Numa sociedade cada vez mais apressada, a leitura nos transportes
públicos é uma forma de se aproveitar o tempo gasto nas deslocações
entre casa e o trabalho. E, pela comodidade, o comboio é onde mais se
lê.
Falta pouco para chegar a S. Pedro do Estoril, mais duas páginas talvez. Nesta viagem, é Gabriel García Marquez — com Os Funerais da Mamã Grande — que atenua os solavancos do comboio da Linha de Cascais e faz Palmira de Almeida desligar-se da realidade.
Aos 67 anos, Palmira já perdeu a conta aos livros que leu. Começou com as histórias das princesas numa vila de Angola colonial, onde não era fácil comprar livros. Por influência dos irmãos, passou para a banda desenhada e, mais tarde, deixou-se encantar pelos romances em fascículos. Em 1974, veio para Portugal, onde trabalha como empregada doméstica, e trouxe o gosto da leitura para os comboios.
Vive em Almada e até chegar a S. Pedro apanha três comboios e dois metros. Com o cabelo curto, as hastes dos óculos vermelhas e uma camisola branca, vai olhando para as flores da capa do livro enquanto fala. “Leio em todas as viagens. O meu trabalho é muito manual — sempre a limpar, a limpar — também preciso de exercitar o cérebro”, conta. “Aproveito as viagens porque em casa não tenho tempo. Chego tarde e vou logo dormir e aos fins-de-semana tomo conta dos meus netos”, acrescenta.
Em 2009, o barómetro da opinião pública do Plano Nacional de Leitura realizou um inquérito a 1045 pessoas e encontrou 96% como Palmira de Almeida, que considera a leitura muito importante. Para os inquiridos, a leitura é especialmente importante no ensino e a formação (97%), na utilidade para a profissão (94%) e no exercício da cidadania (93%).
Com os olhos fixos numa das últimas páginas, Vera Brandão, de 29 anos, é uma campeã da leitura. “Leio, em média, nove livros por mês e também tenho um blogue de literatura”, conta a professora de uma sala de estudo em Carcavelos. Tira os óculos e acrescenta: “Gosto mesmo muito de ler e o comboio não me incomoda, é muito estável. É como estar sentada à secretária”. Põe os óculos e volta a mergulhar nas páginas de um livro já gasto, A Mutação, de Robin Cook.
Para o comissário do Plano Nacional de Leitura, Fernando Pinto do Amaral, o comboio — pela sua estabilidade — é um dos melhores meios de transportes a utilizar numa altura em que a leitura é cada vez mais fragmentária. “Actualmente, andamos sempre a saltitar de texto para texto. Mas [este tipo de leitura] não substitui uma leitura extensiva em que conseguimos mergulhar numa história”, refere Pinto do Amaral. “E isto pode ser feito nos transportes, sobretudo nos comboios, em que as viagens são mais estáveis”, defende.
Duas carruagens atrás, Maíra Silva trocou há cinco anos a agitação de São Paulo pela tranquilidade da Marginal. Trabalha numa loja na Parede e interessa-se particularmente por livros científicos. Está a ler O Campo de Batalha da Mente, de Joyce Meyer. “Gosto muito deste tipo de livros”, diz, justificando a escolha pelo curso de Psicologia que vai começar no próximo mês. “Só comecei a interessar-me por livros há cerca de três anos, mas ler é muito bom, faz-me viajar com a imaginação”, conta olhando para o livro.
Viajam no mesmo comboio quase todas as manhãs e não se conhecem, mas se Maíra lesse o título do livro de João Soares, provavelmente iria gostar: A Psicologia do Amor. “O título pode parecer estranho”, admite João, envergonhado, sentado junto à janela três lugares atrás da rapariga. “Mas eu sou terapeuta”, justifica, sorrindo. Aos 29 anos, decidiu começar a utilizar o comboio há pouco mais de um ano. A partir de então, os livros são a sua principal companhia. “Assim as viagens são menos aborrecidas. Se, por acaso, me esquecer, compro um jornal”, explica João Soares, enquanto se prepara para sair.
Segundo Teresa Sampaio, coordenadora do programa Ler +, Ler Melhor, da RTP Informação, muitos adeptos da leitura nos transportes fazem-no por uma questão de comodidade. “Em tempo de crise, com o preço da gasolina a aumentar, também é uma opção procurada, sobretudo em viagens de longo curso”, afirma.
No “regresso” a Lisboa
São 8h57 na estação de Cascais. Na gare, não há pessoas sentadas a ler, nem jornais deixados nos bancos. As portas fecham-se no comboio com destino ao Cais do Sodré. A bordo, os calções de banho e os chapéus de palha são substituídos por camisas, gravatas e roupas formais. A maioria dos passageiros vai trabalhar para Lisboa. A aventura pela literatura em viagem faz-se sobretudo neste sentido e só acaba no fim da linha.
Hugo Santos também está a ler, mas de forma diferente. “Uso este tablet, é mais prático”, diz, mostrando no ecrã do aparelho as pequenas letras brancas de um conto que encontrou na Internet. Trabalha como consultor informático numa empresa no Parque das Nações e, por isso, está habituado a andar de comboio e a tratar a tecnologia por tu. “A viagem demora cerca de uma hora e meia. Costumo ler artigos relacionados com o meu trabalho ou textos que encontro na Internet”, conta. “É mais fácil, depois é só fechar, guardar isto na bolsa e sair. E a página ficou marcada”, diz, exemplificando o processo. Os livros em papel também lhe agradam, mas só em casa.
De acordo com o barómetro de opinião pública do Plano Nacional de Leitura de 2009, a leitura associada às novas tecnologias está a tornar-se uma tendência. Cerca de 93% dos 1045 inquiridos consideram que a leitura aumentou principalmente com recurso a mensagens de telemóvel, computadores e Internet; 40% pensam que nos últimos dez anos a leitura, em geral, se manteve; e 39% consideram que se registou um aumento, embora nos meios tradicionais — livros, jornais, revistas — este não seja tão acentuado.
Fernando Pinto do Amaral diz que a leitura associada às novas tecnologias será uma tendência natural. “Para interpretarmos o mundo, temos sempre de ler”, afirma Pinto do Amaral. “Os suportes é que estão a mudar, sobretudo junto das gerações mais jovens, mas a leitura deve ser sempre valorizada”, acrescenta.
Menos jornais gratuitos
Hélder Almeida, que viaja entre Oeiras e o Cais do Sodré há vários anos, tem reparado que os jornais gratuitos que se deixavam nos bancos agora raramente se vêem. Olhando para a informação estatística, tem razão. Segundo dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação, a circulação — o número de exemplares que chegam aos pontos de venda, incluindo assinaturas e ofertas — dos dois jornais gratuitos portugueses (Destak e Metro) diminuiu.
A média da circulação do Destak entre Janeiro e Abril de 2012 foi de 71.090 exemplares, abaixo dos 94.944 exemplares em 2011. Em relação ao Metro, este numero passou de 92.798, em 2011, para 70.580 em 2012. Ambos os jornais são maioritariamente lidos por homens e nas áreas da Grande Lisboa e Grande Porto.
Segundo a directora do Destak, Isabel Stilwell, o facto de as pessoas sentirem falta dos exemplares nos transportes públicos é algo gratificante, “embora preferíssemos ter capacidade para ir ao encontro de toda a procura”. Não obstante as estratégias definidas para a distribuição do jornal, Isabel Stilwell afirma que não deixaram “de sofrer as consequências de uma gravíssima crise económica, o que tem obrigado a alguma redução na circulação”.
Junto à janela, já longe de conseguir ver o mar, Hélder Almeida diz que não há tantos jornais a bordo, mas há mais livros. “Agora a literacia é barata, só não lê quem não quer”, afirma. Um destes exemplos é a livraria que existe na estação de Cais do Sodré com livros a partir de 1,5 euros. “E há livros que parecem ter sido escritos a pensar em viagens, com capítulos mais curtos”, acrescenta. Gostava de ler jornais, sobretudo nos dias em que traziam suplementos, mas, nos últimos anos, tem ficado decepcionado. “E via-se muita gente como eu, mas agora nem todos podem gastar 30 euros por mês em jornais. E como a qualidade das reportagens diminuiu muito, já não se justifica [comprá-los]”
No entanto, Luís Pauzinho, de 39 anos, nesse dia comprou um jornal. Excepcionalmente, a capa de um desportivo fê-lo atrasar a paixão pelas bases de dados e guardar o livro que andava a ler. Mais adepto dos livros, durante a semana, no comboio, espreita o jornal das pessoas ao lado. “Não leio grande coisa, mas apanho as [letras] gordas”. Ri-se. Neste dia, porém, se tentar espreitar os jornais à sua volta, não terá grande sorte. São todos desportivos, como o seu.
Cais do Sodré. À volta, a passo acelerado, guardam-se os livros e as revistas ou enfiam-se os jornais debaixo do braço. Há mais comboios a partir, mas como já é hora de trabalho, poucos leitores seguirão lá dentro.
Aos 67 anos, Palmira já perdeu a conta aos livros que leu. Começou com as histórias das princesas numa vila de Angola colonial, onde não era fácil comprar livros. Por influência dos irmãos, passou para a banda desenhada e, mais tarde, deixou-se encantar pelos romances em fascículos. Em 1974, veio para Portugal, onde trabalha como empregada doméstica, e trouxe o gosto da leitura para os comboios.
Vive em Almada e até chegar a S. Pedro apanha três comboios e dois metros. Com o cabelo curto, as hastes dos óculos vermelhas e uma camisola branca, vai olhando para as flores da capa do livro enquanto fala. “Leio em todas as viagens. O meu trabalho é muito manual — sempre a limpar, a limpar — também preciso de exercitar o cérebro”, conta. “Aproveito as viagens porque em casa não tenho tempo. Chego tarde e vou logo dormir e aos fins-de-semana tomo conta dos meus netos”, acrescenta.
Em 2009, o barómetro da opinião pública do Plano Nacional de Leitura realizou um inquérito a 1045 pessoas e encontrou 96% como Palmira de Almeida, que considera a leitura muito importante. Para os inquiridos, a leitura é especialmente importante no ensino e a formação (97%), na utilidade para a profissão (94%) e no exercício da cidadania (93%).
Com os olhos fixos numa das últimas páginas, Vera Brandão, de 29 anos, é uma campeã da leitura. “Leio, em média, nove livros por mês e também tenho um blogue de literatura”, conta a professora de uma sala de estudo em Carcavelos. Tira os óculos e acrescenta: “Gosto mesmo muito de ler e o comboio não me incomoda, é muito estável. É como estar sentada à secretária”. Põe os óculos e volta a mergulhar nas páginas de um livro já gasto, A Mutação, de Robin Cook.
Para o comissário do Plano Nacional de Leitura, Fernando Pinto do Amaral, o comboio — pela sua estabilidade — é um dos melhores meios de transportes a utilizar numa altura em que a leitura é cada vez mais fragmentária. “Actualmente, andamos sempre a saltitar de texto para texto. Mas [este tipo de leitura] não substitui uma leitura extensiva em que conseguimos mergulhar numa história”, refere Pinto do Amaral. “E isto pode ser feito nos transportes, sobretudo nos comboios, em que as viagens são mais estáveis”, defende.
Duas carruagens atrás, Maíra Silva trocou há cinco anos a agitação de São Paulo pela tranquilidade da Marginal. Trabalha numa loja na Parede e interessa-se particularmente por livros científicos. Está a ler O Campo de Batalha da Mente, de Joyce Meyer. “Gosto muito deste tipo de livros”, diz, justificando a escolha pelo curso de Psicologia que vai começar no próximo mês. “Só comecei a interessar-me por livros há cerca de três anos, mas ler é muito bom, faz-me viajar com a imaginação”, conta olhando para o livro.
Viajam no mesmo comboio quase todas as manhãs e não se conhecem, mas se Maíra lesse o título do livro de João Soares, provavelmente iria gostar: A Psicologia do Amor. “O título pode parecer estranho”, admite João, envergonhado, sentado junto à janela três lugares atrás da rapariga. “Mas eu sou terapeuta”, justifica, sorrindo. Aos 29 anos, decidiu começar a utilizar o comboio há pouco mais de um ano. A partir de então, os livros são a sua principal companhia. “Assim as viagens são menos aborrecidas. Se, por acaso, me esquecer, compro um jornal”, explica João Soares, enquanto se prepara para sair.
Segundo Teresa Sampaio, coordenadora do programa Ler +, Ler Melhor, da RTP Informação, muitos adeptos da leitura nos transportes fazem-no por uma questão de comodidade. “Em tempo de crise, com o preço da gasolina a aumentar, também é uma opção procurada, sobretudo em viagens de longo curso”, afirma.
No “regresso” a Lisboa
São 8h57 na estação de Cascais. Na gare, não há pessoas sentadas a ler, nem jornais deixados nos bancos. As portas fecham-se no comboio com destino ao Cais do Sodré. A bordo, os calções de banho e os chapéus de palha são substituídos por camisas, gravatas e roupas formais. A maioria dos passageiros vai trabalhar para Lisboa. A aventura pela literatura em viagem faz-se sobretudo neste sentido e só acaba no fim da linha.
Hugo Santos também está a ler, mas de forma diferente. “Uso este tablet, é mais prático”, diz, mostrando no ecrã do aparelho as pequenas letras brancas de um conto que encontrou na Internet. Trabalha como consultor informático numa empresa no Parque das Nações e, por isso, está habituado a andar de comboio e a tratar a tecnologia por tu. “A viagem demora cerca de uma hora e meia. Costumo ler artigos relacionados com o meu trabalho ou textos que encontro na Internet”, conta. “É mais fácil, depois é só fechar, guardar isto na bolsa e sair. E a página ficou marcada”, diz, exemplificando o processo. Os livros em papel também lhe agradam, mas só em casa.
De acordo com o barómetro de opinião pública do Plano Nacional de Leitura de 2009, a leitura associada às novas tecnologias está a tornar-se uma tendência. Cerca de 93% dos 1045 inquiridos consideram que a leitura aumentou principalmente com recurso a mensagens de telemóvel, computadores e Internet; 40% pensam que nos últimos dez anos a leitura, em geral, se manteve; e 39% consideram que se registou um aumento, embora nos meios tradicionais — livros, jornais, revistas — este não seja tão acentuado.
Fernando Pinto do Amaral diz que a leitura associada às novas tecnologias será uma tendência natural. “Para interpretarmos o mundo, temos sempre de ler”, afirma Pinto do Amaral. “Os suportes é que estão a mudar, sobretudo junto das gerações mais jovens, mas a leitura deve ser sempre valorizada”, acrescenta.
Menos jornais gratuitos
Hélder Almeida, que viaja entre Oeiras e o Cais do Sodré há vários anos, tem reparado que os jornais gratuitos que se deixavam nos bancos agora raramente se vêem. Olhando para a informação estatística, tem razão. Segundo dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação, a circulação — o número de exemplares que chegam aos pontos de venda, incluindo assinaturas e ofertas — dos dois jornais gratuitos portugueses (Destak e Metro) diminuiu.
A média da circulação do Destak entre Janeiro e Abril de 2012 foi de 71.090 exemplares, abaixo dos 94.944 exemplares em 2011. Em relação ao Metro, este numero passou de 92.798, em 2011, para 70.580 em 2012. Ambos os jornais são maioritariamente lidos por homens e nas áreas da Grande Lisboa e Grande Porto.
Segundo a directora do Destak, Isabel Stilwell, o facto de as pessoas sentirem falta dos exemplares nos transportes públicos é algo gratificante, “embora preferíssemos ter capacidade para ir ao encontro de toda a procura”. Não obstante as estratégias definidas para a distribuição do jornal, Isabel Stilwell afirma que não deixaram “de sofrer as consequências de uma gravíssima crise económica, o que tem obrigado a alguma redução na circulação”.
Junto à janela, já longe de conseguir ver o mar, Hélder Almeida diz que não há tantos jornais a bordo, mas há mais livros. “Agora a literacia é barata, só não lê quem não quer”, afirma. Um destes exemplos é a livraria que existe na estação de Cais do Sodré com livros a partir de 1,5 euros. “E há livros que parecem ter sido escritos a pensar em viagens, com capítulos mais curtos”, acrescenta. Gostava de ler jornais, sobretudo nos dias em que traziam suplementos, mas, nos últimos anos, tem ficado decepcionado. “E via-se muita gente como eu, mas agora nem todos podem gastar 30 euros por mês em jornais. E como a qualidade das reportagens diminuiu muito, já não se justifica [comprá-los]”
No entanto, Luís Pauzinho, de 39 anos, nesse dia comprou um jornal. Excepcionalmente, a capa de um desportivo fê-lo atrasar a paixão pelas bases de dados e guardar o livro que andava a ler. Mais adepto dos livros, durante a semana, no comboio, espreita o jornal das pessoas ao lado. “Não leio grande coisa, mas apanho as [letras] gordas”. Ri-se. Neste dia, porém, se tentar espreitar os jornais à sua volta, não terá grande sorte. São todos desportivos, como o seu.
Cais do Sodré. À volta, a passo acelerado, guardam-se os livros e as revistas ou enfiam-se os jornais debaixo do braço. Há mais comboios a partir, mas como já é hora de trabalho, poucos leitores seguirão lá dentro.
Fonte: Portugal