[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

[2688.] PAULO MARQUES DA SILVA || A PIDE - CASOS E PROCESSOS

 * PAULO MARQUES DA SILVA *

A PIDE - CASOS E PROCESSOS

Palimage || Dezembro de 2021 

Após mais de década e meia de pesquisas dedicadas a esta temática, acaba de ser publicado outro relevante livro do Historiador Paulo Marques da Silva sobre a PIDE/DGS, reunindo trinta histórias.

Histórias que são casos concretos, vividos e muito diversos, que procuram, também, mostrar (e demonstrar) a acção da PIDE/DGS: a violação de correspondência; a acção dos informadores; as vigilâncias de rua, de residências e de reuniões; as vigilâncias a professores universitários, entre outros exemplos. 

Fala-se, também, no decorrer das várias crónicas apresentadas, de denúncias, de casos de retaliações do Governo sobre cidadãos nacionais, das mulheres da oposição, do Processo dos 108, das Juntas de Acção Patriótica ou do Movimento Associativo Estudantil, histórias que permitem uma visão geral sobre o modus operandi da PIDE/DGS.

Todas as histórias / textos são baseadas em documentos escritos, constantes nos arquivos da PIDE/DGS, patentes na Torre do Tombo.

Investigação rigorosa, na senda de outras edições de Paulo Marques da Silva, brevemente será feita a apresentação pública do livro.

terça-feira, 13 de abril de 2021

[2569.] AS EXPRESSÕES DO INFORMADOR INÁCIO || TEXTO DE PAULO MARQUES DA SILVA [IV]

 * AS EXPRESSÕES DO INFORMADOR INÁCIO *

Texto || Paulo Marques da Silva

«As expressões do informador Inácio

     Inácio não hesitava nos seus relatórios em diminuir, depreciar ou desprezar os elementos ligados à oposição, especialmente os de mais baixa condição social, manifestando um forte sentimento de repulsa, visível nos comentários pejorativos, e até ofensivos, que vertia para os mesmos relatórios. Expressões como “ralé”, “escumalha”, “camarilha”, “vadios”, “gente reles e ordinária”, que “vomitavam o seu ódio”, que “expeliam veneno”, “cheios de raiva”, entre outras, são relativamente comuns. O que é interessante verificar é que a aversão por estas pessoas toma tais proporções, que ele desenvolve também diversas críticas aos diferentes representantes da autoridade, quando entende que estes actuam com demasiada permissividade em relação aos primeiros. E, assim, podemos encontrar nos relatórios de Inácio criticas à PSP, à GNR, ao Governador Civil, ao Reitor da Universidade, à União Nacional, entre outros. E, muitas vezes, ao criticar algum laxismo das forças locais ligadas ao regime, o informador, na tentativa de incutir ênfase a essa mesma crítica e procurar demonstrar o grande contraste que existia em relação aos adversários da situação, acaba por enaltecer o trabalho da organização da oposição, o que não deixa de ser paradoxal.
     Já fiz algumas destas referências no meu trabalho sobre este informador quando, por exemplo, em 1948, nas vésperas das eleições presidenciais, Inácio criticava a má organização e o débil trabalho da União Nacional no distrito de Coimbra, em comparação com a oposição, ao afirmar que os “mudistas e comunistas” eram “muito mais trabalhadores” e “ardentes na luta”, asseverando mesmo que nada os detinha. Já os nacionalistas da U.N. demonstravam “um comodismo pasmoso” e que não estavam “para se incomodar”. 
     Em outra ocasião, a propósito das comemorações do 31 de Janeiro, em Coimbra, no ano de 1946, e devido a alguns incidentes ocorridos, houve necessidade da intervenção da PSP e da GNR, mas, segundo Inácio, fora uma intervenção “bem fraca”, concluindo que, pelo facto de não terem sido efectuadas prisões, “os homens do MUD e os comunistas” apregoavam que tal não tinha acontecido em virtude da “fraqueza do Governo”, que se via “num beco sem saída” e até “sem prestígio”.
     Vejamos agora um outro exemplo visando, desta vez, a preocupação do informador quanto ao crescimento da influência da oposição em Coimbra. Num relatório, datado de Março de 1947, referente a um almoço de homenagem ao professor Paulo Quintela, realizado no Hotel Avenida, devido a este ter obtido o grau de Doutor, e que contou com a presença dos “comunistas” Carlos de Oliveira, Almeida e Costa, Salgado Zenha, Fernando Valle, Adolfo Rocha, Manuel Deniz Jacinto, António Sousa, João Farinha, António Soares, José Teixeira Vale, Guilherme de Oliveira, Manuel Melo, Joaquim Namorado e António Ferrer, assistindo ainda os “mudistas” Manuel Leite da Silva, Anselmo Ferraz de Carvalho, Eduardo Correia e Frederico de Moura, Inácio potenciava a dinâmica e o desenvolvimento da oposição em Coimbra e afirmava que estes elementos tinham feito ao “camarada” Paulo Quintela o que nunca se fizera naquela cidade em qualquer doutoramento, rematando:


     Venho afirmar que basta só a cidade de Coimbra para bolchevizar o país inteiro. As liberdades comunistas nesta cidade estão a tomar foros de uma capital importância e com um alastramento fantástico.
 
     Uma outra situação bastante interessante (e porque não dizer, algo cómica) prende-se com alguns casos em que os representantes locais do regime se deixavam “enredar” em algumas manobras da oposição, como referia Inácio.
     O cenário é um jantar de homenagem ao jornalista do Século, Sertório Fragoso, em Coimbra, realizado em Junho de 1968, onde estiveram presentes Presidentes de Câmara, alguns Deputados e o Governador Civil substituto, Dr. Carlos Costa, bem como muitos elementos da oposição ao regime, incluindo o próprio jornalista, segundo Inácio, que como tal sempre assim o rotulara. Quando os discursos ao homenageado se iniciaram, também por parte de vários oposicionistas bem conhecidos, como Alfredo Fernandes Martins ou Rui Clímaco, relevando nas suas palavras a inteireza de carácter do jornalista, e que este se mantivera “sempre fiel ao seu pensar”, sendo então entusiasticamente aplaudidos, ou “estrondosamente aplaudidos”, como referia o informador, rapidamente o ambiente se tornava «obscuro» para os nacionalistas presentes. Inácio sintetizava assim o discurso de Rui Clímaco:

 
     Quando este comunista falava, o Governador Civil não olhava, de cabeça baixa e apoiada a uma das mãos, parecia desmoralizado.

     E concluía:

     Foi uma verdadeira parada de elementos da oposição e comunistas em grande regozijo e apoiados pelos homens que se dizem do Estado Novo.
     […] Verifiquei que mais uma vez os elementos do Estado Novo, se é que os havia, fizeram figura ridícula ao aplaudir os seus adversários
 
[Documento do arquivo da PIDE/DGS, processo Del. C. n.º 1826, de Francisco Brito Amaral].

[Paulo Marques da Silva]

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

[2513.] A VISITA A COIMBRA DOS CANDIDATOS ÀS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1958 || TEXTO DE PAULO MARQUES DA SILVA [III]

 * A VISITA A COIMBRA DOS CANDIDATOS PRESIDENCIAIS DE 1958 *

Texto || Paulo Marques da Silva

«A visita a Coimbra dos candidatos às eleições presidenciais de 1958

     As eleições presidenciais de 8 de Junho de 1958 geraram um grande entusiasmo em torno da campanha do general Humberto Delgado. Após a desistência de Arlindo Vicente a favor de Delgado, em 30 de Maio de 1958, conhecido como o “Pacto de Cacilhas”, e lançado o mote da campanha na conferência de imprensa no café Chave D`Ouro, em Lisboa, no dia 10 de Maio, com a frase “Obviamente demito-o”, referindo-se a Salazar, seguiu-se uma vasta movimentação popular, criando-se uma forte dinâmica de unidade na oposição, como se viu na grande manifestação ocorrida na deslocação do general à cidade do Porto, quatro dias após aquela frase mítica. Começaram, então, as intimidações e a repressão do regime, visível nos casos da proibição da deslocação a Braga do general Humberto Delgado ou nos incidentes na estação de Santa Apolónia, em Lisboa, a 16 de Maio, na chegada do candidato à capital, com a polícia a carregar sobre a população que ali se juntara.

    O entusiasmo existente em torno da candidatura de Humberto Delgado era evidente no país, e o povo ganhou alento e esperança para vir para a rua receber o general, por onde este passava durante a campanha.

   Vejamos um relato das passagens por Coimbra dos dois candidatos, Humberto Delgado e Arlindo Vicente, antes da desistência deste último. Mas não é a descrição da imprensa, do historiador, ou do cidadão comum que testemunhou os factos. É a visão do informador Inácio, muito provavelmente, o maior informador de Coimbra. É através dos seus relatórios sobre estas passagens por Coimbra e dos pormenores recolhidos nas suas informações, que vamos deixar o leitor tentar perceber as diferenças existentes na recepção aos candidatos presidenciais.
 


Informação de Inácio de 28-5-1958
 
Dr. ARLINDO VICENTE
 
     A sua chegada a esta cidade não teve coisa alguma de especial.
   Na estação velha era aguardado por 4 membros da sua Comissão chefiados pelo Dr. ALBERTO VILAÇA, três jornalistas, e um simples estudante, rapaz ainda novo. Havia mais alguns indivíduos mas como simples espectadores.
     No muro que veda a estrada em frente da estação, estavam cerca de 50 operários, por ser a hora de saída do seu emprego, o Dr. ARLINDO VICENTE fez-lhes saudação com as mãos, mas não obteve qualquer resposta.
     A sessão realizada no Teatro Avenida teve realmente muita assistência, notando-se que a sua maioria era constituída por caixeiros, operários e empregados – muita gente – (digo), ralé.
     Na estrada de Eiras, Casal do Ferrão e Relvinha, viu-se muita gente, mas da pior condição.
     O automóvel Volkswagen MI-17-49 guiado por pessoa desconhecida em Coimbra, veio duas vezes ao Teatro Avenida trazer indivíduos, tipo trabalhadores ou operários. Esta gente era de fora.
     A mesa da sessão era assim constituída:
 
     Eng.º MEM VERDIAL
     HENRIQUE BARRETO
     JOÃO PIMENTEL DAS NEVES
     EVA AMADO
     MANUEL FIUZA PIMENTEL
     MANUEL RAMALHO GANTES
    Dr. ALFREDO GOMES, da Comissão do General Humberto Delgado que representou a Comissão de Coimbra.
 
     ORADORES
 
     Dr. ALBERTO VILAÇA
     MANUEL LOUZÃ HENRIQUES
     AUGUSTO CÉSAR ANJO
     MÁRIO SILAS CERQUEIRA
     MÁRIO SACRAMENTO
     Eng.º MEM VERDIAL
     Fechou a série de discursos o candidato ARLINDO.
 
    Todos os discursos foram muito inflamados, destacando-se os dos seguintes oradores:
 
     Eng.º MEM VERDIAL
     Dr. AUGUSTO CÉSAR
     Dr. ALBERTO VILAÇA
     MANUEL LOUZÃ HENRIQUES
 
     Estava prevista a vinda de MARIA ISABEL ABOIM INGLÊS para discursar, mas não apareceu.
     Houve certa decepção por esta ausência.
   No palco encontravam-se vários indivíduos, para além da mesa constituída.
     A Dr.ª MADALENA ALMEIDA parecia chefiar um grupo desta gente.
    O candidato retirou hoje para Lisboa no comboio foguete da manhã, nada tendo havido de especial.
  Era apenas acompanhado pelo Dr. ALBERTO VILAÇA, que também seguiu viagem no mesmo comboio para a capital onde vai discursar.

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Informação de Inácio de 1-6-1958

 
GENERAL HUMBERTO DELGADO EM COIMBRA
 
     Para o Hotel Astória onde se foi hospedar entraram para receber o General, não só a Comissão de Coimbra (já conhecida) como também as seguintes personagens:
 
a) Da Comissão do ARLINDO: - Dr.ª MADALENA ALMEIDA, EVA AMADO, MANUEL LOUZÃ HENRIQUES.
b) Dr. MÁRIO SILVA E FERREIRA DA COSTA.
c) Dr. ANTÓNIO CONTENTE RIBEIRO e RAÚL MADEIRA, ambos de Soure.
d) Drs. ADELINO MESQUITA, ALBANO DUQUE, Dr. JOÃO BOGALHO, Dr. CUSTÓDIO OLIVEIRA, da Figueira da Foz.
     No átrio do Hotel estava bastante gente.
 
     No Teatro Avenida era enorme a multidão. A sua lotação estava excedida vendo-se muitas capas negras. No palco muita gente também e diversas comissões de fora de Coimbra.
     O serviço no palco era dirigido pelos Drs. JOSÉ FERREIRA e FERNANDO LOPES.
     A mesa da presidência tinha a seguinte constituição:
 
     Major DAVID NETO
     Dr. VASCO DA GAMA FERNANDES
     Dr. MANUEL MONTEZUMA DE CARVALHO
     MÁRIO QUEIROZ MARQUES – estudante
     MÁRIO SILVA – estudante.
 
     ORADORES
 
     Dr. FERNANDO LOPES
     DAVID NETO
     VASCO DA GAMA FERNANDES
     JOSÉ RIBEIRO
     Dr. JAIME CORTESÃO
     Dr. ROLÃO PRETO
     Dr. VIEIRA DE ALMEIDA – monárquico
 
     Os Drs. JAIME CORTESÃO, FERNANDO LOPES, VASCO DA GAMA FERNANDES, ROLÃO PRETO e JOSÉ RIBEIRO foram os que fizeram os seus discursos de bastante violência contra o E.N. tendo arrancado à assistência muitos aplausos.
    Na assistência à Portagem era notória uma grande mole de gente do povo-operários-trabalhadores e mulheres das fábricas. Muitos estavam por espirito de curiosidade e nem sequer podem votar por não estarem inscritos. Havia bastante ralé e muitos rapazes novos.
   Devo frisar que todo o comércio da baixa que costumam fechar uns minutos depois das 19 horas o fez precisamente a essa hora e outros até um pouco antes para o pessoal poder assistir à chegada do General.
     A imprensa de Coimbra compareceu no seu total à sessão do Avenida. O Diário de Coimbra mandou dois redactores além do chefe da redacção, o célebre JOSÉ CASTILHO.»

[Paulo Marques da Silva]

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

[2491.] A PIDE E SUAS PERSPECTIVAS SOBRE A CENSURA: DOIS EXEMPLOS || TEXTO DE PAULO MARQUES DA SILVA [II]

 * A PIDE E SUAS PERSPECTIVAS SOBRE A CENSURA: DOIS EXEMPLOS *

Texto || Paulo Marques da Silva

[Paulo Marques da Silva]

«A PIDE e suas perspectivas sobre a Censura: dois exemplos

     Em Novembro de 2020, no jornal Terras de Sicó, onde publico alguns artigos, numa rúbrica intitulada “Pequenas histórias da PIDE e da Censura”, escrevi o texto “A PIDE, os jornais e Fernando Namora”, onde é possível verificar que, algumas vezes, as notícias publicadas nos jornais resultavam no principiar de diligências ou investigações por parte daquela Polícia. Não é, pois, de estranhar que muitos dos processos individuais da PIDE/DGS estejam inundados de recortes de notícias de jornais publicados. No caso do processo principal de Fernando Namora, verificamos que os documentos que estão em maior número são mesmo os recortes ou cópias de páginas de jornais. Mas, o caso de Namora não é único, bem longe disso.

     O que torna esta situação mais curiosa é que existia uma instituição denominada Censura e, em Portugal, comentava-se, com vincada ironia, que os jornais vinham tão “limpos” que parecia que vinham “de um País onde não acontecia nada”. Bom, pelos vistos, ainda assim, a PIDE arranjava matéria para “trabalhar”.

    Depois desta nota inicial, vejamos, então, dois modos diferentes de olhar para a Censura, ambos passados na cidade de Coimbra, embora em períodos diferentes e com interlocutores diferentes.

     Em Coimbra, corria o ano de 1951 e o inspector Sacchetti queixava-se que, desde há alguns dias, se vinha notando aquilo que designava como uma “agitação indiscriminada” e “uma preocupação constante”, quer de indivíduos desafectos ao regime, quer de elementos considerados como “bons situacionistas”. Segundo Sacchetti essa agitação traduzia-se numa “liberdade extraordinária de comentários” e, também, nas “notícias publicadas em alguns jornalecos”.

     O chefe da delegação da PIDE de Coimbra escolhia dois exemplos para elucidar a sua ideia: um deles era uma publicação do Diário de Coimbra, de 12 de Abril, que versava sobre o facto de certos equipamentos, como máquinas de escrever, poderem ser requisitados à Direcção Geral da Fazenda Pública por parte de certos sectores do funcionalismo público, enquanto outros não tinham o mesmo acesso. A outra era uma publicação do Ecos do Caramulo, de 15 de Abril, que referia que corria um boato de que o general Mac Arthur, que havia sido há pouco tempo exonerado do cargo de Comandante-chefe das forças da ONU na Coreia, ia ocupar um alto lugar no Banco Nacional Ultramarino.

     Perante estas notícias, Sacchetti referia que era de “estranhar” como os Serviços da Censura deixaram publicar esta última notícia que com grande “descaramento” procurava “levar a ridículo e fazer espirito com decisões tão graves para a política internacional e interna”. Sacchetti acrescentava que, para além daqueles assuntos, que se ouviam por todo o lado “desde os cafés aos carros eléctricos”, e por todas as pessoas “dos democráticos aos comunistas e destes aos que se dizem monárquicos e situacionistas”, os temas que se comentavam eram sempre os mesmos: “desfalques nos organismos oficiais, nomeação dos antigos Ministros, ordenados pagos pelas empresas e sua comparação com os dos servidores do Estado, acumulações de vencimentos, possibilidades duma restauração da monarquia, etc”. Ou seja: Sacchetti criticava algum laxismo da Censura, deixando que os jornais publicassem notícias, que não deveriam ver a luz do dia. 

     A situação é diferente no caso seguinte. No mesmo jornal que atrás referi, em Dezembro de 2020, escrevi outra história denominada “O pão de cada dia”. Este título é, na realidade, da autoria do bispo de Coimbra, Francisco Rendeiro, que, no dia 29 de Março de 1969, no jornal Correio de Coimbra, publicara um artigo com aquele título. O texto versava o problema da fome, mas não só da comida propriamente dita. Era a questão da privação, da ausência, utilizando o pão como metáfora, reflectindo, igualmente, a problemática da sua repartição. 

     Ora, o que aconteceu é que a Censura cortou um pequeno trecho do texto.

     Esta situação indignou os responsáveis da Igreja, em Coimbra, e o padre Valentim Marques entendia que tal corte era inadmissível. O caso chegará ao conhecimento da delegação da PIDE desta cidade que, por sua vez, fará chegar a informação à sua sede, em Lisboa, através do inspector da delegação, Leite de Faria, nos seguintes termos:  

     Junto tenho a honra de remeter a V. Ex.ª a fotocópia da prova tipográfica do artigo intitulado “O PÃO DE CADA DIA”, continuação de outros já publicados no órgão da Diocese “CORREIO DE COIMBRA”, da autoria do Bispo de Coimbra D. FRANCISCO RENDEIRO, no qual os Serviços de Censura eliminaram a expressão “é tremendo o problema da distribuição das riquezas”, que em nada prejudicava o seu contexto.

  O facto provocou forte reprovação dos responsáveis da Gráfica de Coimbra, encarregada da impressão do jornal, nomeadamente o Padre VALENTIM MARQUES, vincadamente manifestada na anotação por ele feita à margem: “ISTO É MISERÁVEL! Trata-se de um documento Pastoral, com que a censura nada tem a ver!”.

     Parece, pela expressão utilizada – “que em nada prejudicava o seu contexto” - que também a PIDE achou despropositado o corte efectuado pela Censura.

     A pergunta é: será que a PIDE estava mais ”primaveril” neste período específico (1969), já sob a tutela de Marcelo Caetano, ao contrário do que vimos no tempo de Sacchetti, em Coimbra, no ano de 1951, ou a maior benevolência da PIDE sobre a actuação da Censura teria a ver com o facto do autor do texto se tratar de um bispo?»

[Paulo Marques da Silva]

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

[2473.] A PIDE INTERESSAVA-SE POR ANTERO DE QUENTAL: UMA CONFERÊNCIA DE EDUARDO LOURENÇO || TEXTO DE PAULO MARQUES DA SILVA [I]

 A PIDE INTERESSAVA-SE POR ANTERO DE QUENTAL: UMA CONFERÊNCIA DE EDUARDO LOURENÇO *

Paulo Marques da Silva 

O texto que se segue é da autoria do Historiador Paulo Marques da Silva, o qual se tem dedicado a investigar os arquivos da PIDE/DGS, tendo publicado dois livros marcantes: Fernando Namora por entre os dedos da PIDE. A Repressão e os Escritores no Estado Novo [Minerva Coimbra, 2009] e A PIDE e os seus informadores. O caso de Inácio [Palimage, 2019].

O apontamento publicado incide sobre uma conferência realizada por Eduardo Lourenço em 16 de Abril de 1971, em Coimbra, e que resultou num detalhado relatório da PIDE, incluindo conteúdo e assistência.

Agradecemos ao Autor a pronta disponibilidade para dar a conhecer uma pequena parcela da acção repressiva da PIDE, sempre atenta aos mais pequenos pormenores de quem ousava opor-se à Ditadura.


A PIDE INTERESSAVA-SE POR ANTERO DE QUENTAL: UMA CONFERÊNCIA DE EDUARDO LOURENÇO

Paulo Marques da Silva


     No meu trabalho A PIDE e os seus informadores, o caso de Inácio, já tínhamos feito uma referência a este notável pensador português, recentemente falecido, quando este era ainda Professor Assistente de Filosofia, na Universidade de Coimbra. Corria então o ano de 1952, quando aquele informador definia Eduardo Lourenço como um “simpatizante avançado”, companheiro assíduo dos “comunistas” Paulo Quintela, João Farinha, Joaquim Namorado e Egídio Namorado, e que nas anteriores eleições, de 1945 e 1949, se “manifestara sempre a favor da oposição”. Concluía Inácio que Eduardo Lourenço fazia parte “do já extenso quadro de professores da Universidade anti-nacionalistas”.

     Quase vinte anos depois destas notas, da autoria de Inácio, Eduardo Lourenço, então a residir em França, deslocou-se a Portugal para proferir algumas conferências sobre Antero de Quental, tendo vindo também à cidade de Coimbra. E, duas décadas volvidas, mesmo estando ausente do país, Eduardo Lourenço continuava a merecer toda a atenção da PIDE/DGS, que não deixou de estar presente na conferência que decorreu na cidade do Mondego.

     Não posso deixar de relembrar a vigilância muito marcada que a PIDE/DGS movia aos professores universitários (e não só, obviamente), na Universidade de Coimbra, que sabia serem críticos do regime vigente, como foram os casos de Paulo Quintela, Joaquim de Carvalho, José Silva Dias, Aurélio Quintanilha, Orlando de Carvalho, Sílvio Lima ou Mário Silva, entre tantos outros.

     Em jeito de homenagem a este prestigiado crítico e ensaísta literário, publica-se aqui a transcrição integral deste documento da PIDE/DGS – uma informação da delegação de Coimbra para a sua sede, em Lisboa - adiantando, desde já, que o resumo da conferência efectuado pela PIDE até nos surpreende um pouco, face ao nível dos relatórios policiais que estamos habituados a ler, e onde é notório o défice de instrução de uma larga percentagem dos elementos desta Polícia: 


«Exmo Senhor

Director Geral de Segurança

Lisboa

21/4/71


CONFERÊNCIA DO DR. EDUARDO LOURENÇO DE FARIA, NO TEATRO GIL VICENTE DE COIMBRA


     Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Ex.ª que o convite do TEUC – Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra – em comemoração do seu primeiro centenário, deslocou-se a Coimbra o DR. EDUARDO LOURENÇO DE FARIA, professor da Universidade em Nice que veio a Portugal a convite da Fundação Gulbenkian, para proferir num dos seus auditórios em Lisboa, uma conferência integrada nas comemorações do “CENTENÁRIO DA GERAÇÃO DE 1870”, conferência que repetiu nesta cidade de Coimbra, versando o tema “ANTERO, UM POETA FILÓSOFO”.

     A conferência teve lugar no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, no dia 16 do corrente mês, pelas 18 horas, assistindo cerca de 350 pessoas entre as quais se viam alguns professores da Universidade de Coimbra, como os doutores:

     PAULO MANUEL PIRES QUINTELA

     ORLANDO ALVES PEREIRA DE CARVALHO

     VICTOR RAÚL DA COSTA MATOS

     AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

     JOSÉ SEBASTIÃO DA SILVA DIAS

     e estudantes.

     Abriu a sessão o estudante JOÃO MANUEL CANIÇO DE SEIÇA NEVES, do TEUC, que se congratulou pela presença do conferencista em Coimbra, agradecendo a anuência ao convite que o TEUC lhe dirigira, explicando as razões porque fora o TEUC a patrocinar a sua vinda a Coimbra.

     Referiu, ainda, o estudante JOÃO MANUEL CANIÇO DE SEIÇA NEVES, lendo um texto anteriormente aprovado em reunião de elementos do TEUC, que este sofrera uma interrupção num momento de repressão e terror em que alguns colegas foram encerrados na “Cadeia pidesca de Caxias” mas que esta conferência seria como que o reinício das suas actividades teatrais.

    Referiu-se o estudante SEIÇA NEVES também ao Teatro Académico Gil Vicente, dizendo que este era explorado para fins comerciais, quando deveria ser entregue aos estudantes.

     O conferencista foi, depois, apresentado pelo Prof. Dr. VICTOR RAÚL DA COSTA MATOS, da Faculdade de Letras de Coimbra, seu antigo aluno, que se referiu à actividade do professor em Coimbra e à sua vasta obra realizada nesta cidade.

     O DR. EDUARDO LOURENÇO DE FARIA, iniciou depois a sua conferência, tendo antes agradecido o convite do TEUC, que assim como afirmou, lhe proporcionara voltar a contactar com os estudantes de Coimbra, outros que não os da sua geração, mas da mesma forma conscientes das suas obrigações.

     Desenvolveu, em seguida, o tema já referido – “ANTERO, UM POETA FILÓSOFO” – numa análise bem esquematizada do Homem e do Poeta, da posição que ocupou na “Geração de 70”, sua formação e influência, afirmando: “Na medida em que Antero de Quental abre, entre nós, o período da sua consciência infeliz (histórica, cultural, e ideológica) que ainda não fechou, o seu destino permanece exemplar”.

    Esboçou depois a figura do poeta e do filósofo, acentuando: “Não se pode dizer que Antero tenha sido esquecido. O que aconteceu à sua imagem foi partir-se em dois bocados do que havia no original. As diversas e opostas interpretações acentuaram, até torna-las incomunicáveis, as suas famosas contradições”.

     E mais adiante: “Reencontrar, sem arbítrio, a linha que une o profeta do Socialismo e o cantor da Morte, o filósofo idealista e o poeta do «sentimento trágico da vida», o militante convicto e o suicida, não parece propósito inviável”.

    Justificando, depois, o exame da personalidade, afirmou: “Com a condição de abandonar ao seu histórico papel de máscaras pouco inocentes as exegeses biográficas, psicológicas ou intelectualistas, cuja função comum consiste em desviar a compreensão de Antero do «sentido histórico» que ela exige: Antero não foi uma peripécia trágica, salva do anonimato por alguns poemas imortais, mas uma experiência histórica da consciência portuguesa cujo sentido cumpre interpretar e, acaso, reassumir”.

    E prosseguindo: “O que nós propomos é, em termos próprios, uma leitura política de Antero de Quental, na qual, obviamente, «político» nem é sequer o mais relevante”.

    A concluir, o DR. EDUARDO FARIA afirmou: “É a única homenagem que nos parece convir ao Poeta que subtraiu, com consciente propósito, a literatura às delícias do que, até ele, se chamava, justamente, literatura”.

     Na sala foram referenciados os seguintes estudantes:

 

    JOSÉ AURÉLIO DA SILVA BARROS MOURA

    DOMINGOS MARTINS MORIM LOPES

    ÁLVARO CORREIA VILAS

    MARIA FERNANDA BRÁS

    MARIA FERNANDA DE OLIVEIRA MAGALHÃES MATEUS

    VICTOR MANUEL ALVORINO NEVES

    Um tal HENRIQUE BARRETO e 

    RAÚL MANUEL GOUVEIA BORDALO JUNQUEIRO

 

    A bem da Nação

   Coimbra, Delegação da Direcção-Geral de Segurança, 21 de Abril de 1971.


     O INSPECTOR

     Armindo Ferreira da Silva»  

[Paulo Marques da Silva]

Nota biográfica de Paulo Marques da Silva

Paulo Marques da Silva (12/12/1966) é natural de Condeixa-a-Nova. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra tem vindo a estudar os processos de alguns escritores e de outras personalidades, da região de Coimbra, ligadas à oposição ao Estado Novo, nos arquivos da PIDE/DGS.

Publicou em 2009 o livro Fernando Namora por entre os dedos da PIDE – A repressão e os escritores no Estado Novo. Em 2010 é um dos co-autores da publicação Condeixa paisagem, memória e história, com o trabalho «Estórias» da oposição em Condeixa no tempo de Salazar. No ano de 2015 é publicado o opúsculo Deniz Jacinto entre duas paixões: o teatro e a liberdade, uma selecção de documentos sobre o processo da PIDE de Manuel Deniz Jacinto. Neste mesmo ano publica também um pequeno trabalho intitulado Fernando Namora e a PIDE: anatomia de um processo, integrado no livro Pois não te resta ainda o mundo?, Conferências Fernando Namora, coordenado por Paulo Archer de Carvalho, um conjunto de cinco conferências sobre o escritor condeixense.

Em 2019, publica textos em diversos catálogos e livros e participa em conferências sobre Fernando Namora. Publica também o livro A PIDE e os seus Informadores, o caso de Inácio, que retrata a acção de um importante informador da delegação da PIDE de Coimbra.

Editou, em Setembro de 2020, o catálogo Fernando Namora caricaturista que reúne 181 caricaturas efectuadas pelo escritor no meio universitário.  

domingo, 17 de março de 2019

[2076.] ALBERTO VILAÇA [VI] || À MESA D'A BRASILEIRA

* ALBERTO DE OLIVEIRA VILAÇA *

À MESA D'A BRASILEIRA. CULTURA, POLÍTICA E BOM-HUMOR

Calendário de Letras || Dezembro de 2005

Por muitas destas "pequenas histórias" narradas por Alberto Vilaça [1929 - 2007] passam muitos dos antifascistas de Coimbra vigiados ou presos pela PIDE e a quem Paulo Marques da Silva, no seu recente livro A PIDE e os seus informadores - O caso de Inácio [Palimage, 2019] se refere com mais detalhe por via do informador "Inácio".









[Calendário das Letras || Dezembro de 2005]

terça-feira, 12 de março de 2019

[2075.] PAULO MARQUES DA SILVA [I] || A PIDE E OS SEUS INFORMADORES. O CASO DE INÁCIO

* PAULO MARQUES DA SILVA

A PIDE E OS SEUS INFORMADORES. O CASO DE INÁCIO

Apresentação: Luís Reis Torgal

[Palimage || 2019]

Em “A PIDE e os seus informadores. O caso de Inácio”, Paulo Marques da Silva descreve, com minúcia, a actvidade de um informador de Coimbra que durante três dezenas e meia de anos, entre 1935 e 1971, vigiou e prestou informações detalhadas sobre os oposicionistas daquela cidade, sem nunca ser detectado pelos antifascistas com quem se encontrava e de quem ouviria confidências como se fosse um deles.

Não deixa de impressionar a facilidade com que “Inácio” se movimentava por (quase) todos os ambientes oposicionistas locais, desde a Academia às instituições culturais e desportivas, passando por cafés, via pública e espaços privados, até aos eventos de natureza pública como sessões, comícios e datas comemorativas, relatando aos seus superiores, sempre com enfâse persecutória, tudo o que dizia ter ouvido ou observado de dezenas de nomes, mesmo que tal não fosse necessariamente fidedigno, «identificando explicitamente nesses documentos os indivíduos que lhas tinham fornecido» [p. 46]. 

Os seus relatórios «são sistemáticos e cadenciados […] com nomes, acções ambiente “político” e contactos» [p. 51], contendo opiniões e orientações que os seus superiores deveriam seguir, para além de insinuações, suposições infundadas e muita adjectivação, terminando, quase sempre, com a referência «[a]o ódio à nossa polícia» que os visados partilhariam, de forma a instigar a PVDE/PIDE a actuar segundo as suas apreciações.

Nos relatórios redigidos sobressai, ainda, antipatia pessoal e política sobre os vigiados, havendo a preocupação constante de enfatizar a responsabilidade política de Albano Rodrigues Cunha, Francisco Salgado Zenha, Joaquim Vitorino Namorado ou Manuel Deniz Jacinto, todos conotados com o Partido Comunista e que tudo manobrariam na cidade, transcrevendo fragmentos de conversas, por vezes claramente inverosímeis conhecendo-se os envolvidos.  

Não estamos perante um informador qualquer, sendo que lidava directamente com Manuel Nogueira Branco e, depois, José Barreto Sacchetti, responsáveis pela Delegação da PVDE/PIDE de Coimbra, elencando Paulo Marques da Silva «mais de duzentos nomes de indivíduos denunciados por Inácio» [p. 46].

Nesta investigação exaustiva e minuciosa, com Apresentação de Luís Reis Torgal, o Autor evidencia quão importante foi o papel dos informadores ao serviço da PVDE/PIDE/DGS e como ele se revelou eficaz na perseguição e condicionamento das actividades oposicionistas, assim como dá a conhecer parte significativa das redes locais antifascistas, embora apenas as mais visíveis, pois houve outras que se mantiveram intocáveis e passaram despercebidas ao informador e ao regime. 

E apesar de conhecer muitíssimo bem o terreno em que se movia, constata-se que “Inácio” desconheceria o percurso anterior aos anos 30 de alguns dos nomes referenciados, bom como o percurso de outros que, em determinado momento, mudariam de campo. O facto de nunca referir as reuniões e encontros tidos nas casas de campo de alguns intelectuais, nomeadamente as que se realizavam regularmente na de João José Cochofel, pode indiciar que não estaria tão informado como faria crer aos seus superiores.

Embora não fosse esse o objectivo do livro, Paulo Marques da Silva revela a identidade de quem se escondia por trás do pseudónimo “Inácio”, «um informador que provocou grandes malefícios em Coimbra» [p. 315] no dizer de Alberto Vilaça: um funcionário dos Caminhos de Ferro Portugueses nascido em 19 de Novembro de 1899 e que fez grande parte da sua carreira naquela cidade. No dia 19 de Dezembro de 1974, foi inquirido pelos Serviços de Coordenação e Extinção da PIDE/DGS e LP de Coimbra, assinou um relatório sobre as suas actividades, confessando «que, por vezes, romanceava um pouco» [p. 318] e, perante a Ordem de Captura datada do dia seguinte, ter-se-á suicidado em 21 de Dezembro na zona da Pedrulha, arredores de Coimbra.

O Índice Onomástico constitui um importante auxiliar para quem quiser estudar o Antifascismo em Portugal.

Leitura igualmente inadiável para quem reconhece vivências de muitos dos nomes referenciados em memórias recuadas, alguns dos quais familiares ou convivas próximos.

Como Benedita Vasconcelos [1947 – 2017] gostaria de ter lido este livro! 

[João Esteves]