Concepções de língua e de escrita mudam o modo como se entenderão os conteúdos que não estão explícitos num texto
Ingedore G. Villaça Koch
A VISÃO CLÁSSICA A depender da concepção de língua, muda o modo como lemos. A visão clássica vê o leitor como um ser passivo. O texto seria a representação do pensamento de um sujeito dono de sua vontade e de suas ações. Caberia ao leitor apenas "captar" a maneira como essa vontade foi mentalizada
Para discutir a leitura e a produção textual, partimos do pressuposto de que o texto é lugar de interação entre sujeitos sociais, os quais, dialogicamente, nele se constituem e são constituídos; e que, por meio de ações lingüísticas e sociocognitivas, constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes oferece. A esta concepção subjaz a idéia de que há, em todo texto, uma grande gama de implícitos, os mais variados, só detectáveis pela mobilização do contexto sociocognitivo no interior do qual se movem os atores sociais.
A leitura de um texto exige mais que o simples conhecimento lingüístico compartilhado pelos interlocutores: o leitor é, necessariamente, levado a mobilizar estratégias tanto de ordem lingüística, como cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas, preencher as lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da construção do sentido. Desta forma, autor e leitor devem ser vistos como 'estrategistas' na interação pela linguagem.
Há diversas concepções de leituraw que variam, naturalmente, de acordo com a concepção de sujeito, de língua, de texto e de sentido que se adote, e que exigem diferentes estratégias de ensino.
À concepção clássica de língua como representação do pensamento corresponde a de sujeito psicológico, individual, dono de sua vontade e de suas ações, que constrói uma representação mental e deseja que esta seja "captada" pelo interlocutor da maneira como foi mentalizada: o leitor exerceria, assim, um papel totalmente passivo. A leitura, aqui, é entendida como a atividade de captação das idéias do autor, sem que se levem em conta as experiências e os conhecimentos do leitor, a interação autor-texto-leitor com propósitos constituídos socio-cognitivo-interacionalmente. Daí as perguntas que freqüentemente se fazem em sala de aula: Foi isso mesmo que o autor quis dizer? Será que o autor realmente pensou nisso?
Dialogismo da língua
Por sua vez, à concepção de língua como estrutura corresponde à de um sujeito determinado pelo sistema. É a concepção de língua como código, isto é, o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a ser descodificado pelo leitor / ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do código utilizado: a leitura é vista como uma atividade que exige do leitor unicamente a atenção na linearidade do texto, uma vez que "tudo está dito no dito". Se, na concepção anterior, ao leitor cabia o reconhecimento das intenções do autor, nesta concepção, cabe-lhe somente o reconhecimento do sentido das palavras e estruturas que o texto contém. Em ambas, porém, o leitor é caracterizado como passivo, por realizar uma atividade de reconhecimento, de reprodução.
Diferentemente das anteriores, na concepção interacional (dialógica) da língua consideram-se os sujeitos como atores / construtores sociais, sujeitos ativos que - dialogicamente - constroem-se e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da interação e da constituição dos sujeitos da linguagem. Desse modo, há lugar, em todo texto, para uma enorme gama de implícitos, dos mais variados tipos, só detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação.
Nessa ótica, o sentido do texto é construído na interação texto-sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, atividade interativa complexa de produção de sentidos, que se realiza com base nos elementos lingüísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a mobilização de vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Ou seja:
a) a leitura é uma atividade na qual se levam em conta as experiências e os conhecimentos do leitor;
b) a leitura exige do leitor bem mais do que o conhecimento do código lingüístico, uma vez que o texto não é somente o produto da codificação de um emissor a ser decodificado por um receptor passivo.
É esta a concepção sócio-cognitivo-interacional de língua que privilegia os sujeitos e seus conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de interação é o texto, cujo sentido "não está lá", mas é construído, considerando-se, para tanto, as "sinalizações" ou pistas textuais fornecidas pelo autor e os conhecimentos do leitor que, durante todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude "responsiva ativa" (Bakhtin, 1992:290). Em outras palavras, espera-se que o leitor concorde ou não com as idéias do autor, complete-as, adapte-as, etc., uma vez que "toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente, a produz" (Bakhtin, 1992:290).
O LEITOR INTERATIVO A leitura é vista como atividade em que pesam as experiências e os conhecimentos do leitor; e exige dele mais do que o conhecimento do código. Cada leitor lerá o texto a seu modo. O sentido "não está lá", é construído por "sinalizações" textuais fornecidas pelo autor e pelos saberes prévios de quem lê. O texto é lugar de interação e constituição dos sujeitos da linguagem.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (ver quadro abaixo), de 1998, encontra-se reforçado, na atividade de leitura, o papel do leitor enquanto um construtor de sentido, que se utiliza, para tanto, de uma série de estratégias, entre as quais a seleção, antecipação, inferência e verificação.
A antecipação consiste em levantar hipóteses sobre o conteúdo do texto, que, na leitura, vão sendo submetidas à verificação. Para tanto, o leitor seleciona pistas - elementos lingüísticos do texto que autorizem sua leitura - e produz inferências que lhe permitem preencher as lacunas do texto ou desfazer ambigüidades, com base em seu conhecimento de mundo.
Espera-se que o leitor processe, critique, contradiga ou avalie a informação que tem diante de si, que a aceite ou a conteste, procure construir um sentido para o que lê e seja capaz de justificar a leitura feita. Em outras palavras, ele age estrategicamente, o que lhe permite dirigir e auto-regular seu processo de leitura.
É claro que não devemos nos esquecer de que a constante interação entre o texto e o leitor é regulada também pelo propósito com que o texto é lido. De modo geral, podemos dizer que há textos que lemos para nos manter informados (jornais, revistas); outros que lemos para realizar trabalhos acadêmicos (dissertações, teses, livros, periódicos científicos); outros, ainda, cuja leitura é por puro deleite (poemas, contos, romances); os que lemos para consulta (dicionários, catálogos), os que somos "obrigados" a ler de vez em quando (manuais, bulas), os que nos caem em mãos (panfletos) ou que nos são constantemente apresentados (outdoors, cartazes, faixas). São, pois, os objetivos do leitor que nortearão o modo de leitura, em mais tempo ou em menos tempo, com mais atenção ou com menos atenção, com maior engajamento ou com menor engajamento, enfim.
Se, portanto, a leitura é uma atividade baseada na interação autor-texto-leitor, nesse processo faz-se necessário ter em conta a materialidade lingüística do texto, elemento sobre o qual e a partir do qual se constitui a interação; e, por outro lado, é preciso levar em conta o autor e os conhecimentos do leitor, condição para o estabelecimento de interação com maior ou menor intensidade, durabilidade, qualidade. É por essa razão que falamos de um sentido para o texto, não do sentido do texto, e justificamos essa posição, visto que, na atividade de leitura, é preciso ativar, além dos conhecimentos textuais, muitos outros saberes como conhecimento de mundo, lugar social, vivências, relações com o outro, valores da comunidade.
Assim, o sentido que se constrói a partir de um texto pode variar conforme o modo como o texto foi constituído, do que foi explicitamente revelado e implicitamente sugerido; por outro lado, na dependência da ativação, por parte do leitor, de conhecimentos de natureza vária e de sua atitude perante o texto.
Pluralidade
Desse modo, considerar o leitor e seus conhecimentos e que esses saberes são diferentes de um leitor para outro implica aceitar uma pluralidade de leituras e de sentidos em relação a um mesmo texto.
Com isso não preconizamos que o leitor possa ler qualquer coisa com base em um texto, pois o sentido não está só no leitor, nem no texto, mas na interação autor-texto-leitor. Por isso, é de fundamental importância que o leitor considere, na e para a produção de sentido, as "sinalizações" que o texto lhe oferece, além de ativar os conhecimentos que possui.
Nos quadros apresentados ao longo destas páginas é possível verificar que o uso da linguagem, quer em termos de produção, quer de recepção, repousa visceralmente na interação produtor- texto-ouvinte/leitor. Assim, todo o conjunto de fatores aqui discutidos vai ser responsável pela construção de sentidos, tanto em termos de leitura, quanto em termos de produção.
O que afeta a compreensão da leitura
Há fatores relativos ao autor/leitor, por um lado, ou ao texto, por outro, que podem interferir no processo de compreensão da leitura, de modo a dificultá-lo ou facilitá-lo
O leitor modelo
Os fatores relacionados ao autor / leitor referem-se ao conhecimento dos elementos lingüísticos (certas expressões pouco usuais, léxico antigo etc.), esquemas cognitivos, bagagem sociocultural, circunstâncias em que o texto foi produzido.
Isto é, os conhecimentos selecionados pelo autor na e para a constituição do texto "criam" um leitor-modelo: um texto, pela forma como é constituído, pode exigir mais ou menos conhecimento prévio de seus leitores. Isto é, um texto não se destina a todo e a qualquer leitor, mas pressupõe um determinado tipo de leitor e exclui outros.
Em nosso dia-a-dia, deparamo-nos com inúmeros textos veiculados em meios diversos (jornais, revistas, rádio, TV, internet, cinema, teatro) cuja produção é "orientada" para um determinado tipo de leitor (um público específico), o que, aliás, vem evidenciar o princípio interacional constitutivo não apenas do texto, como do próprio uso da língua.
Fatores relativos ao texto
Os fatores da compreensão de leitura ligados ao texto dizem respeito à sua legibilidade. Dentre os aspectos materiais que podem comprometer a legibilidade, costumam-se mencionar o tamanho e a clareza das letras, a cor e a textura do papel, o comprimento das linhas, a fonte empregada, a variedade tipográfica, a constituição de parágrafos excessivamente longos, entre vários outros.
Além dos fatores materiais, há fatores lingüísticos que podem dificultar a compreensão, tais como: a seleção lexical; estruturas sintáticas muito complexas, caracterizadas pela abundância de elementos subordinados; orações supersimplificadas, marcadas pela total ausência de nexos para indicar relações de causa/efeito, espaciais, temporais; ausência de sinais de pontuação etc. Uma bula, por exemplo, é conhecida como um texto de difícil leitura por seus aspectos materiais, língüísticos e de conteúdo, a tal ponto que já existe em andamento uma proposta oficial para resolver esse problema.
O texto "age" depois de criado
Diferenças entre o contexto de produção e de uso também definem a leitura
Depois de escrito, todo texto ganha uma existência independente de seu autor.
Entre a produção do escrito e a sua leitura, pode passar-se muito tempo, de modo que as circunstâncias da escrita (o contexto de produção) podem ser absolutamente diferentes das circunstâncias de sua leitura (o contexto de uso), fato esse que interfere na produção de sentido.
O mesmo acontece quando o texto vem a ser lido num lugar muito distante daquele em que foi escrito ou quando ele foi reescrito de muitas formas, mudando consideravelmente o modo de constituição da escrita, com o objetivo de atingir diferentes tipos de leitor.
Como um leitor participa do texto
O processo de leitura implica a inserção de obra em modelos de pensamento
A leitura é uma atividade que solicita intensa participação do leitor, pois, se o autor apresenta um texto lacunoso ou incompleto, por pressupor a inserção do que foi dito em esquemas cognitivos compartilhados, é preciso que o leitor o complete, produzindo uma série de inferências.
Assim, no processo de leitura, o leitor aplica ao texto um modelo cognitivo (frame ou esquema), baseado em conhecimentos que tem representados na memória social. A hipótese inicial pode, no decorrer da leitura, confirmar-se e se fazer mais precisa; ou pode exigir alterações e, por vezes, até mesmo, a completa reformulação da hipótese inicialmente levantada.
Essa é uma evidência de que o autor pressupõe a participação do leitor na construção do sentido, considerando a (re)orientação que lhe é dada. Nesse processo, ressalta-se que a compreensão não requer que os conhecimentos do texto e os do leitor coincidam, mas que possam interagir dinamicamente (Alliende & Condemarín, 2002: 126-7).
A discussão em sala de aula
Turmas de português podem ser laboratório para os diferentes sentidos atribuídos ao mesmo texto
Sobre a produção do sentido, defendem os Parâmetros Curriculares Nacionais que o trabalho de análise epilingüística em sala de aula é importante por possibilitar a discussão sobre os diferentes sentidos atribuídos aos textos e sobre os elementos discursivos que validam ou não essas atribuições, propiciando, inclusive, a construção de um repertório de recursos lingüísticos a ser utilizado quando da produção textual.
A Lingüística Textual vem trazendo ao professor subsídios indispensáveis para a realização das atividades acima sugeridas, visto que ela tem por objeto o estudo dos recursos lingüísticos e condições discursivas que presidem à construção da textualidade e, em decorrência, à produção textual dos sentidos. Tudo isso vai significar, inclusive, uma revitalização do estudo da gramática: não mais, é claro, como um fim em si mesma, mas com o objetivo de evidenciar de que modo o trabalho de seleção e combinação dos elementos lingüísticos nos textos que lemos ou produzimos, dentro das variadas possibilidades que a gramática da língua nos põe à disposição, constitui um conjunto de decisões que vão servir de orientação na busca pelo sentido.
A importância do contexto
Construção do sentido de um texto só se estabelece com o entendimento da situação de interação em que a mensagem é lida
O recurso ao contexto é indispensável para a produção e compreensão e, deste modo, para a construção do sentido. O contexto engloba não só o co-texto, como a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolítico cultural), o contexto acional e, portanto, o contexto sociocognitivo dos interlocutores. Este último, na verdade, subsume os demais. Ele reúne todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória dos actantes sociais, que necessitam ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal: o conhecimento lingüístico propriamente dito, o conhecimento enciclopédico, o conhecimento da situação comunicativa e de suas "regras" (situacionalidade), o conhecimento superestrutural ou tipológico (gêneros e tipos textuais), o conhecimento estilístico (registros, variedades de língua e sua adequação às situações comunicativas), bem como o conhecimento de outros textos que permeiam nossa cultura (intertextualidade).
Nesta acepção, portanto, o contexto é considerado constitutivo da própria interação pela linguagem. É neste sentido que se pode dizer que certos enunciados são gramaticalmente ambíguos, mas o discurso se encarrega de fornecer condições para uma interpretação unívoca. Admite-se, pois, que:
1. o contexto desambigüiza;
2. o contexto completa, visto que permite preencher as lacunas do texto,
pelo acionamento de inferências-ponte;
3. o contexto modifica, isto é, os fatores contextuais podem alterar o que se diz,
como, por exemplo, no caso da ironia;
4. o contexto justifica, isto é, os fatores contextuais se incluem entre
aqueles que explicam por que se disse isso e não aquilo.
É por isto que o sentido de um texto, qualquer que seja a situação comunicativa, não depende tão-somente da estrutura textual em si mesma (daí a metáfora do texto como um "iceberg").
Como vimos, o produtor do texto pressupõe da parte do leitor/ouvinte conhecimentos textuais, situacionais, culturais e enciclopédicos e, por isso, não explicita as informações consideradas redundantes. Ou seja, visto que não existem textos totalmente explícitos, o produtor de um texto necessita proceder ao "balanceamento" do que necessita ser explicitado textualmente e do que pode permanecer implícito, por ser recuperável via inferenciação. Na verdade, é este o grande segredo do locutor competente. O leitor/ouvinte, por sua vez, espera sempre um texto dotado de sentido e procura, a partir da informação nele encontrada, construir uma representação coerente, por meio da ativação de seu conhecimento de mundo e/ou de deduções que o levam a estabelecer relações de causalidade, temporalidade etc. Para tanto, ele põe em funcionamento todos os componentes e estratégias cognitivas que tem à disposição para dar ao texto uma interpretação adequada.
Critérios de leitura
A interação autor-texto-leitor segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais
"A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto, a partir dos seus objetivos, do conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a língua: características do gênero, do portador, do sistema de escrita etc. Não se trata simplesmente de 'extrair informação da escrita' decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão. Qualquer leitor experiente que conseguir analisar sua própria leitura constatará que a decodificação é apenas um dos procedimentos que utiliza quando lê: a leitura fluente envolve uma série de outras estratégias como seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível rapidez e proficiência. É o uso de procedimentos desse tipo que permite controlar o que vai sendo lido, tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, arriscar-se diante do desconhecido, buscar no texto a comprovação das suposições feitas etc."
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Confira
Ingedore G. Villaça Koch e Vanda M. da Silva Elias. Ler e Compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
Felipe Alliende e Mabel Condemarín. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Porto Alegre: Artmed, 2005.
Mikhail Bakhtin. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992[1953]
Brasil. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.