Catarina Homem Marques
De pequenino, torce-se o pepino e também se começa a gostar de livros. Basta que os pais leiam aos bebés – até receitas –, que a leitura se faça em família e que todos se deixem levar pelos livros.
Nem todas as histórias têm de ter um final feliz para serem bonitas,
nem sequer as histórias que se contam às crianças, mas o final feliz
para os pais que querem que os filhos leiam é que eles comecem mesmo a
gostar de livros. E isso, já que não é uma capacidade que nasça com as
crianças, é algo que se pode – e deve – trabalhar, como afirmam Pamela
Paul e Maria Russo, especialistas em literatura infanto-juvenil do New
York Times, num
artigo cheio de dicas para as famílias.
Não
é apenas um capricho – está mais do que comprovado que os livros
contribuem para o desenvolvimento das crianças, e que são também aliados
saudáveis para a vida adulta. É por isso que se contar um conto deve
mesmo acrescentar um ponto, e mais um ponto, e mais um ponto, até que a
leitura seja um elemento de proximidade familiar, uma atividade
enriquecedora para todos e, mais importante, um momento feliz.
Os bebés dormem, comem, choram… e gostam de livros
Há aquela imagem dos filmes em que uma mulher grávida embevecida põe
os auscultadores em cima da barriga para o filho começar logo a ouvir
música. E faz sentido. Os bebés reagem a estímulos sensoriais e esses
estímulos contribuem para o desenvolvimento das suas capacidades. O que
significa que – embora o bebé possa não mostrar grande entusiasmo quando
está a acontecer – também faz sentido que os pais leiam para os filhos
desde as primeiras fraldas.
“Como não se nasce leitor, é
necessário guiar e acompanhar a criança, ao longo do percurso, desde a
descoberta do pré-leitor até à sedimentação da leitura. O mergulho
progressivo nos livros constituirá, decerto, um desafio apetecível
porque as crianças são, por natureza, curiosas e a curiosidade é motor
das aprendizagens ao longo da vida”, explicam os responsáveis pelo Plano
Nacional de Leitura ao Observador.
“Em nenhum genoma humano está presente uma inclinação
para os livros. O que se sabe é que um leitor descobre-se quando acende o
seu fogo interior, que a escritor Laura Esquível comparou a uma caixa
de fósforos imaginária." Álvaro Magalhães, autor de livros infantis
Nesta primeira fase, as boas notícias é que os pais nem sequer têm de
ler histórias com sentido: podem ler o livro que já estavam a ler antes
sobre a II Guerra Mundial, um manual de instruções para alguma máquina
que estava a dar trabalho ou a receita de um bolo para o jantar. O
importante é o som da voz dos pais, a cadência típica da leitura e que
as palavras sejam dirigidas para o bebé.
“Em nenhum genoma humano
está presente uma inclinação para os livros. O que se sabe é que um
leitor – tal como um escritor, ou um artista em geral – descobre-se
quando acende o seu fogo interior, que a escritor Laura Esquível
comparou a uma caixa de fósforos imaginária. Segundo ela, cada um de nós
traz no interior essa caixa de fósforos e, para acendê-los, é
necessário um prato apetitoso, uma companhia agradável, uma canção, uma
carícia, uma palavra. Mas a chispa varia de pessoa para pessoa, e cada
um tem de descobrir os seus detonadores… a tempo, ou a caixa de fósforos
humedece e nunca poderá acender um único fósforo”, diz Álvaro
Magalhães,
autor de dezenas de livros para crianças que já foi integrado na lista de honra do prémio internacional Hans Christian Andersen.
Os
outros sentidos também podem ajudar nesta detonação. Mesmo que o bebé
interrompa a leitura para puxar as páginas ou comece a fazer sons em
resposta aos sons que está a ouvir, não faz mal. Este é o tipo de
leitura em que os pais têm de estar disponíveis para a interrupção. E
até há livros cheios de texturas que podem ajudar. Tal como ajuda ter
tempo e paciência.
“O ouro da literatura sempre foi o tempo, e é
cada vez mais isso. Por isso é que a nossa livraria é afastada de um
local de passagem. Se é para virem até aqui, é mesmo para escapar à
rotina. E se há uma obrigação que os pais têm, desde que os filhos são
muito pequenos, é de cuidar da curiosidade dos filhos, e a leitura faz
parte disso. Só que a leitura não se faz apenas sentado com um livro na
mão. Tecnicamente, temos de transformar a leitura num jogo que se
realiza em diferentes dimensões, que é um universo comum em que a
palavra abre espaço para dança, música, movimento e tudo o que
quisermos”, explica Mafalda Milhões, responsável pela livraria
Bichinho de Conto, em Óbidos, a primeira que abriu em Portugal dedicada apenas ao livro infanto-juvenil.
© Getty Images/iStockphoto
A leitura é para ocupar a casa toda. E a família.
Para criar um leitor é preciso ser um leitor. E isto não implica que o
serão da família tenha de incluir sempre um debate profundo sobre
literatura russa ou sobre poesia japonesa do século XIX. Acontece apenas
que, ao partilhar leituras com as crianças desde cedo, ao tornar-se uma
atividade que se faz em conjunto – o que acontece naturalmente quando
as crianças ainda não sabem ler sozinhas –, os livros começam a ficar
associados à voz dos pais e a um sentimento positivo de proximidade.
“Infelizmente, fala-se muito em leitura sem falar em comunicação. E
nisso a família tem um poder que não tem a escola, é a melhor incubadora
para um leitor, para abrir horizontes e fazer ligações”, diz Mafalda
Milhões.
Há pequenos truques para ir expandindo esta sensação e
para a prolongar nas diferentes fases de crescimento da criança: em vez
de ler para a criança só à noite, antes de deitar, é importante arranjar
tempo para ler em outras alturas do dia – e, milagre, isso vai fazer
também com que a criança abrande; transformar a leitura numa atividade
interessante para as duas partes – nem tem de ler sempre livros que
deteste, nem a criança tem de gostar das caretas que os pais fazem ao
ler e pode interromper a qualquer momento; não fazer da leitura uma
obrigação ou um castigo, mas sim um momento de brincadeira e alegria;
ter livros espalhados pela casa, em vários sítios, que possam a qualquer
momento transformar-se num ponto de interesse e num fator de distração;
ir associando os livros e a leitura independente a um ato de maturidade
– também dando o exemplo – sem provocar uma quebra abrupta na
possibilidade de se continuar a fazer a leitura em conjunto.
“Há
quem leia porque aos dez anos teve uma pneumonia e para matar as horas
de aborrecimento não lhe ocorreu melhor coisa do que ler Stevenson. Até
hoje. O curioso é que todas as pessoas, sejam ou não leitoras, podem
falar da sua genealogia como leitores ou não-leitores, sempre com
referência a uma contingência ou um mero acaso. Ou seja, o ato de ler
não nasceu quase nunca de um ato puro de vontade ou da falta dessa
vontade. Foi sempre a resposta a uma situação. Convém então repeti-lo:
chega-se à leitura graças a um golpe de dados, quer dizer, a encontros e
desencontros ocasionais”, explica Álvaro Magalhães.
Truques para incentivar a leitura nos mais novos
- Ler em diferentes alturas do dia, para além da hora de deitar;
- Transformar a leitura numa atividade interessante para as duas partes;
- Não fazer da leitura uma obrigação ou um castigo, mas sim um momento de brincadeira e alegria;
- Ter livros espalhados pela casa.
E se os pais não são leitores, porque perderam o interesse pelos
livros ou porque nunca encontraram esse golpe de dados, podem ser as
crianças a servir de inspiração. “Há algumas famílias que não sabem
mesmo fazer isto, mas podem aproveitar para seguir as crianças. Os pais
têm de ter coragem para essa predisposição, para aprender isso com os
filhos”, diz Mafalda Milhões. Uma ideia que Álvaro Magalhães completa:
“No meu livro O Brincador há uma epígrafe que é todo um
programa de vida, dois versos de Carlos Queiroz: ‘Menino que brincas no
jardim / Tu sim, podias ser um Mestre de mim.’ Eles afirmam a minha fé
numa inteligência infantil ainda não contaminada nem corrompida pelo
mundo. Um dia perguntaram a Stanislavsky como se fazia teatro para
crianças e ele respondeu: ‘Como se faz teatro para adultos, mas melhor’.
É o que tento fazer, pois, tal como a concebo, a literatura para os
mais novos é uma arte maior. Para comunicar com eles é preciso
elevarmo-nos, e não o contrário – traduzirmo-nos, imbecilizarmo-nos,
infantilizarmo-nos, que é o que mais se faz, infelizmente.”
Os livros também fazem coisas
Os livros fazem coisas. E não são só aqueles livros que têm pássaros
que saltam em formato pop up, que emitem sons ou que servem, numa pilha,
para levantar o monitor de um computador. Os livros são histórias, e
são imagens, e levantam questões que se podem associar depois a outras
actividades. “Se a criança gostou muito de um livro sobre animais, se
calhar era divertido a seguir irem todos ao Jardim Zoológico com o
livro”, exemplifica Mafalda Milhões.
Além disso, os livros são
também uma desculpa para ir à livraria do bairro, ou para entrar numa
biblioteca. Há cada vez mais atividades que se podem encontrar em
diferentes livrarias: desde oficinas de ilustração, como aquelas que
acontecem regularmente na
It’s a Book, em Lisboa, a atividades pelo bairro ou oficinas de leitura entre avós e netos, como são comuns na
Baobá,
em Campo de Ourique, passando pela simples possibilidade de andar de
baloiço ou ouvir uma história no grande quintal da Bichinho de Conto. É
importante que a família fique atenta à agenda das livrarias nas
proximidades ou tire um tempo para ir a uma que fique mais distante.
Na Bichinho de Conto, por exemplo, Mafalda Milhões sente que muitas
vezes o espaço se transforma “no quintal da avó que muitas crianças já
não têm isso”. “As crianças vêm aqui para ler, mas também para andar de
baloiço, para brincar com as cabras, e isso tem tudo de literatura, não
tem? Isto antes era só uma sensação que eu tinha, mas agora já é
conhecimento técnico ao fim de muitos anos de trabalho: na leitura, o
mais importante é a relação. Nós conhecemos os nossos leitores desde
pequenos e agora vejo-os na faculdade e continuamos a fazer parte da
vida uns dos outros.” É essa a relação que se pode criar com um
livreiro, que pode ser importante a ajudar na escolha dos livros, e que
se pode integrar nesta relação que se tem – ou não – com os livros.
“O
PNL e outros programas institucionais da leitura só se preocupam com
números e estatísticas. Do que precisamos é de leitores que contagiem
leitores e sejam capazes de transmitir a sua paixão. Pequenas
comunidades, círculos de leitura, clubes de leitores – que estão agora
mais ativos com as redes sociais –, pessoas que partilhem e propaguem a
sua paixão e a sua felicidade. Só quem verdadeiramente sente esse prazer
e essa paixão a pode comunicar aos outros”, diz Álvaro Magalhães.
Outra
coisa que os livros podem fazer é transformar-se numa prenda divertida
para dar aos amigos que fazem anos, uma prenda que se pode escolher em
família e que depois se pode aproveitar em conjunto com o
aniversariante. E podem também ser uma coleção: as crianças gostam
naturalmente de colecionar, e vão adorar ter uma prateleira ou uma
estante só delas para irem arrumando os seus livros.
Quem tem medo dos livros maus?
Quem tem filhos pequenos e não tem uma música como “Despacito” em
grande conta artística, já teve de morder a língua algumas vezes por ver
como a criança dança ao ritmo do refrão e até já sabe alguns dos
versos. Com os livros é um bocado a mesma coisa: se eles gostam de
histórias com carrinhas que falam ou estão mais interessados em
bandas-desenhadas da Marvel, não faz mal. Que atire a primeira pedra
quem não começou com a Turma da Mônica antes de chegar a um Crime e Castigo.
Isto
não significa que os pais não devem ir abrindo caminho para leituras
diferentes, mostrando outras coisas, e que não devam – devem mesmo –
gostar dos livros que estão a ler com os filhos ou a comprar para os
filhos, mas também não devem ignorar ou diminuir os gostos da criança. E
não devem ficar magoados se os filhos não mostrarem grande interesse
por aquele clássico da literatura infantil que mudou a sua vida. Não é
nada de pessoal.
“Não se conhece até à data que um livro da
Patrulha Pata tenha feito mal a alguma criança. O que faz mal é se só
houver isso. Claro que há narrativas mais inteligentes, mas é tudo uma
questão de gramática de afetos. Pode ser um livro da Anita ou da Marvel,
são livros que já formaram muitos leitores. O que é mesmo um erro é uma
criança ler só livros e depois não ler as placas da cidade, não ler o
que está no chão, não ler o que está no ar. A leitura tem é de estar em
todo o lado e existir para muscular aquilo que é a nossa identidade”,
acredita Mafalda Milhões.
Além disso, cada leitor é um leitor – caso contrário, todos os adultos tinham de adorar apenas o Ulisses ou Em Busca do Tempo Perdido.
Com as crianças é igual. Algumas vão gostar mais de manga, outras vão
preferir novelas gráficas, e há outras que só se vão interessar por
não-ficção, ou seja, por aqueles livros sobre curiosidades científicas. E
o que é bom é que é possível encontrar livros bons dentro de todos os
géneros, e que normalmente essas fases evoluem para outras. Além de
haver cada vez mais opções para garantir que se expõe as crianças à
diversidade, e não apenas às histórias que confirmam aquilo que ela já
sabe.
De acordo com o Plano Nacional de Leitura, esse é um dos
trabalhos que cabe a um organismo estatal na altura de sugerir livros às
escolas: “A sugestão de leituras do PNL assenta na ideia de que, sendo
os gostos dos leitores, por natureza, muito díspares, a variedade de
oferta tem de ser garantida. A diversidade permite orientar as escolhas e
pautá-las por um grau progressivo de exigência. O PNL está consciente
de que o mais importante e desejável é Ler+ e melhor, com competência e
fluência, de todas as maneiras, em todos os suportes, tirando o máximo
partido dessas leituras.”
Seja como for que se faz a lista, ou
como se reúnem as sugestões de leitura, o importante é começar a virar
as páginas. O resto vai acontecendo e vai seguindo para outros caminhos,
como em qualquer boa história.