relembrar o que estes dizem sobre o dinheiro. Vejamos o que nos diz o Evangelho de S. Mateus (6:24): «Ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou há-de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro». Até aqui, estou de acordo. Note-se contudo o que se segue: «Não podeis servir a Deus e à riqueza». Esta frase deixa os ricos em péssimos lençóis. Compreendo a razão por que aparece – o Cristianismo era inicialmente a religião dos pobres – mas não a aceito. Não sou rica, mas não é por serem ricos que desprezo as pessoas. Se há ricos, muitos, que abomino, há outros, menos, que admiro.
Com a conversão do Imperador Constantino, a Igreja Católica, Apostólica, Romana mudou. Os Papas logo começaram a interpretar os Evangelhos de forma diversa: desde que fruto do trabalho, a riqueza passou a ser considerada legítima. O problema residia nos banqueiros, cujo trabalho parecia ser nulo. Ter dinheiro, emprestá-lo e sentar-se ao lado de um «banco» – daí a designação – aguardando que o credor pagasse a quantia que levara, acrescida de juros, surgia como uma actividade condenável.
Começava um longo debate sobre a legitimidade da usura. Ao princípio, a lei canónica rotulou o empréstimo com juros um acto ilícito. Pertencendo o tempo a Deus, quem emprestasse dinheiro era um pecador, uma vez que se arrogava um poder que apenas a Ti pertencia. No cadeirão celestial, Tu mantinhas-te calado, enquanto, cá em baixo, os Teus discípulos se defrontavam com a tarefa de continuar a discutir até que ponto era possível emprestar dinheiro, a juros, sem pecar. Até que, na Summa Theologica, S. Tomás de Aquino concluiu que, desde que o juro fosse o mais baixo possível, os empréstimos se poderiam fazer sem que os banqueiros fossem parar ao Inferno.
Será que interpreto bem a Tua doutrina se pensar, como S. Tomás, que o juro tem de ser razoável? Será que posso concluir que os grupos financeiros, que estão a extorquir juros altos aos países frágeis, são pecaminosos? Ou será que, ao delapidaram muito do que tinham pedido emprestado, estes se tornaram cúmplices?
Deixemos a pergunta sem resposta, para ver o que diz o Teu Sermão da Montanha. Nele, há coisas de que gosto e outras que abomino. Concentro-me nas últimas. A que mais me irrita é a frase: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra». Eu não sou mansa, a minha mãe não o era, muito menos a minha avó. Aprendi desde cedo que, perante as injustiças do mundo, a nossa obrigação é a revolta. Que seria do mundo sem o contributo de Galileu, de Orwell e de Rosa Parks?
Como saberás, no final da adolescência, aderi à tradição humanista, racionalista e empírica, afastando-me da Tua fé. Como Eva, desejei comer o fruto da Sabedoria. Claro que sabia ter a serpente advertido que, no dia em que provasse a maçã, se lhe abririam os olhos «e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal» (Génesis, 3). Era isso mesmo que  pretendia. Considerando Eva ser o fruto «precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele a seu marido, que estava junto dela, e ele também o comeu». Esta passagem bíblica revela, sem margem para dúvidas, a superioridade da mulher sobre o pateta que andava a deambular pelos campos elísios como uma criança. De uma assentada, Eva minou o monopólio que Te permitia declarar onde estava o Bem e o Mal. Na minha opinião, em vez de ser punida, devia ter recebido uma medalha, uma vez que nos deu a possibilidade de dirigirmos a vida segundo os nossos princípios.
Já que estamos a falar da Queda Original, há outra pergunta que gostava de Te fazer. Lembras-te da passagem em que escolhes as punições a dar ao homem e à mulher? Ao primeiro, condenaste-o a ter de ganhar o pão com o suor do seu rosto. Nada que me choque, o que já não sucede no caso de Eva. Além de afirmar que doravante as mulheres procurariam, ainda por cima com paixão, um marido, a quem ficariam sujeitas, acrescentas: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores».


Paula Rego, Natividade, 2002.
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Faço parte da última geração a quem tal punição se aplicou. Em 1963 e em 1964, quando tive os meus dois filhos, frequentei, com o meu habitual zelo, aulas de respiração, supostamente destinadas a conduzir a um «parto sem dor», o que não se verificou. Tendo em conta a evolução da tecnologia médica, gostaria de saber qual a Tua posição no que respeita a epidural, a injecção que liberta a mulher das dores do parto. Faço-Te esta pergunta, porque estranho que, sendo o Teu castigo expresso em termos tão claros - «os teus filhos hão-de nascer entre dores» - o Vaticano nada diga sobre o assunto. É estranho que, enquanto proíbem, com uma obsessão maníaca, o uso da pílula anticoncepcional (assunto, note-se, sobre o qual a Bíblia nada diz), os Teus representantes não se pronunciem sobre o uso da epidural.
Como já expliquei, não pertenço aos «pobres de espírito», mas aos que «têm fome e sede de justiça», pelo que considero que Te deverias exprimir sobre o que se passa no meu país. Tantas e tais são as perguntas que gostaria de Te fazer que - Mark Twain é quem compreendeu Eva – acabei por me perder outra vez.
Retomo o fio à meada. Para alguns comentadores, seriam «os mercados» a impor os actuais cortes salariais, o aumento de desempregados e o decréscimo do nosso nível de vida. Depois da década gloriosa que se seguiu à entrada para a União Europeia, Portugal corre o risco de se tornar, mais uma vez, num país onde há gente a passar fome. No meio das notícias sobre os zeros que se acrescentam às dívidas bancárias, dos processos judiciais que terminam em prescrições, dos escândalos relativos à corrupção, é fácil esquecer as mães que não têm comida para os filhos, os pais que deambulam pelos subúrbios à procura de trabalho, os velhos que se amontoam nos lares. Alguém, algures, há-de ser responsável. Não, não é «o mercado», uma entidade mítica, mas os indivíduos, com nome, rosto e ideias, que regulam o mundo. Melhor do que eu, Tu és capaz de os identificar. Ao baterem à Tua porta, não os deixes entrar.
        
                   Maria Filomena Mónica