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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Por que ler os clássicos

Os grandes textos da escrita universal permitem ao leitor descobrir mais sobre a alma, o mundo e os recursos estilísticos da língua

Roberta Bencini
novaescola@atleitor.com.br

Só as obras bem escritas passam para a posteridade, tornam-se fonte de conhecimento - e não apenas de entretenimento - e, enfim, podem ser chamadas de clássicos. Seus autores são verdadeiros artistas. Eles conseguem organizar bem seus pensamentos, esculpem a língua com cuidado e estilo e põem em foco os principais conflitos da existência humana. Assim, ao experimentar as emoções de diversos personagens consagrados, o leitor busca respostas para a própria vida, compreende melhor o mundo e se torna um escritor mais criativo.

"Já que não podemos entrar em uma máquina do tempo e conhecer o cotidiano da Grécia Antiga ou a realidade do século 18, ler é a melhor maneira de nos transportar para outros universos, tempos e espaços", diz a escritora Ana Maria Machado. "Todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo", disse Marcel Proust (1871-1922), um dos maiores escritores franceses, autor da obra-prima Em Busca do Tempo Perdido. Isso acontece quando os personagens retratados servem de inspiração e reflexão para leitores de qualquer época e lugar.

E como trabalhar com esses livros? Em que fase os estudantes estão preparados para esse tipo de leitura? É um equívoco explorar apenas títulos que o grau de autonomia da turma permite compreender sem dificuldade. Um projeto de leitura comprometido com a formação de leitores apresenta, além de títulos que podem ser lidos com fluência, uma cuidadosa seleção que rompa com seu universo de expectativas. Um clássico pode ser retomado em diferentes etapas do processo de aprendizagem. Quanto mais velhos forem os alunos, maior o aprofundamento da análise da obra.

As adaptações literárias

Uma das estratégias para aproximar os estudantes desse tipo de literatura é a leitura de adaptações. Nem todos os especialistas recomendam sua utilização, já que a obra é modificada no tamanho e nos recursos lingüísticos. Muitas vezes apenas o enredo permanece. A consultora Maria José Nóbrega defende a utilização dessas publicações, apesar de reconhecer que elas mutilam o texto. "É uma forma de se aproximar da obra, do enredo e da mensagem que o autor quis passar. Mas nenhum professor deve se contentar apenas com isso."

Considere também as adaptações de obras literárias produzidas para cinema, teatro e TV como atalhos de acesso ao original. Você já reparou como elas despertam a curiosidade pelo livro?

Em qualquer caso, os alunos precisam ter contato com o texto original, nem que seja apenas com trechos. Sugira um exercício de comparação. Peça a eles que confrontem passagens importantes de uma obra original e da adaptada. Veja no exemplo abaixo como um trecho de Alice no País das Maravilhas é resumido na adaptação e como a linguagem fica mais coloquial.

Tradução do original

"Isso nada tinha de extraordinário; nem Alice achou muito fora do normal ouvir o Coelho dizer consigo mesmo - Meu Deus, Meu Deus! Vou chegar atrasado! Quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, olhou-o e saiu apressado. Alice se levantou, porque pelo espírito correu-lhe que antes nunca vira um coelho de colete nem de relógio no bolso, e ardendo de curiosidade saiu pelo campo atrás dele..."

Oliveira Ribeiro Netto, do original de Lewis Carroll / Ed. do Brasil, s/data, pág. 9, cap. 1 / Na Toca do Coelho

Adaptação

Alice não estranhou muito, mas se impressionou bastante quando o coelho, ofegante, tirou do bolso um relógio e olhou a hora, espantado.

"Que coelho mais engraçado! De relógio, é demais!", Alice pensou, e correu atrás.

Nílson José Machado / Ed. Scipione, 2002, pág. 4, cap. 1 / A Queda na Toca do Coelho Branco
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Escolha a adaptação

• Verifique quem é o adaptador. Há diversos escritores de renome que se dedicam ou se dedicaram a esse trabalho, como Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony, Clarice Lispector, Monteiro Lobato, Orígenes Lessa e Tatiana Belinky.

• Leia cada linha do livro e compare com o original se o adaptador não for conhecido. Confira se ele foi fiel ao enredo da história, no caso de prosa. Não há como justificar uma edição de Chapeuzinho Vermelho em que o lobo não devora a vovó.

• Observe se foram preservados recursos estilísticos, como metáforas e ironias. Não faz sentido, por exemplo, ler Honoré de Balzac, famoso escritor francês do século 19, na linguagem coloquial.

• Veja se o texto tem fluência e se é bem escrito. Há adaptações que parecem resumo de novela. Como são muito fragmentadas, acabam não envolvendo o leitor.

• Baseie-se nas listas de livros recomendados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e nos indicados de alguns prêmios de literatura nacional, como o Jabuti.
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Na sala de aula

O tema e os recursos de linguagem empregados em uma obra clássica podem determinar a maior ou menor dificuldade de leitura. A familiaridade que o leitor tem com o assunto de um livro pode ser um atrativo. Veja o exemplo: A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, escrito em 1843, trata das aventuras amorosas de um grupo de amigos de férias em Paquetá, no Rio de Janeiro. Apesar de a linguagem ser do século retrasado, o tema não o é. Ainda hoje, amores, desejos e viagens são assuntos que interessam aos jovens.

Pergunte à turma como eram os namoros 150 anos atrás. Quais os assuntos tratados em uma roda de amigos na faixa dos 20 anos? Fique atento. Apesar de o tema ser familiar, outros pontos da trama podem não fazer parte do repertório da classe, como o papel do homem e da mulher na sociedade da época, a economia, a política e a cultura locais. Nesse caso, trabalhe em conjunto com professores de História e Geografia. Analise a maneira como a história foi escrita, se há um narrador, se o autor utiliza metáforas e ironias. Muitas vezes a criança ainda desconhece o valor desses recursos. Veja também se as palavras empregadas fazem parte do universo da turma. Muitas delas podem ser desconhecidas, pois o livro foi escrito há bastante tempo. Esses pontos são os principais obstáculos da leitura. "O melhor de um livro é a maneira como a história é contada. Caso contrário, não haveria diferença entre a história de amor de uma telenovela, como Mulheres Apaixonadas, da Rede Globo, e Romeu e Julieta, de William Shakespeare", explica Ana Maria Machado.
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Entrevista Ana Maria Machado

Ela é uma das mais importantes escritoras do país. Já publicou 110 livros, a maioria para crianças, e no ano passado lançou mais um: Como e Por Que Ler os Clássicos Universais Desde Cedo. Também já foi professora e conhece bem as necessidades e dificuldades ao trabalhar com os textos universais.

Qual o primeiro passo que um professor sem intimidade com os clássicos deve dar?
Ao se propor a trabalhar com literatura, é fundamental que ele conheça essas obras. Deve ao menos ter lido uns três títulos na vida. Caso contrário, é como ensinar a nadar sem nunca ter entrado na água.

Como deve ser a mediação entre o aluno e as histórias universais?
O professor deve demonstrar paixão pela leitura. Se ele gosta de ler, deve ser deslumbrado. Pode, por exemplo, chegar à sala de aula dizendo: "Olhem, existe no mundo uma coisa maravilhosa, que são as histórias. Mas é difícil descobrir sozinho o quanto é bom conhecer esses textos. Por isso, quero compartilhar com vocês um deles, que fala sobre um menino que não podia crescer, o Peter Pan". Ensinar a ler clássicos é uma iniciação afetiva.

Que pecados não podem ser cometidos em uma atividade de leitura?
Primeiro, obrigar a criança ou o jovem a ler. A leitura deve ser encarada como uma paixão, e isso não acontece durante uma tarefa obrigatória. Segundo, avaliar a leitura por meio de perguntas óbvias, cujas respostas podem ser encontradas em qualquer resumo. A avaliação deve verificar se o estudante teve contato com o texto indicado e dar espaço para ele dizer se gostou ou não. Por isso uma boa prova pode ser feita com consulta.

Os imperdíveis, segundo a escritora

Para leitores de 1ª a 4ª série
Qualquer livro de Monteiro Lobato, Contos dos Irmãos Grimm (Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida e outros), Peter Pan, de James Mattew Barrie, As Aventuras do Ursinho Puff, de A. A. Milne, e Odisséia, de Homero.

Para leitores de 5ª a 8ª série
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, O Rei Artur e a Távola Redonda, de autor desconhecido, Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Robin Hood, de Neil Philip, e Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes.
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Um ótimo trampolim

Desde que foi lançada, em 2000, a série Harry Potter, da escocesa J.K. Rowling, já vendeu mais de 50 milhões de livros. Por que tanta gente se inebria com as histórias do garotinho órfão que vira aprendiz de feiticeiro? Alguns críticos atribuem o sucesso ao marketing. Outros afirmam que os livros são bem escritos.

Nelly Novaes Coelho, professora da Universidade de São Paulo, afirma que Harry Potter tem tudo para se tornar um clássico. "A autora explora o enigma, o mistério e a magia, elementos que nos levam para fora do espaço da lógica." Para ela, os recursos estilísticos também são bem utilizados. "A leitura é ágil como um videogame, por isso prende o leitor."

A consultora Maria José Nóbrega sugere que esses livros sejam trabalhados a partir da 5a série como trampolim para leituras mais complexas. Escolha títulos que tenham pontos em comum com a trama, como Oliver Twist, de Charles Dickens, e O Rei Arthur e a Távola Redonda, de autor desconhecido.
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Quer saber mais?

Contatos

Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, R. da Imprensa, 16, 12º andar, 20030-130, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 2262-9130, http://www.fnlij.org.br/

BIBLIOGRAFIA

Como e Por Que Ler os Clássicos Universais Desde Cedo, Ana Maria Machado, 145 págs., Ed. Objetiva, tel. (21) 2556-7824, 19 reais

Por Que Ler os Clássicos, Ítalo Calvino, 279 págs., Ed. Cia. das Letras, tel. (11) 3707-3500, 31 reais

INTERNET

Conheça os livros finalistas e premiados do Prêmio Jabuti de literatura www.cbl.org.br e leia os clássicos em bibliotecas virtuais http://www.bibvirt.futuro.usp.br/, http://www.bibliotecavirtual.org.br/

Fonte: Revista Nova Escola

sábado, 20 de março de 2010

Em busca do jovem leitor

Na era da internet, o adolescente intensifica o contato com os textos e faz cair por terra o mito de que não tem interesse pela literatura.

A cada lançamento da saga do bruxo adolescente Harry Potter, criado pela escritora britânica J. K. Rowling, as livrarias de toda a metade ocidental do mundo se viam invadidas por um contingente extra de clientes entre os 12 e 18 anos. Isso sem contar os ansiosos que realizavam uma verdadeira caça na internet em busca de trechos, versões, comentários ou qualquer outro texto sobre o assunto que pudessem ser consumidos avidamente antes da chegada dos livros às prateleiras. A despeito da qualidade literária desse material, o sucesso desse tipo de leitura – não somente a do bruxinho, mas também de outras sagas, como O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, e Caçadores do Crepúsculo: Vampiros em Guerra, de Darren Shan, entre outros – tem chamado a atenção de estudiosos da área da literatura e educação.


O que essa aceitação fenomenal revela? A engenhosidade marketeira dos autores e editoras ou um adolescente que mantém o hábito de ter um livro na cabeceira? “Eu não tenho dúvidas de que o jovem de hoje lê mais”, afirma a doutora em teoria e história literária Célia Regina Delácio Fernandes, especializada em literatura infantojuvenil. “Hoje a gente vive no mundo da escrita, e o que a sociedade atual demanda? Leitura. O mundo do jovem é todo rodeado de escrita. Se a gente for pensar que nos chats [salas de bate-papo], Orkut [rede de relacionamento], blogs [espécie de diário online que permite rápida atualização], e-mails, MSN [sistema de troca de mensagens online pela internet] e tudo mais, a gente vê que isso faz parte do mundo dele.”

A professora de literatura infantil e juvenil da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), Maria Zilda da Cunha acredita que todos esses recursos trazidos pela internet criaram um leitor jovem de múltiplos suportes. “O jovem de hoje lê formas diferentes, porque ele tem à disposição uma multiplicidade de linguagens”, explica. “Logo, nesses termos, ele lê mais. O que ocorre é que com essa disponibilidade de linguagens que ele tem à sua volta, e essa necessidade de ler tanta coisa, o tempo dele para a literatura impressa é menor, porque o tempo dele fica mais dividido.”

Célia Regina, também diretora da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), no Mato Grosso do Sul, defende a tese de que, seja no papel, seja na tela do computador, a questão a ser estudada não é a falta de interesse do jovem pela leitura, mas, sim, o que esse jovem tem lido.

“O que acontece é que o jovem não está lendo, muitas vezes, o que a escola gostaria que ele lesse, o que nós, especialistas, gostaríamos que ele lesse”, afirma. “Mas o que ocorre é que o jovem, como qualquer outra pessoa, vai ler à medida que aquela leitura tenha algum significado na vida dele, é preciso que tenha alguma finalidade.”
Qual literatura?


Com esse comentário, Célia Regina, autora do livro Leitura, Literatura Infanto-Juvenil e Educação (Eduel, 2007), expõe um antigo impasse na vida de alunos e professores: a leitura obrigatória, na sala de aula ou mesmo na preparação para o vestibular. “Geralmente nas séries iniciais, a escola consegue trabalhar melhor essa questão da leitura”, explica. “Porém, nessa passagem da adolescência, as coisas começam a se perder, porque é quando o professor quer trabalhar um tipo de leitura com que o adolescente não vê tanta proximidade, ele acaba lendo resumo ou pegando coisas na internet para dar conta das tarefas escolares.” Segundo a especialista, o perigo do fosso entre o que está na lista imposta aos alunos e o que está no seu foco de interesse nas livrarias e bibliotecas é o do distanciamento entre a escola e o jovem no âmbito da leitura. “Se o professor chega e fala que o que o jovem está lendo não presta, não é literatura, esse jovem vai pensar: ‘Poxa vida, o professor está dizendo que o que eu leio não serve, que só o que ele quer que eu leia é que serve, como é isso? Então fique aí com o seu Machado de Assis, com a sua literatura, que eu vou ficar aqui com os meus livros’.” Segundo as especialistas, é clara a barreira entre os alunos e os chamados clássicos da literatura nacional – obras de autores como Lima Barreto, José de Alencar e o próprio Machado, entre outros. “Uma opinião muito sincera minha é que, se não houvesse o vestibular, esses jovens não leriam esses livros”, afirma a professora Maria Zilda. “Eles têm um pouco de dificuldade, inclusive, de acesso à linguagem. Eles não buscam [esse tipo de leitura] com boa vontade.” A pesquisadora Célia Regina afirma que, em geral, falta maturidade para o jovem leitor brasileiro poder penetrar no universo dessas narrativas. “Entendimento pressupõe esforço”, diz. “Essas obras são mais complexas, de linguagem mais difícil, e essa complexidade é que mantém uma obra clássica perene. O texto pode até estar datado, mas as reações que isso pode provocar vão se renovar a cada leitura.” Por outro lado, segundo apontam as especialistas, a escola tem um papel fundamental de mediadora para que os jovens “façam as pazes” com os cânones da literatura nacional. “Para você ter esse prazer do texto, para ele provocar essa reação ligada à experiência, o jovem tem de ser apresentado para o clássico de uma maneira agradável, não como a escola tem feito”, analisa Célia Regina. “O professor só vai conseguir formar leitores se ele for um leitor. Ele tem que ter repertório, tem que seduzir os alunos para a leitura, ler muito em sala com eles. Mas você ainda tem um professor que coloca o aluno para ler e sai para conversar com o colega.”

Adaptações

Uma das saídas encontradas tanto pelos jovens quanto pelos professores e pelas editoras têm sido as adaptações desses livros. Na maioria dos casos, o recurso utilizado é a linguagem dinâmica das histórias em quadrinhos. O que, segundo apontam as pesquisadoras, tem seus prós e contras. “Essa questão da adaptação é bastante séria porque, quando você faz a tradução de uma mídia para outra, muda-se o código, o suporte, a linguagem, e a questão da fidelidade [com o texto original] não é a melhor”, analisa Maria Zilda. “Hoje temos muitas adaptações, que são tentativas de aproximação do jovem com os clássicos”, complementa Célia Regina.

“Do Machado de Assis, por exemplo, existe aquela série Reencontro, da [editora] Scipione, que adaptou Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas, se você pega esse tipo de adaptação, vê que a mudança é muito radical, que não é mais Machado, é uma outra obra. Não sei em que medida esse tipo de adaptação faz com que o leitor vá depois ler o Machado.” No entanto, isso não significa que os quadrinhos sejam uma forma de leitura que deva ser desprezada. “Tenho verificado que alguns quadrinhos mostram adaptações extremamente engenhosas, que conseguem trazer aquilo que a gente chama de essência de literariedade”, afirma Maria Zilda.

Célia Regina conta que “quando os quadrinhos chegaram ao Brasil foram muito criticados”, mas que hoje se sente uma mudança de visão. “Havia um discurso, nos anos de 1950, segundo o qual não se devia deixar o aluno ler quadrinhos porque isso o afastaria da leitura, por ser uma linguagem muito facilitada etc.”, continua.

“Hoje, agora em 2009, o Ministério da Cultura (MEC) incluiu as histórias em quadrinhos na compra governamental. O governo comprando quadrinhos para distribuir para as escolas é algo inédito.”

O apelo da imagem


De acordo com o professor Elydio dos Santos Neto, do mestrado em educação da Universidade Metodista de São Paulo e que estuda o potencial das histórias em quadrinhos para a formação de educadores, de fato, durante muito tempo houve um grande preconceito por parte da academia com relação às HQs. “Elas eram vistas como um artefato cultural ‘menor’, de ‘segunda categoria’”, informa. “Mas, nas últimas décadas, [os quadrinhos] estão conquistando espaços privilegiados não apenas nas universidades, mas também nas livrarias, ampliando, inclusive, os gêneros nos quais são elaboradas.” Sobre o “potencial literário” do gênero, o professor prefere esclarecer que se trata de linguagens diferentes, cada uma com seus recursos próprios. “Os textos literários descrevem, em diversos estilos, cenas que são mentalmente recriadas pelos leitores”, explica. “Os quadrinhos apresentam, na combinação de imagem e texto, situações em que o ‘mergulho’ e a ‘viagem’ são acelerados pela provocação imagética já fornecida, mas que serão também recriadas e ressignificadas pela subjetividade do leitor.” De qualquer forma, a combinação “adolescentes e HQ”, segundo o especialista, pode tranquilamente ser vista com bons olhos. “As histórias em quadrinhos têm também potencial para a formação de leitores. Mas, mais do que isso, elas favorecem o desenvolvimento de uma maneira diferente de olhar e pensar a realidade.”

Bruxos, anéis e vampiros

Assim como as histórias em quadrinhos, outra febre entre os leitores adolescentes são os best-sellers estrangeiros, séries como O Senhor dos Anéis e o fenômeno Harry Potter. Ainda que alguns torçam o nariz para esse tipo leitura, questionando sua qualidade literária, há estudiosos que acham mais produtivo aceitar o fato de que essa tem sido a escolha de muitos jovens e que é possível, sim, usar isso a favor da educação. “Não vejo problema nesse tipo de leitura”, afirma a professora Célia Regina. “Ela tem a ver com a construção de um hábito de leitura nos jovens. Acho que a escola não pode ignorar isso, enquanto ela o fizer irá continuar com esse fosso entre ela e o jovem. E acho que esse tipo de leitura tem de ser não só respeitada como trazida para sala de aula, para a discussão. Vamos ver o que tem ali que está interessando tanto os nossos alunos.” Segundo a pesquisadora, esses livros atraem pelo universo fantástico que apresentam aos jovens. “Acho que, de certa maneira, esses livros trazem de volta a questão do encantamento, do sobrenatural, dos contos de fadas mesmo”, explica. “Se a gente for olhar para esses personagens, a gente vê que o Harry Potter, por exemplo, é um bruxo órfão de pai e mãe. Isso já cria uma empatia do leitor com relação a ele. E o tem o fato de ele ser bruxo; no caso do Crepúsculo é a saga do vampiro; enfim, a gente vê que, no fundo, existe uma retomada, um resgate do mundo mágico.” Para a professora Maria Zilda, o jovem de hoje vê nesses livros um universo de perspectivas, dado os desafios que são impostos aos personagens, que ele não consegue enxergar na sua realidade. “O jovem hoje tem poucos desafios”, coloca. “Quando se fala de proibições, eles não têm obstáculos a enfrentar. E, com isso, eles não desenvolvem aquele espírito do herói, que precisa passar por provas e realizar conquistas.” Na análise da pesquisadora, é justamente esse herói realizador que o jovem encontra nessas histórias. “O Harry Potter é um herói. Ele é um órfão que passa por mil peripécias.”

Outro ponto que se pode observar no fenômeno de aceitação desses livros é a quebra da noção de que o jovem da era da internet não teria paciência para a leitura mais atenta de narrações extensas. Afinal, os fãs do bruxinho Harry Potter têm de colocar debaixo do braço volumes que passam das 500 páginas, como é o caso do sétimo e último livro da série, Harry Potter e as Relíquias da Morte (Rocco, 2007). “Se interessar, os jovens viram noites e dão conta disso [do tamanho dos livros] rapidamente”, constata Célia Regina. “E realmente são livros bastante extensos.”

Palavras e imagens

Bibliotecas, gibitecas e exposições das unidades do Sesc São Paulo mostram ?como a leitura, em suas mais diversas formas, continua em pauta entre os jovens.

Mesmo tendo sido vistas com desconfiança no passado, as histórias em quadrinhos têm, cada vez mais, ganhado o respeito dos estudiosos de literatura e educação. E uma vez que as HQs sempre tiveram lugar cativo na cabeceira dos jovens, nunca foi tão saudável dividir um pouco o tempo e a leitura entre os livros e essas narrativas cheias de ação e imagens. “O mundo caótico em que vivemos é fruto de decisões reducionistas que temos tomado. E as histórias em quadrinhos trazem a contribuição de favorecer a atuação da sensibilidade”, explica o professor Elydio dos Santos Neto, do mestrado em educação da Universidade Metodista de São Paulo e que estuda o potencial das histórias em quadrinhos para a formação de educadores. “Isso provoca o desenvolvimento de outra maneira de ler o mundo e, conseqüentemente, de tomar decisões. Essa outra maneira tende a ser global e sensível e, contemporaneamente, somos carentes disso.” O professor esclarece, no entanto, que as HQs não dão conta dessa mudança sozinhas. Afinal, há quadrinhos e quadrinhos. “É preciso ser crítico e criterioso também na escolha de histórias em quadrinhos, como se deve ser com a escolha de qualquer artefato cultural produzido pela complexidade humana.”


Algumas unidades do Sesc São Paulo oferecem a oportunidade de tomar contato com o que há de mais rico na produção de histórias em quadrinhos. Seja no espaço da biblioteca – existente em todas as unidades – seja em projetos especiais, os “gibis” estão lá para ajudar a despertar o gosto pela leitura. No Sesc Vila Mariana, por exemplo, existe, desde 2005, o projeto Quadrinhando, que, a cada dois meses, ocupa o átrio da unidade. Lá os aficionados encontram revistas, livros especializados, participam de oficinas e trocam idéias sobre o universo desse gênero. A grade de atividades a cada edição acontece sob um tema. Já a unidade Piracicaba possui a maior gibiteca da rede Sesc. São 270 títulos, que, segundo explica o técnico Chico Galvão, buscam contar um pouco a história da HQ no Brasil e no mundo. “Privilegiamos as edições especiais”, diz Galvão. “Álbuns e edições com capa dura, que possibilitam o empréstimo ao comerciário e usuário da sala.” Aos cerca de 40 visitantes diários que a gibiteca recebe, são oferecidas também oficinas integradas com a Internet Livre, aproveitando o grande número de jovens que frequenta a sala de computadores. “A predominância é de jovens”, informa o técnico. “Mas temos também boa frequência de adultos. A faixa etária gira em torno de 7 a 16 entre os mais novos, mas temos também adultos de até 50 anos retirando gibis.”

No campo da literatura e internet, o Sesc Pinheiros apresenta, até 28 deste mês, a exposição interativa Blooks – Tribos e Letras. O nome vem da junção das palavras book (livro) e blog, união que, segundo a curadora da mostra, Heloísa Buarque de Holanda, professora titular de teoria crítica da cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), representa a última palavra em produção literária: a internet como hospedeira de novas possibilidades de linguagem e suporte. “Quando eu fiz essa exposição [em 2007] eu contratei a Bruna Beber e o Omar Salomão, juvenilíssimos, blogueiros etc., para fazer a seleção dos trabalhos e depois me mostrar”, diz a professora. “Era tudo muito literário. Era fascinante porque aquilo provou que não é verdade que aquela linguagem [tradicional, do livro impresso] tenha perdido a densidade.”
 
O livro e a cidade



Coleção Ópera Urbana, voltada para o público infanto-juvenil, ?traz São Paulo como cenário e personagem das narrativas.
Resultado de uma parceira entre a Edições Sesc SP e a Editora Cosac Naify, a coleção Ópera Urbana reúne escritores e ilustradores para criar uma série de quatro volumes voltada para o público adolescente. “A coleção é composta de ficções inspiradas em espaços urbanos e cada uma delas é acompanhada por um libreto com curiosidades e informações paradidáticas”, esclarece Clívia Ramiro, coordenadora das Edições Sesc SP, vinculada à Gerência de Desenvolvimento de Produtos. “A ideia é trazer o jovem não apenas para mais perto da literatura como também de sua cidade.” Fazem parte da coleção os livros Cidade dos Deitados, de Heloísa Prieto (texto) e Elizabeth Tognato (ilustração); Montanha-russa, de Fernando Bonassi (texto) e Jan Limpens (ilustração); Surfando na Marquise (ilustração abaixo), de Paulo Bloise (texto) e Daniel Kondo (ilustração); e Avenida Paulista, de Augusto Massi (texto) e Carla Caffé (ilustração). “Foi do Augusto Massi a idéia de convidar vários autores para escrever sobre locais da cidade”, explica Heloísa Prieto, co-organizadora e idealizadora da coleção. “Pessoalmente, foi muito gratificante perceber os desdobramentos da proposta. Acabei me aproximando mais da cidade, sua história, seu cotidiano. Espero que a coleção desperte sentimentos semelhantes nos leitores”, conclui a autora.


Literatura virtual


Mesmo ainda longe de destronar o livro, a internet? tem formado uma geração de leitores digitais.
Em palestra no projeto Cartografia Literária, realizado pelo Sesc Consolação em agosto de 2008, a professora titular de teoria crítica da cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Heloísa Buarque de Holanda, chamou a atenção para a volta de uma atividade literária mais vigorosa promovida pela internet. Segundo ela, foi pelo computador que se fez um resgate de uma dinâmica criada no papel. “Você tem uma vida literária de uma intensidade absurda na internet”, disse na ocasião. “Sou professora e sempre me deparo com aquelas perguntas chatas: ‘Mas isso é literatura?”, ‘não seria uma literatura menor?’. Acho que a resposta não interessa, pelo menos não para mim.”


Heloísa afirma ainda que um dos pontos mais interessantes de observar na escrita desenvolvida na rede é o diálogo que ela possibilita entre autores e leitores. “É uma conversa entre pares, entre pessoas mais ou menos da mesma idade.” Sobre o conteúdo dessa leitura na tela feita pelos jovens a professora surpreende ao revelar que tem observado uma volta aos grandes nomes da literatura universal em pleno ciberespaço. “Faço muitas entrevistas e pergunto sempre para esses novíssimos quem eles leem, eles me saem com Flaubert e outros nomes da literatura canônica”, revela. “E na periferia também. O número de jovens que procura por literatura canônica nas favelas é bem alto – inclusive porque não tem livrarias nem bibliotecas naqueles locais. Com isso, o uso da internet para leitura é muito alto.”

A professora de literatura infantil e juvenil da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP) Maria Zilda da Cunha acrescenta que nem sempre a rapidez da internet compromete o ritmo mais reflexivo que a leitura de determinados gêneros exige. “A professora Lucia Santaella faz um estudo bastante interessante do perfil cognitivo de três tipos de leitores”, informa.

“O leitor do [surgido no] Iluminismo [período da história intelectual ocidental, no início do século 18, caracterizado pela defesa do pensamento racional em lugar das crenças religiosas], que era um contemplativo e que tinha a sua disposição o texto impresso; o leitor que ela chama de movente, pós-Revolução Industrial, e que sofre múltiplas demandas de informações; e o leitor próprio da era digital. Um tipo de leitor não elimina o outro e o leitor da era digital também tem seu momento de reflexão.”

Fonte: Revista E SESCSP