O leitor e a leitura: presidente da ABEU, fala a respeito dos problemas envolvendo a leitura e o consumo de livros no país
Por Enio Rodrigo
Matéria publicada em 15/09/2010
Falar sobre o hábito da leitura no Brasil parece uma questão complexa. A média anual de leitura por brasileiro acima dos 15 anos e com pelo menos três anos de estudo (4,7 livros) é abaixo da média de países vizinhos, como a Argentina (5,8 livros por ano), de acordo com dados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, feita pelo Instituto Pró-Livro. Ainda, parte desses leitores é composta por estudantes que leem as obras indicadas pelos professores (e não é uma leitura espontânea, como no caso dos argentinos). Além disso, 17% dos leitores não compreendem o que leem.
Para Flávia Goulart Mota Garcia Rosa, diretora da Editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e presidente da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU), as dificuldades passam pela escola, pela falta de bibliotecas, pelo baixo poder aquisitivo – que atinge também os professores – e pela dificuldade da indústria editorial em cativar um público sem um perfil definido, que no Brasil varia entre o consumidor do livro digital e aquele que não tem acesso a livrarias em sua cidade.
Pré-Univesp: Quais são os fatores que influenciam o hábito de leitura no país e o que deve ser feito para mudar esse cenário?
Flavia Goulart Mota Garcia Rosa: A questão da leitura é um reflexo também da questão socioeconômica do país. Temos uma população muito grande com um baixo poder aquisitivo – que é o maior contingente da população brasileira –, para a qual o livro não é um objeto incorporado na sua lista de compras. Se tivéssemos ações de bibliotecas públicas de uma forma satisfatória, o quadro poderia ser diferente, no entanto o país não tem ainda um projeto nacional consolidado para mudaressa situação . Estamos começando a ter algumas ações efetivas, mas não é suficiente abrir uma biblioteca, no sentido estrito, ou seja, construir um prédio e abarrotá-lo de livros. É necessária uma ação mais ampla, de criar um hábito de leitura pelo lazer, e não apenas pela obrigatoriedade de ler algo que a escola pediu. Em um projeto assim, o bibliotecário e o profissional da educação são importantes, pois eles vão se configurar como uma espécie de (ou “intermediar a relação entre o leitor ...”) ponte entre o leitor e o livro. Eles não podem ser passivos, apenas cadastrando o livro ou replicando opiniões alheias.
Hoje nós vemos algumas poucas ações na formação daqueles que chamamos de “agentes de leitura”, focando na capacitação dos bibliotecários, dos auxiliares de biblioteca, professores, ou seja, em todos os atores que contribuem para a criação do hábito de leitura. Tal capacitação é importante, pois a maior parte da população do país está na zona de baixo poder aquisitivo, em que comprar o livro é difícil, e as bibliotecas deveriam ser a saída natural para ter contato com as obras literárias.
Pré-Univesp: Como você vê o impacto da internet no hábito da leitura entre os mais jovens?
Flavia: Eu acho que não se pode pular etapas. Não é possível falarmos de ir direto para a leitura pelo computador. Todas as fases precisam ser vivenciadas. Hoje temos uma convivência entre o analógico e o digital, o que é bom para esses iniciantes na leitura. Concordo também que existe uma geração se iniciando no computador, mas o acesso ao ambiente digital está longe de ser realidade nacional. Novamente entramos na questão socioeconômica. Imagine, se temos pessoas que não compram nem o livro, existe toda uma população que não tem acesso ao computador e à internet. As pesquisas apontam o aumento das residências com computador, e um aumento de crédito também, mas nem todos têm a possibilidade de comprar um computador. A maioria da população mais carente tem acesso a ele por intermédio da escola ou de lan houses.
Pré-Univesp: A tecnologia exclui o público com menor poder aquisitivo?
Flavia: Temos uma população diversa, com tantas particularidades, que variam de região para região. O ideal é isto que estamos vendo: quem tem acesso ao livro digital, tem uma determinada opção. Outras pessoas podem preferir o livro impresso – por questão de custo, facilidade, costume etc. Então, ter várias plataformas convivendo é extremamente rico. E, voltando às bibliotecas, é preciso que elas se adaptem a esse tipo de variedade de plataformas também. O fato de que os públicos que podem compartilhar o mesmo ambiente é extremamente interessante, já que a biblioteca é um ponto de troca de informações entre as pessoas também.
Pré-Univesp: Qual deve ser o papel da escola, dos professores e das bibliotecas públicas nesse cenário?
Flavia: Temos de pensar na biblioteca como espaço público disponível para a sociedade e cujos funcionários são capacitados para ajudar. Isso porque os usuários de internet nem sempre sabem das potencialidades que taltecnologia traz. Não se trata de apenas acessar as redes sociais e softwares de comunicação, mas de ver uma forma de agregar valor a essa “navegação”, ou seja, ir até o computador, acessar a internet e sair com informação de lá, e não ser apenas um espectador passivo. É preciso mostrar as possibilidades de acessar o jornal, ou mesmo livros digitais, como é o caso dos livros disponíveis no Portal Domínio Público, que conta com diversas obras da literatura nacional.
Além disso, as universidades também estão disponibilizando os acervos das teses e dissertações na internet. O material online fica disponível ao cidadão, mas é preciso que exista uma figura para intermediar, capacitar o usuário para lidar com essa tecnologia. Não basta ter o computador; são necessários também profissionais que auxiliem os alunos e os usuários de bibliotecas a fazer um uso mais rico dos computadores. Mesmo entre os alunos universitários, é preciso fazer tal capacitação. Eles também são agentes multiplicadores do uso das tecnologias disponíveis.
Pré-Univesp: Os indivíduos em idade universitária muitas vezes deixam a leitura por prazer em função da necessidade de leitura técnica. Existe alguma preocupação para fazer com que esse público retome o hábito de ler livros?
Flavia: Baixar os capítulos dos livros que eles precisam para acompanhar as aulas não supre a formação desses indivíduos. É uma leitura fracionada, focada no resultado de que ele precisa no final do semestre. Em um ambiente universitário, deveria se expandir o conhecimento de um determinado tema nas diversas visões e de diversos autores. Para tanto , as bibliotecas precisam estar bem equipadas, com número suficiente de volumes para atender à demanda, e, mais do que isso, são necessárias ações que estimulem o aluno a voltar a ter o hábito da leitura como prazer. Isso porque ele veio de um processo, como o vestibular, no qual os livros são indicados apenas como material para fazer a prova. Eles acabam perdendo o prazer da leitura. É preciso trabalhar para inverter esse processo.
Pré-Univesp: Você participou da última Bienal Internacional do Livro (realizada em São Paulo de 12 a 22 de agosto), um dos principais eventos literários do país, representando a ABEU. Você percebeu alguma mudança no perfil do público e dos representantes das editoras?
Flavia: Foi possível notar um aumento da representatividade entre as editoras universitárias. Praticamente todos os estados brasileiros estavam representados. Tal dado é interessante de ser observado, pois mostra que a produção de livros não está mais centralizada em alguns estados, e que pode estar se iniciando um movimento em direção a novas regiões. Isso é extremamente positivo para a produção intelectual local, que passa a ter novos canais de distribuição.
No caso do público visitante, é interessante ver os eventos – seja a Bienal do Livro, seja a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) – como “festividades”. O livro é tão excepcional para algumas pessoas que elas se mobilizam para visitar e comprar. Do ponto de vista socioeconômico, é uma oportunidade também. As pessoas esperam encontrar preços mais convidativos, o que também contribui para a visitação. Além disso, ter contato com os autores, vê-los pessoalmente, também motiva bastante.
Pré-Univesp: Em sua opinião, qual o futuro do livro e da leitura?
Flavia: Tudo dependerá da continuidade dos trabalhos e políticas públicas instauradas até agora. Se isso não for prioridade, infelizmente o trabalho pode ser interrompido. O Ministério da Cultura e o Ministério da Educação precisam se aproximar cada vez mais. A educação, as bibliotecas, o hábito de leitura, a aquisição de livros, o treinamento de profissionais fazem parte do mesmo problema. Essas ações precisam ser conjuntas e em longo prazo. Um projeto deve prever uma projeção, em termos de tempo, e não apenas números de criação de bibliotecas, quantidade de livros disponíveis, ou vendagem das editoras. Para mudar tal cenário são necessários anos ; nada ocorrerá de forma imediata.
Fonte: Univesp