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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O leitor e a leitura: Entreveista com Flavia Goulart Mota Garcia Rosa

O leitor e a leitura: presidente da ABEU, fala a respeito dos problemas envolvendo a leitura e o consumo de livros no país

Por Enio Rodrigo

Matéria publicada em 15/09/2010

Falar sobre o hábito da leitura no Brasil parece uma questão complexa. A média anual de leitura por brasileiro acima dos 15 anos e com pelo menos três anos de estudo (4,7 livros) é abaixo da média de países vizinhos, como a Argentina (5,8 livros por ano), de acordo com dados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, feita pelo Instituto Pró-Livro. Ainda, parte desses leitores é composta por estudantes que leem as obras indicadas pelos professores (e não é uma leitura espontânea, como no caso dos argentinos). Além disso, 17% dos leitores não compreendem o que leem.

Para Flávia Goulart Mota Garcia Rosa, diretora da Editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e presidente da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU), as dificuldades passam pela escola, pela falta de bibliotecas, pelo baixo poder aquisitivo – que atinge também os professores – e pela dificuldade da indústria editorial em cativar um público sem um perfil definido, que no Brasil varia entre o consumidor do livro digital e aquele que não tem acesso a livrarias em sua cidade.


Pré-Univesp: Quais são os fatores que influenciam o hábito de leitura no país e o que deve ser feito para mudar esse cenário?

Flavia Goulart Mota Garcia Rosa: A questão da leitura é um reflexo também da questão socioeconômica do país. Temos uma população muito grande com um baixo poder aquisitivo – que é o maior contingente da população brasileira –, para a qual o livro não é um objeto incorporado na sua lista de compras. Se tivéssemos ações de bibliotecas públicas de uma forma satisfatória, o quadro poderia ser diferente, no entanto o país não tem ainda um projeto nacional consolidado para mudaressa situação . Estamos começando a ter algumas ações efetivas, mas não é suficiente abrir uma biblioteca, no sentido estrito, ou seja, construir um prédio e abarrotá-lo de livros. É necessária uma ação mais ampla, de criar um hábito de leitura pelo lazer, e não apenas pela obrigatoriedade de ler algo que a escola pediu. Em um projeto assim, o bibliotecário e o profissional da educação são importantes, pois eles vão se configurar como uma espécie de (ou “intermediar a relação entre o leitor ...”) ponte entre o leitor e o livro. Eles não podem ser passivos, apenas cadastrando o livro ou replicando opiniões alheias.

Hoje nós vemos algumas poucas ações na formação daqueles que chamamos de “agentes de leitura”, focando na capacitação dos bibliotecários, dos auxiliares de biblioteca, professores, ou seja, em todos os atores que contribuem para a criação do hábito de leitura. Tal capacitação é importante, pois a maior parte da população do país está na zona de baixo poder aquisitivo, em que comprar o livro é difícil, e as bibliotecas deveriam ser a saída natural para ter contato com as obras literárias.

Pré-Univesp: Como você vê o impacto da internet no hábito da leitura entre os mais jovens?

Flavia: Eu acho que não se pode pular etapas. Não é possível falarmos de ir direto para a leitura pelo computador. Todas as fases precisam ser vivenciadas. Hoje temos uma convivência entre o analógico e o digital, o que é bom para esses iniciantes na leitura. Concordo também que existe uma geração se iniciando no computador, mas o acesso ao ambiente digital está longe de ser realidade nacional. Novamente entramos na questão socioeconômica. Imagine, se temos pessoas que não compram nem o livro, existe toda uma população que não tem acesso ao computador e à internet. As pesquisas apontam o aumento das residências com computador, e um aumento de crédito também, mas nem todos têm a possibilidade de comprar um computador. A maioria da população mais carente tem acesso a ele por intermédio da escola ou de lan houses.

Pré-Univesp: A tecnologia exclui o público com menor poder aquisitivo?

Flavia: Temos uma população diversa, com tantas particularidades, que variam de região para região. O ideal é isto que estamos vendo: quem tem acesso ao livro digital, tem uma determinada opção. Outras pessoas podem preferir o livro impresso – por questão de custo, facilidade, costume etc. Então, ter várias plataformas convivendo é extremamente rico. E, voltando às bibliotecas, é preciso que elas se adaptem a esse tipo de variedade de plataformas também. O fato de que os públicos que podem compartilhar o mesmo ambiente é extremamente interessante, já que a biblioteca é um ponto de troca de informações entre as pessoas também.

Pré-Univesp: Qual deve ser o papel da escola, dos professores e das bibliotecas públicas nesse cenário?

Flavia: Temos de pensar na biblioteca como espaço público disponível para a sociedade e cujos funcionários são capacitados para ajudar. Isso porque os usuários de internet nem sempre sabem das potencialidades que taltecnologia traz. Não se trata de apenas acessar as redes sociais e softwares de comunicação, mas de ver uma forma de agregar valor a essa “navegação”, ou seja, ir até o computador, acessar a internet e sair com informação de lá, e não ser apenas um espectador passivo. É preciso mostrar as possibilidades de acessar o jornal, ou mesmo livros digitais, como é o caso dos livros disponíveis no Portal Domínio Público, que conta com diversas obras da literatura nacional.

Além disso, as universidades também estão disponibilizando os acervos das teses e dissertações na internet. O material online fica disponível ao cidadão, mas é preciso que exista uma figura para intermediar, capacitar o usuário para lidar com essa tecnologia. Não basta ter o computador; são necessários também profissionais que auxiliem os alunos e os usuários de bibliotecas a fazer um uso mais rico dos computadores. Mesmo entre os alunos universitários, é preciso fazer tal capacitação. Eles também são agentes multiplicadores do uso das tecnologias disponíveis.

Pré-Univesp: Os indivíduos em idade universitária muitas vezes deixam a leitura por prazer em função da necessidade de leitura técnica. Existe alguma preocupação para fazer com que esse público retome o hábito de ler livros?

Flavia: Baixar os capítulos dos livros que eles precisam para acompanhar as aulas não supre a formação desses indivíduos. É uma leitura fracionada, focada no resultado de que ele precisa no final do semestre. Em um ambiente universitário, deveria se expandir o conhecimento de um determinado tema nas diversas visões e de diversos autores. Para tanto , as bibliotecas precisam estar bem equipadas, com número suficiente de volumes para atender à demanda, e, mais do que isso, são necessárias ações que estimulem o aluno a voltar a ter o hábito da leitura como prazer. Isso porque ele veio de um processo, como o vestibular, no qual os livros são indicados apenas como material para fazer a prova. Eles acabam perdendo o prazer da leitura. É preciso trabalhar para inverter esse processo.

Pré-Univesp: Você participou da última Bienal Internacional do Livro (realizada em São Paulo de 12 a 22 de agosto), um dos principais eventos literários do país, representando a ABEU. Você percebeu alguma mudança no perfil do público e dos representantes das editoras?

Flavia: Foi possível notar um aumento da representatividade entre as editoras universitárias. Praticamente todos os estados brasileiros estavam representados. Tal dado é interessante de ser observado, pois mostra que a produção de livros não está mais centralizada em alguns estados, e que pode estar se iniciando um movimento em direção a novas regiões. Isso é extremamente positivo para a produção intelectual local, que passa a ter novos canais de distribuição.

No caso do público visitante, é interessante ver os eventos – seja a Bienal do Livro, seja a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) – como “festividades”. O livro é tão excepcional para algumas pessoas que elas se mobilizam para visitar e comprar. Do ponto de vista socioeconômico, é uma oportunidade também. As pessoas esperam encontrar preços mais convidativos, o que também contribui para a visitação. Além disso, ter contato com os autores, vê-los pessoalmente, também motiva bastante.

Pré-Univesp: Em sua opinião, qual o futuro do livro e da leitura?

Flavia: Tudo dependerá da continuidade dos trabalhos e políticas públicas instauradas até agora. Se isso não for prioridade, infelizmente o trabalho pode ser interrompido. O Ministério da Cultura e o Ministério da Educação precisam se aproximar cada vez mais. A educação, as bibliotecas, o hábito de leitura, a aquisição de livros, o treinamento de profissionais fazem parte do mesmo problema. Essas ações precisam ser conjuntas e em longo prazo. Um projeto deve prever uma projeção, em termos de tempo, e não apenas números de criação de bibliotecas, quantidade de livros disponíveis, ou vendagem das editoras. Para mudar tal cenário são necessários anos ; nada ocorrerá de forma imediata.

Fonte: Univesp

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Entrevista com Alberto Manguel - Ler é poder

Entrevista publicada em 07/07/1999
Ler é poder

O ensaísta canadense, autor de Uma História da Leitura, explica por que a palavra escrita é a grande ferramenta para entender o mundo

Tania Menai

Quando tinha 16 anos, o jovem argentino Alberto Manguel trabalhava numa livraria em Buenos Aires. Certo dia, viu entrar pela porta, acompanhado de sua mãe, um homem cego, já de meia-idade, que havia encomendado uma obra esquisita – um dicionário de anglo-saxão. Todo mundo conhecia o homem: era Jorge Luis Borges, um dos mais importantes escritores do continente latino-americano e, para muitos, um dos mais importantes do século. Manguel atendeu o escritor. E este, quando já estava para ir embora, resolveu fazer-lhe uma proposta: que tal se nas horas livres o rapaz fosse até sua casa, para ajudá-lo com os textos que ele não podia mais enxergar? Nos dois anos seguintes, foi exatamente o que aconteceu. Ele leu em voz alta para Borges. Para si mesmo, enquanto isso, confirmou sua paixão pela leitura. Hoje, aos 55 anos, ele é um especialista de renome internacional nesse tema. Sua obra mais conhecida é Uma História da Leitura, que, lançada pela editora Companhia das Letras, chegou a freqüentar as listas de mais vendidos no Brasil. Com justiça. Escrito em linguagem clara e atraente, repleto de histórias e curiosidades, o ensaio aborda o assunto das mais diversas perspectivas – da iniciação à literatura à relação do texto escrito com as imagens e as novas tecnologias. Filho de diplomata, Manguel – que se lembra de ter decifrado o significado das letras de um cartaz pela primeira vez aos 4 anos – já viveu em diversos países, da Itália ao Taiti, e é fluente em cinco línguas. Atualmente, é cidadão do Canadá, "um país onde sua voz é escutada sem que você precise ser um político". Vivendo em Calgary, participa neste ano de um programa para escritores na universidade local e escreve Uma História do Amor e do Ódio, a ser lançado até dezembro. Foi lá que Manguel deu a VEJA a seguinte entrevista:

Veja – Numa época em que predominam as imagens, por que a leitura ainda é importante?

Manguel – A atual cultura de imagens é superficialíssima, ao contrário do que acontecia na Idade Média e na Renascença, épocas também marcadas por uma forte imagética. Pense, por exemplo, nas imagens veiculadas pela publicidade. Elas captam a nossa atenção por apenas poucos segundos, sem nos dar chance para pensar. Essa é a tendência geral em todos os meios visivos. Assim, a palavra escrita é, mais do que nunca, a nossa principal ferramenta para compreender o mundo. A grandeza do texto consiste em nos dar a possibilidade de refletir e interpretar. Prova disso é que as pessoas estão lendo cada vez mais, assim como mais livros estão sendo publicados a cada ano. Bill Gates, presidente da Microsoft, propõe uma sociedade sem papel. Mas, para desenvolver essa idéia, ele publicou um livro. Isso diz alguma coisa.

Veja – Que diferenças existem entre ler um livro e ler a mesma obra numa tela de computador?

Manguel – Os livros de hoje derivam dos pergaminhos e estes, das tábuas. Ou seja, são resultado de um processo que visou facilitar a vida do leitor. O formato atual do livro permite carregá-lo para qualquer lugar, folheá-lo sem esforço e anotar em suas margens. Também possibilita que saibamos exatamente seu tamanho, o que era difícil no caso do pergaminho. As palavras impressas no papel são tangíveis, você quase pode tocar a tinta, e têm uma durabilidade incrível. No museu de arqueologia de Nápoles, vi papiros queimados na erupção do Vesúvio que destruiu Pompéia. Ainda é possível ler o que está escrito nesses fragmentos. Já se um disquete cair na água o texto nele contido desaparecerá para sempre. No computador, o texto não tem uma realidade sólida, além de ser extremamente frágil – se você apertar um comando errado, adeus texto. Quando falamos em ler um livro, nosso vocabulário é gastronômico: "Devoramos um livro" ou "Saboreamos um texto". Já em relação ao computador usamos palavras que têm a ver com superfície, como "surfar na internet" ou "escanear um texto". É impossível interiorizar o texto que aparece na tela luminosa. Isso me faz pensar que não lidamos com a informática de maneira correta. Veja o caso do CD-ROM. Insistimos em utilizá-lo como artifício para enriquecer a edição de uma obra, quando o melhor recipiente para um texto é o livro convencional. A história mostra que esse tipo de problema ocorre sempre que adotamos uma nova tecnologia. No final do século passado, dizia-se que, com o nascimento da fotografia, a pintura morreria. Da mesma forma, acredita-se hoje que a mídia eletrônica substituirá a imprensa. Bobagem. Assim como a fotografia encontrou uma linguagem própria, a informática também achará a sua.

Veja – O senhor usa a internet?

Manguel – Não muito. O processo de pesquisa na internet não me leva rapidamente ao tipo de informação que busco. Estou bem mais acostumado a pesquisar em bibliotecas.

Veja – O filme Mensagem para Você mostra que as megalivrarias americanas, como a Barnes & Noble, estão abocanhando as pequenas. O que o senhor acha dessa tendência?

Manguel – Odeio a Barnes & Noble, mas não há muito o que fazer a respeito. A noção de livraria como um supermercado onde os vendedores não sabem o que estão vendendo é uma idéia infeliz, movida por razões econômicas. Para o leitor, a única vantagem é o grande número de títulos disponíveis. Houve uma perda qualitativa com o advento das megalojas, porque um freqüentador de livraria não ia a um estabelecimento apenas para comprar um livro. Ia também para conversar sobre literatura, receber recomendações de obras, ter uma seleção mais pessoal. As livrarias tinham uma identidade, ao contrário da Barnes & Noble. O mesmo raciocínio vale para uma livraria virtual, como a Amazon.

Veja – É melhor ler publicações sem qualidade do que não ler nada?

Manguel – Essa pergunta pressupõe que certos livros são necessariamente melhores do que outros. Não acredito em hierarquias absolutas no campo da leitura. Nos países árabes, que valorizavam a filosofia e a poesia em detrimento da ficção, As Mil e Uma Noites eram vistas como literatura barata. No Ocidente, porém, o livro tornou-se um clássico. A dimensão de uma obra depende também da experiência pessoal de cada um, de quanto sua vida foi transformada por ela. É um tanto arrogante dizer "esse é o livro que você deve ler e esse é o que você não deve". Há obras certas para diferentes momentos de sua existência.

Veja – Que autores tiveram grande influência sobre o senhor?

Manguel – Um nome que me ocorre é o do brasileiro Monteiro Lobato, autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ter lido Monteiro Lobato numa certa fase de minha vida foi mais enriquecedor do que ter lido Camões, há cinco anos. Camões é interessante, levou-me a pensar em questões profundas, mas não mudou minha vida. Tive contato com as obras de Lobato aos 8 anos, logo depois de mudar para a Argentina. Eu relacionava alguns episódios protagonizados pela boneca Emília com certas dificuldades que tive na escola nova, por causa do idioma que eu não falava.

Veja – O senhor conhece Machado de Assis?

Manguel – Gosto muito do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis é um dos escritores fundamentais de nosso tempo. O fato de ele não ter exercido uma influência internacional deve-se exclusivamente a circunstâncias culturais e econômicas. Ele viveu no Brasil, um país remoto no século passado, apesar de seu tamanho. Se Machado de Assis tivesse escrito em inglês, ele teria sido um precursor, e não um herdeiro de determinadas concepções literárias.

Veja – O que se perde ao ler um livro traduzido?

Manguel – Tudo. Um livro é a língua na qual ele foi escrito. Sua tradução é outra obra – que às vezes pode até ser melhor do que a original. Quem sabe alemão, francês, italiano, espanhol e sueco tem a literatura do mundo inteiro a sua disposição. Se você fala apenas inglês, não. Os países de língua inglesa não traduzem muito. Têm uma cultura profundamente arrogante, que acredita que a civilização termina nos limites de seu próprio idioma.

Veja – Uma criança é capaz de entender obras clássicas, como as do inglês William Shakespeare?

Manguel – Não, Shakespeare escreve numa linguagem antiga. Uma criança pode entender algo desde que seus textos sejam vertidos para uma linguagem mais simples. Ainda assim, as crianças só compreenderão Shakespeare até certo ponto, dada sua parca experiência de vida e limitada formação intelectual.

Veja – As adaptações de clássicos para crianças são uma boa idéia?

Manguel – Não as acho necessárias. Por que uma criança deve ser obrigada a ler obras clássicas? Ela pode começar lendo livros próprios para sua idade e, depois de crescida, chegar a Shakespeare. Mais do que uma simplificação, a adaptação de uma obra implica uma intervenção inadmissível em seu conteúdo. No limite, ela pode tirar da pessoa o desejo de ler um clássico na versão integral. Não há por que tratar a leitura de grandes livros como obrigação. Não há prazer na obrigação e devemos ler apenas por prazer.

Veja – É correto forçar uma criança a ler?

Manguel – Da mesma maneira que não podemos fazer com que uma criança goste de alguém, não temos a capacidade de transformá-la num leitor. O que devemos fazer, como adultos responsáveis, é colocar a literatura à disposição da garotada. Uma das razões pelas quais às vezes não apreciamos um determinado livro é por termos sido forçados a lê-lo na escola ou por nossos pais terem lido e nos obrigado a fazer o mesmo. Parte da maravilha e da riqueza da leitura vem da liberdade que ela sugere e da possibilidade de vagar por florestas de prateleiras, escolhendo o livro certo para aquele momento, como se nós fôssemos seu primeiro leitor ou estivéssemos chegando a um país desconhecido. Essa é uma experiência que não devemos tirar de nossas crianças. Devemos deixá-las escolher, dizendo: "Você será uma pessoa melhor, mais feliz e mais sábia quando encontrar seu livro".

Veja – Quem lê muito necessariamente escreve bem?

Manguel – Muitos escritores preferem não ler enquanto estão escrevendo, para não influenciar seu trabalho. Mas só há uma forma de aprender a escrever bem: lendo. Lendo você pode descobrir como os escritores fizeram suas obras e ter noção do processo da escrita. Mas não há regras. O escritor inglês Somerset Maugham dizia que "existem três regras para escrever bem. Infelizmente ninguém sabe quais são elas".

Veja – A censura a livros é um instrumento válido para impedir que certas idéias perniciosas se disseminem?

Manguel – A história do livro sempre caminhou lado a lado com a censura, mas não canso de repetir: censurar é uma idiotice. Os livros banidos voltam de uma forma ou de outra, independentemente de seu conteúdo. Conheço um professor de filosofia que foi prisioneiro de um campo de concentração na Alemanha nazista. Por ter na mente muitos dos clássicos, ele servia de biblioteca viva para os outros prisioneiros. Sempre se procura desculpa para a censura. Hoje ela é a pornografia infantil. Mas a única maneira de evitar as eventuais influências negativas de um texto é por meio da educação, ensinando às pessoas como ler. Livros, por si sós, não incitam à violência ou propiciam o nascimento do anti-semitismo. O homem que matou John Lennon estava lendo O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, uma das obras mais singelas e idealistas da literatura americana.

Veja – Qual é o país que detém o maior índice de leitura?

Manguel – Estatísticas mostram que é a Islândia. O curioso é que esse dado não vem de agora. No século passado, o francês Júlio Verne criou uma interessante passagem a respeito no romance Viagem ao Centro da Terra. Ao chegar à biblioteca de Reykjavik, capital daquele país, seus heróis encontraram as prateleiras quase vazias. Os livros estavam emprestados a ávidos leitores.

Veja – Por que o analfabetismo é crônico em tantas nações, apesar de ser um problema fácil e barato de ser resolvido?

Manguel – Porque ter acesso à palavra escrita significa a possibilidade de dominar um instrumento de poder chamado linguagem formal. É na linguagem formal que estão escritos os códigos, as leis de um país. Manter grande parte da população no analfabetismo é uma das maneiras utilizadas por governantes que querem perpetuar-se no poder, sem sofrer ameaças. Mas existe outro tipo de analfabetismo – aquele definido por São Jerônimo como a "ignorância desejada", que ele considerava um pecado.

Veja – O que é a "ignorância desejada"?

Manguel – É a atitude de quem, deliberadamente, não dá importância à cultura, mesmo tendo um grau satisfatório de escolaridade. Há um grande número de analfabetos desse tipo nos países desenvolvidos.

Veja – O senhor tem um lugar preferido para ler?

Manguel – Adoro ler nos trens, meu transporte predileto. Gosto também de ler na cama e leio no banheiro, claro. O lugar mais desconfortável é a mesa de trabalho.

Fonte: Veja

domingo, 24 de janeiro de 2010

Entrevista com José Mindlin

Nascido em São Paulo em 1914, filho de imigrantes russos, José Mindlin ainda menino apaixonou-se pelos livros. Muito jovem, frequentava os sebos do centro de São Paulo e acabou por achar um jeito de comprar os livros sem pedir dinheiro aos pais. “Verifiquei que os livreiros dos sebos não estavam atentos ao que os outros faziam. Alguns vendiam por 5 ou 10 mil réis o que outros vendiam por 20, 30 e até 50 mil réis! Por sua vez, esses vendiam por 5 o que os primeiros vendiam por 30, 40.” Rapidamente, viu ali a chance de incrementar sua biblioteca. “Comprava o livro dos sebos mais baratos e levava para o outro, o dos livros caros, e dizia: ‘Vou deixar em consignação e não quero ver dinheiro. Tire sua comissão e me credite o produto.’” Depois de poucos meses, o garoto tinha crédito em todos os sebos. “Eu comprava sem desembolsar nada”, fala divertindo-se. Assim começa a história do mais respeitado bibliófilo do país. Sua biblioteca tem cerca de 40 mil títulos e a Brasiliana, coleção de livros sobre o Brasil e de literatura brasileira, chega a 25 mil títulos e foi doada à Universidade de São Paulo (USP ) em 2005. Livros, leitura, literatura brasileira e estrangeira, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Marcel Proust, Eça de Queirós e Guita, sua mulher e companheira por quase 70 anos – paixões que florescem em cada frase, em cada gesto, em cada canto da casa e da biblioteca. Na garimpagem, o desafio e a alegria de encontrar o objeto do desejo. Na leitura, o encontro sincero e real com o prazer. Esse é José Mindlin.

Sua história de vida confunde-se com os livros – desde a infância, sempre com eles, com histórias contadas dentro de casa. Como foi o início dessa paixão? Eu quase poderia dizer que nasci com o livro na mão, porque cresci em um ambiente cultural: meus pais liam, meus irmãos mais velhos também e o ambiente era de amor à leitura. Isso, naturalmente, me contagiou desde cedo. E, quando isso acontece, a pessoa tem de se conformar, porque vai continuar pelo resto da vida. Aliás, é o modo de dizer, porque acho que isso é uma bênção, ter esse gosto pela leitura. Quando falo sobre esse assunto, sempre digo que se trata de paixão incurável. Em geral, as boas paixões são incuráveis. E a leitura nem se discute, é um benefício para a vida.

Na sua casa, com seus irmãos e seus pais, vocês liam entre vocês? Líamos, sim. Eu lia para mamãe. Devia ter uns 12 anos e estava lendo Júlio Verne e gostando muito. A mamãe teve uma paciência evangélica de ouvir toda a leitura, mas os trechos mais cacetes eu pulava. De modo que, no fundo, foi uma coisa ótima.

O senhor começou muito cedo, com 12 ou 13 anos. Qual foi o primeiro livro raro que comprou? Aos 13 anos, comprei o primeiro livro raro em sebo. Era uma tradução portuguesa de Discurso sobre a história universal, de Jacques Bossuet, publicada em Coimbra em 1740. Como menino, fiquei fascinado pela antiguidade, depois aprendi que a data de edição é um fator secundário de avaliação. Há muito livro moderno que é mais raro e mais importante do que muito livro do século 16.

Como surgiu a ideia de formar uma biblioteca? Ela não foi planejada, fui comprando livros de acordo com as leituras que me interessavam. Com certa precocidade, perto dos 12 anos, comecei a ir ao centro, que a gente chamava de “cidade”, e as livrarias se concentravam ali. Eu não tinha uma verba para a compra de livros e, às vezes, aparecia um que me interessava muito e pedia aos meus pais. Eles me facilitavam a compra. Eu tinha certa retaguarda, porque eles viam o meu interesse pela leitura com muito bom gosto. Mas por vezes eu precisava fazer uma ginástica, precisava me entender com os livreiros, estabelecer uma relação com eles que, aliás, me olhavam com simpatia. Eu era um menino de calças curtas! E, assim, começou a se formar a biblioteca. E ela tem uma vantagem, pois não tem fim e eu, com a idade em que estou, 95 anos, posso verificar que isso é uma verdade.

O senhor nasceu em São Paulo, em que bairro? Nasci no Paraíso e minha mulher também. Infelizmente, eu a perdi em junho de 2007. Não éramos vizinhos, a casa dela era na 13 de maio, mas com saída para a Cincinato Braga, que foi a rua onde nasci. Mas só a conheci muitos anos mais tarde.

Como conheceu sua esposa, Dona Guita? Eu estava começando o quinto ano da faculdade de direito e, um dia, vi no pátio uma caloura cercada de rapazes cabalando para que entrasse em um dos partidos acadêmicos: o Libertador, o Renovador, partidos de estudantes. Eu olhei pra moça e disse: ‘Olha, tudo isso é bobagem, se você quer um bom partido, está aqui’. E ela me pegou pela palavra e tivemos quase 70 anos de convivência. Eu sou de 1914 e ela era de 1916. Dali estabeleceu-se uma relação que teve, a meu ver, as melhores consequências. Casamos em 1938 e isso durou até a morte dela, 68 anos depois.

Dona Guita foi sua companheira de tantos anos... Companheira em todos os sentidos, em todas as áreas, desde o namoro até depois do casamento, e a leitura foi um interesse central de nossa vida.

Qual a participação dela na formação da biblioteca? Ela lia, assim como eu, constantemente e, além das coisas mais simples, quando se tratava de obras raras, por exemplo, que poderiam comprometer o orçamento doméstico, ela sempre foi uma apologista da aquisição. Me encorajava a fazer extravagâncias que eu hesitava em cometer. Ela estudou encadernação, conservação e restauro de papel e de obras, apesar de que não tínhamos muitos casos de aplicação dessas medidas, porque sempre procurei adquirir obras em bom estado, mas foi realmente uma parceira.

Em sua casa, o senhor lia com sua esposa e seus filhos? Sim, eu e Guita líamos um para o outro, isso fazia parte da nossa vida. O gostoso é que os filhos também têm essa paixão, cada um a seu modo. O que se lê varia, mas todos gostam muito. Eu sempre acreditei que a leitura fosse uma fonte de prazer e a escolha tem de ser livre. A gente pode, quando muito, orientar, dar certo palpite, mas são eles que têm de desenvolver o próprio gosto. E nós conseguimos.

Todos os filhos gostam também? Gostam muito. Nós temos quatro filhos, mas, na época em que eram três ainda, as meninas eram as mais velhas e sempre ouviam os elogios pelo interesse que tinham pela leitura. O caçula, que era o menino, enjoou de ouvir tanto elogio para as irmãs e um dia teve uma explosão, dizendo: ‘Eu também gosto de ler, só que eu não sei!’ Foi muito divertido.

Qual é a sensação de encontrar um livro raro, muito desejado? O coração bate mais forte. O prazer da garimpagem é muito grande, descrever essa sensação não é fácil, mas dizer isso já dá uma ideia do que representava para mim. A gente procura coisas e, às vezes, vê um livro que a gente não conhecia, mas que desperta interesse. São os dois prazeres que a garimpagem proporciona: encontrar o que a gente procura e despertar interesse por coisas que não eram conhecidas.

Como selecionar esse ou aquele livro? Diria que tenho um sexto sentido. Eu pego um livro e ele desperta o meu interesse ou não desperta. Em geral, o bom livro sempre desperta o meu interesse. Eu não gosto de ler, até hoje, livros muito difíceis; quando isso acontece, acabo deixando pra mais tarde. Mas há exceções, aqueles que temos de ler, mesmo achando difíceis. O hábito da leitura é tão forte que automaticamente folheio um pouco o livro e já sei se ele vai me interessar. É como o namoro.

"O hábito da leitura é tão forte que folheio um pouco o livro e já sei se ele vai me interessar. É como namoro"

Existe uma paixão? Existe e, às vezes, a gente nem sabe explicar. Uma vez, em Londres, eu queria comprar uma edição de Rabelais [François] do século 16 e o livreiro me mostrou um exemplar de 1558. Eu peguei no livro, olhei, folheei e disse a ele: ‘Posso fazer uma observação?’, ele disse que sim e eu falei: ‘A meu ver, esse livro não é o do século 16 e sim do século 17, antedatado’. E ele perguntou: ‘Mas por que o senhor diz isso?’ Eu disse: ‘Não sei, é uma sensação, o toque, o papel, o tipo’. Fomos ver a biografia de Rabelais e, de fato, era uma edição do século 17 com a data de 1558. Ele não se convenceu de que eu não era especialista em Rabelais. Foi exatamente um caso de sexto sentido. Era muito parecido, não tenho explicação, mas eu sabia. É como ver uma imagem religiosa do século 18 e uma imitação bem feita, moderna. É questão de conhecer, mas sempre tem o sexto sentido.

Quais são os seus livros de cabeceira? Tem uma pilha e eu gosto de ler do começo ao fim, mas hoje, com meu problema de visão, tenho dificuldade, alguém precisa ler pra mim, mas quando eu tinha facilidade, fazia isso com muita rapidez, em geral lia uns dois livros por semana, oito ou dez por mês.

O senhor gosta de reler livros? Acho a releitura uma fonte de prazer real, porque você vê coisas que escaparam na primeira leitura e o livro começa a fazer parte da sua vida.

Quais os livros que mais releu? Em matéria de livros brasileiros, as obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa, e a obra de Proust [Marcel], da literatura estrangeira.

Qual o livro preferido? Os livros são muito ciumentos e eu não posso falar em preferências, porque vou ter problemas com eles.

Dos escritores brasileiros, qual o senhor prefere? Machado de Assis é o topo da literatura brasileira, mas temos a sorte de ter muitos bons escritores. O Erico [Verissimo] é outro, mas são muitos...

Como incentivar o hábito da leitura? Quem não lê, não sabe o prazer que perde. Hoje em dia, está se fazendo um esforço para disseminar o gosto pela leitura. O ideal é começar em casa, o exemplo dos pais é a melhor orientação. É claro que existem muitos casos em que os pais não leem, então esse papel de estimular a leitura passa a ser da escola. Mas a escola costumava, e ainda costuma em alguns casos, apontar a leitura como uma obrigação. Acho isso um erro. A leitura deve ser apontada, não só como fonte de conhecimento, mas principalmente como fonte de prazer. Eu sempre fui a favor de criar o gosto, e não transmitir a sensação de obrigação, ninguém gosta de fazer nada obrigado.

"A coisa é simples. Eu lia muiot para os meus filhos e todos têm o gosto pela leitura, começou a fazer parte da natureza deles"

São atos simples que estimulam o gosto pela leitura? São, sim. Dentro de casa, os pais lendo para os filhos – minha mãe lia pra mim, depois eu lia pra ela, que tinha uma paciência extraordinária. A coisa é simples. Eu lia muito para os meus filhos e todos têm o gosto pela leitura, começou a fazer parte da natureza deles, como fazia parte da nossa: da minha mulher e da minha.

O que o senhor considera mais inusitado em sua biblioteca, algo que desperta um carinho especial? Gosto muito de manuscritos, porque você pode acompanhar o processo de criação literária. Muitos são datilografados, mas você tem as correções que o autor fez manualmente. Os originais são difíceis de se ter, de se conseguir, mas, curiosamente, os livros se encaminham para aqueles que têm o real interesse pela leitura. Mas tem muita coisa e aqui também entra a questão do ciúme. Mas dos livros sobre o Brasil, temos as primeiras edições do século 16, dos primeiros viajantes que aqui estiveram. Do período holandês, temos os livros que foram publicados na época. De literatura brasileira, temos várias primeiras edições dos séculos 17 e 19, muitos exemplares autografados e também temos originais de livros da era pré-computador, em que os escritores escreviam a mão ou a máquina e faziam correções a mão e a gente fica conhecendo o processo de criação literária. Temos originais do Guimarães Rosa, do Graciliano Ramos, do José Lins do Rego e do Erico Verissimo.

As Brasilianas foram doadas à Universidade de São Paulo. O que o senhor espera dessa biblioteca? Ela tem de ser viva! Nós doamos a Brasiliana completa, em torno de 25 mil volumes, mesmo coisas raras e de muita estima, que é mais ou menos metade da biblioteca. Afinal, a gente passa, mas os livros ficam. Fizemos a doação com determinadas condições. A USP está construindo um prédio para receber a biblioteca, que não vai se misturar às outras bibliotecas da universidade, e a ideia é que seja uma biblioteca viva, que cresça, que promova seminários, edições, debates.

O senhor escreveu alguns livros, como Cartas da Biblioteca Guita e José Mindlin (2008), Uma vida entre livros (2008) e No mundo dos livros (2009), entre outros. Como foi passar de leitor a escritor? Escritor seria uma forma meio pretensiosa de dizer, mas escrever é muito gostoso. Comecei a ler muito cedo e com 16 estava na redação de O Estado de S. Paulo. Eu era o mais moço, entrei em maio e fiz 16 em setembro. O pessoal da redação via isso com simpatia, todos eram mais velhos e compartilhavam do meu interesse. Hoje, como não consigo ler, passei a escrever, porque isso eu consigo. Foi uma boa solução.