Mostrar mensagens com a etiqueta Benfica. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Benfica. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 9 de julho de 2020

O Benfiquista Primário

Para quem não sabe, o benfiquista primário é aquele tipo de benfiquista que, não perdoando as derrotas, considera que um mau resultado é motivo para despedir o treinador por justa causa e que, não sabendo saborear as conquistas a não ser enfrascando-se, considera que qualquer marreco que consiga um bom resultado ao leme do clube tem o que é preciso para ser treinador do seu Benfica. Como os critérios científicos de que se serve são os nervos provocados pelo mau futebol da equipa ou a bebedeira a que se entrega por causa das vitórias dela, possui a triste característica de não conseguir distinguir um treinador de um garrafão de aguardente. Há desta espécie de adeptos em todos os clubes, claro, mas há pouco mais de um ano deu-se o caso de ter travado uma discussão com um benfiquista primário que era mesmo benfiquista e era mesmo primário. A discussão foi sobre o Benfica de Bruno Lage, e o artista assinava mesmo como Benfiquista Primário. Tudo começou a propósito de um texto escrito no encerrar da época transacta, no qual sugeria com a brandura que me era possível na altura que a equipa benfiquista, não obstante o título de campeão nacional recentemente averbado, a recuperação inacreditável que concretizara e o número de golos marcados, cumprira apenas os requisitos mínimos. Para o Benfiquista Primário, a ideia de que essa equipa de Bruno Lage mantinha muitos dos defeitos da equipa de Rui Vitória era um ultraje. Afinal, cilindrara vários adversários, atingira um número de golos marcados extraordinário e conseguira recuperar uma desvantagem pontual muito considerável. Comparar Bruno Lage a Rui Vitória, ainda por cima numa altura em que ainda se lançavam os foguetes da festa, só podia ser a brincar. Escuso de dizer que não era, como escuso de dizer que a comparação parece agora mais consensual do que parecia. O tempo, como aliás a sobriedade, costuma ajudar a distinguir treinadores de garrafões de aguardente.

Como há memórias que envelhecem bem, talvez a melhor maneira de caracterizar o estado de embriaguez com que o Benfiquista Primário se apresentou nessa discussão seja mostrar o que disse. Comecemos com uma frase pouco controversa: 

Benfiquista Primário: "Bruno Lage está na linha de Guardiola, Sarri, Paulo Fonseca".

Cara!!... Esta interjeição é difícil de definir. Significa pasmo, incredulidade, vergonha alheia, tudo ao mesmo tempo. Pensem na cara que fazem quando alguém diz alguma coisa consensualmente absurda, que vos provoca embaraço e para a qual não encontram palavras. É a essa cara que isto se refere. É no fundo a versão figurativa, e por isso mesmo mais plena de sentido, das reticências quando usadas para designar perplexidade ou estupefacção... Que é como quem diz: 'tudo bem, coiso e tal, mas agora tragam o colete de forças aqui para o garoto não arrancar a própria língua.' Malucos à parte, que tal se deixássemos o Benfiquista Primário explicar o seu ponto de vista?

Benfiquista Primário: "Os médios-centro nunca entram no bloco adversário? Só passaram a estar posicionados já no segundo espaço, na saída de bola, sempre uns metros à frente da primeira linha defensiva do adversário".

Sabiam que havia um segundo espaço num campo de futebol? Eu não sabia, mas fiquei a saber. E também fiquei a saber que há um primeiro espaço, até porque era difícil haver segundo sem haver primeiro. Estamos sempre a aprender. Querem ouvir mais? Eu quero.

Benfiquista Primário: "Não sabes o que é o segundo espaço? Na primeira fase de construção, em organização ofensiva, o Benfica de Lage tem saída a dois, com os centrais bem abertos no primeiro espaço, e os médios-centro já bem dentro do bloco adversário, nas costas da sua primeira linha de pressão. E por dentro do bloco continuam depois, na segunda fase de construção e na fase de criação - até para preparação da forte reacção à perda que a equipa tem...".

Cá está. Primeiro há um primeiro espaço, depois há um segundo espaço. Não há que enganar. Afinal também não era assim tão difícil de compreender. Mas deixemos o Benfiquista Primário continuar a explicação.

Benfiquista Primário: "Dentro do bloco são os segundo e terceiro espaços - replicando a tua elegância, se calhar é melhor voltares à escola e depois retomamos a discussão dos médios-centro e o bloco adversário".

Ah, o terceiro espaço... faltava o terceiro espaço. Surpreendemente, vem a seguir ao segundo. Então, fora do bloco adversário há um espaço, e dentro do bloco há mais dois, é isso? Eu por acaso já estive em campos de futebol, e pareceu-me sempre que havia mais do que três espaços. Não sei, três parece-me pouco. Mas se calhar é porque preciso de voltar à escola, para aprender a contar espaços. E sobre a dinâmica ofensiva do Benfica de Bruno Lage, o que é que o Benfiquista Primário teria a dizer?

Benfiquista Primário: "O jogo entre-linhas de Pizzi e João Félix manda um abraço".

Abraço entregue. É pena é que o jogo entre linhas do Benfica tenha emigrado para Madrid, e que agora só mande abraços à Magui. E mais sobre a dinâmica ofensiva do Benfica de Bruno Lage, ó Benfiquista Primário?

Benfiquista Primário: "O Benfica de Bruno Lage é sim equipa de posse e critério, em organização ofensiva. Que sai a jogar desde trás, com jogo apoiado que liga os três corredores, com sucessivas coberturas ofensivas a assegurar progressão e dinâmica, com o princípio do terceiro homem sempre presente e muita dialética jogo interior/exterior e ataque à profundidade/jogo entre-linhas".

Muita dialética, sim senhor. Futebol que é bonito é que não se viu. Jogo interior mas também exterior, ouvistes? Ataque à profundidade, mas com jogo entre-linhas, estás a perceber, ou quê? E que mais? Usava um líbero avançado? Circulava à largura por dentro do bloco? O Benfica de Bruno Lage era uma espécie de caldeirada, é isso?

Benfiquista Primário: "Ah, portanto para ti, não é uma equipa de posse, mas também não é uma equipa de transições. Então é o quê para ti o modelo de Lage? Não me digas que achas que o Lage não tem um modelo e filosofia de jogo bem definidos?!?".

Era menino para dizer isso, por acaso.

Benfiquista Primário: "Quanto a mim, se há equipa nos últimos anos em Portugal com um modelo e uma identidade bem vincados, é o Benfica de Bruno Lage".

Cara!!...

Benfiquista Primário: "O teu único argumento para negar que o Benfica de Lage é uma equipa de posse é o Rio Ave ter tido bola contra nós e o Benfica ter estado confortável".

Não é bem o único argumento. Mas ter menos bola do que uma equipa do Daniel Ramos é um sinal de qualquer coisa. É como vermos fumo numa moita ao longe em pleno verão. Talvez não seja má ideia chamar logo os bombeiros. Mas podemos fechar os olhos, claro. O que não podemos é reclamar que o fogo nos apanhou de surpresa. Mas o Benfiquista Primário tem uma explicação para isto. Querem saber qual é?

Benfiquista Primário: "Esse jogo foi o penúltimo da recta final decisiva: a equipa, cheia de putos, estava a sentir muito a pressão das últimas jornadas; o empate servia o objectivo prioritário do título... e provavelmente, na altura a que te referes, já estávamos a ganhar. É lícito que, nesse contexto todo, uma equipa de posse siga outras nuances estratégicas, em função do objectivo primordial. Sim, estratégicas... por mais que vociferes, a dimensão estratégica é uma realidade, que em nada põe em causa o modelo".

Homossexual?!? Eu?! Então eu, que até sou casado e tenho filhos, ia agora ser homossexual?? Só porque uma vez, num campo de férias, meti a boca na flauta do senhor Cândido? Então mas agora é assim? Já não se pode ser apanhado às tantas da noite no Lux a mamar na boca dum matulão, é?

Benfiquista Primário: "Acho que nas primeiras 4-6 semanas de BL tivemos vários jogos atípicos para o Benfica - jogos mais difíceis do que o habitual em PT em que se antecipava mais divisão de posse de bola e iniciativa do que acontece na maioria dos jogos nacionais - estou a falar do clássico da Taça da Liga, das duas deslocações em Guimarães e da eliminatória com o Galatasaray. Ora, nesses jogos, por ter tão pouco tempo de treino e porque sabia que não ia ser possível ainda monopolizar a posse de bola nesses jogos, o Benfica usou e muito bem, realmente, a pressão alta e as recuperações altas, tendo conseguido muitos 'lances de notoriedade' (para usar o 'jargão do LE') - oportunidades de golo flagrantes e vários golos decisivos marcados - nesse momento do jogo, nesses jogos mais divididos. Estes lances e golos nesse momento do jogo fizeram muita gente rotular o Benfica de BL como uma equipa de pressão alta e transição ofensiva/contra-pressão e contra-transição ofensiva. Rótulo esse que depois não actualizaram quando, com o passar do tempo e com outros jogos contra equipas mais fracas, o Benfica foi se 'desKloppizando' progressivamente, e progressivamente se 'Guardiolizando'!...".

Ó São, já te explique mil vezes que o Vítor Hugo não significa nada para mim. Eu era muito jovem, era inexperiente, e estava a atravessar uma fase difícil. Aconteceu, mas foram só umas férias de verão. O Vítor Hugo é um homem bonito e delicado. Ajudou-me muito nessa fase. E prontos, aconteceu, quis experimentar. Mas foram só dois meses... Pelo amor dos nossos filhos, ó São, acredita em mim...

Benfiquista Primário: "Um processo que ainda está em curso. Deixem o Bruno Maurizio Lage Sarri Guardiola trabalhar na pré-época e verão!..."

Cara!!... 

Benfiquista Primário: "Para mim, é um modelo de posse de bola que: 1) ainda está a ser trabalhado e vai melhorar ainda bastante na próxima época...".

Cara!!

Benfiquista Primário: "... e 2) não despreza as oportunidades de ataque rápido quando há boas condições de tempo e/ou espaço".

Todos temos amigos que não acreditam em Deus, mas que não excluem a hipótese de ele existir e, pelo sim, pelo não, cumprem todos os preceitos e mais alguns, rezam, vão à igreja, procuram ser virtuosos e praticar o bem, etc.. Não vá o diabo tecê-las... E sobre as semelhanças e as diferenças entre o Benfica de Bruno Lage e o Benfica de Rui Vitória, o que será o que o Benfiquista Primário tem para dizer?

Benfiquista Primário: "As semelhanças, no essencial, do modelo de Bruno Lage com o modelo de RV? Sem dúvida: são tão próximos como o Bernie Sanders e o Bolsonaro".

Muito bem! O Benfiquista Primário começa por aceitar a eventual semelhança dos dois modelos de jogo de modo irónico e zás!, duas referências a políticos de quadrantes ideológicos opostos, para sugerir que não há nada que os aproxime. Belo recurso retórico, sim senhor! A habilidade com que manipula criativamente o potencial linguístico ao seu dispor é digno de nota. E por que razão é que não há nada que aproxime os dois modelos? Porque o modelo de Bruno Lage é muito mais sofisticado, ora essa... Mas quão sofisticado ao certo, querem saber?

Benfiquista Primário: "Bruno Lage está na linha de Guardiola, Sarri, Paulo Fonseca".

Já tinha metido aqui esta, não já? Vale sempre a pena recordar... O que é bom nunca é de mais, não é assim? Mas avancemos...

Benfiquista Primário: "... a principal diferença para o modelo de RV: desapareceu a obsessão, que chegava a ser patética, pelos corredores laterais, e foi levantada a abertamente patética 'proibição' de utilizar o corredor central, o jogo interior e os espaços entre-linhas - o deprimente Benfica de RV construía e criava sempre por fora do bloco adversário (o que isso me exasperava)".

Desapareceu?! Se calhar alguém telefonou para a polícia a gozar. Há gente danada para a patifaria... Se calharam ligaram para a polícia a dizer que tinha desaparecido a proibição de utilizar o corredor central, o jogo interior e os espaços entre linhas, e o Benfiquista Primário acreditou que era a sério. Acontece aos melhores. Se calhar os autores do telefonema até andaram a colar panfletos em postes de electricidade, a pedir ajuda a quem pudesse avistar a proibição de utilizar o corredor central, ou a prometer uma recompensa a quem encontrasse a proibição de utilizar o corredor central. É capaz de ter sido isso, é...

Benfiquista Primário: "As diferenças abissais nos resultados não surgem do nada: são efeito das drásticas melhorias na qualidade do futebol apresentado, na sofisticação, robustez e tipo de modelo de jogo, na perspicácia e acerto estratégico para cada jogo - e também, claro, do que ambos destacam, mas com um peso relativo quanto a mim excessivo: a 'libertação' dos jogadores e a recuperação da alegria de jogar e da confiança".

Portanto, em 2019, o futebol do Benfica de Bruno Lage era sofisticado e robusto e Bruno Lage era perspicaz e revelava acerto estratégico. Depois, aí por volta de Janeiro, Bruno Lage teve uma trombose. Os infortúnios acontecem, e cabe-nos a nós aceitá-los. Assim é a vida, concordemos ou não. Mas que raio de jogos é que o Benfiquista Primário andou a ver?

Benfiquista Primário: "Isto foi visível mesmo com jogos de três em três dias, com pouquíssima disponibilidade para treinos aquisitivos de modelo de jogo".

Portanto, não havia tempo para treinar, mas ainda assim o Benfiquista Primário achava que a caldeirada que lhe davam a comer de três em três dias era resultado das ideias implementadas por Bruno Lage. Bela forma de dar corda às ideias. Só faltava apostar que o tempo lhe daria razão...

Benfiquista Primário: "Para o ano, depois de o Bruno Lage ter uma pré-época para treino aquisitivo de modelo, retomamos este debate e veremos então se ainda achas que o Benfica de Bruno Lage é uma equipa de transições...".

Cara!!...

Infelizmente, não creio que o debate venha a ser retomado. O tempo desempenha um tipo de arbitragem que nem os malucos costumam conseguir contestar. Há um ano, quando a discussão se desenrolou, sugeria eu ao Benfiquista Primário o seguinte: "Quando o ímpeto desta época se perder, quando a motivação e a confiança começarem a faltar, quando algumas das peças-chave não puderem dar o seu contributo, quando os adversários tiverem ideias um bocadinho melhores do que as actuais, vai-lhe acontecer o que aconteceu ao Rui Vitória". E não é que aconteceu mesmo? E era preciso ser bruxo para adivinhar este desfecho? Ou será que qualquer pessoa com dois olhos, e sem a casmurrice do Benfiquista Primário, ou a do Ferrão da Rua Sésamo, o adivinharia com facilidade? Fica a pergunta. Adeus e boa tarde!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Quando as coisas correm bem...

Quando as coisas correm bem, e um colectivo relativamente banal consegue somar uma série de vitórias impressionante, muitas delas com goleadas, e sofrendo poucos golos, ninguém repara na absoluta banalidade dos processos colectivos que o fazem parecer forte.

Quando as coisas correm bem, e uma equipa assim recupera muito do atraso que chegou a ter para os principais rivais, reentrando na luta pelo título quando isso já parecia fora de equação, a tendência das pessoas é acreditar que tudo vai bem.

Quando as coisas correm bem, e a equipa consegue vencer quase todos os jogos contra adversários mais fracos, compensando assim as derrotas com adversários do mesmo nível, todos acham razoável que, em muitos momentos desses jogos contra adversários mais fracos, não seja importante assumir a iniciativa do jogo.

Quando as coisas correm bem, e a equipa marca 4 ou 5 golos de forma sistemática e se estabelece como o ataque mais concretizador da prova, ninguém se atreve a pensar que está longe de ser o melhor ataque da prova, ou que as ideias ofensivas continuam a ser muito pobres.

Quando as coisas correm bem, e a equipa atinge registos ofensivos que deslumbram os que se maravilham com as estatísticas, poucos são os que ousam sugerir que a competência ofensiva da equipa depende quase exclusivamente das competências individuais dos seus principais atacantes e da forma como alguns deles conseguem conseguem camuflar a banalidade dessa competência colectiva.

Quando as coisas correm bem, e a equipa sofre poucos golos e concede poucas oportunidades aos adversários, ninguém olha para o espaço entre linhas que a dupla de meio-campo, cujo posicionamento excessivamente rígido é desprezado pelos analistas e o qual só não gera problemas irresolúveis contra adversários mais débeis, concede jogo após jogo.

Quando as coisas correm bem, e um jogador banalíssimo se torna no principal motivo de regozijo dos adeptos, dificilmente se notam as faltas sistemáticas que faz, sempre que disputa um lance, a irresponsabilidade posicional que denota, as dificuldades que tem ao nível do passe, o descontrolo emocional que manifesta em diferentes momentos de jogo, ou, simplesmente, a má leitura que faz das situações de jogo em que se envolve, coisa que, por exemplo, o leva a não compreender que, quando os adversários têm a bola junto a uma linha e o colega de meio-campo corrige o seu posicionamento em função disso, o que deve fazer é corrigir o seu posicionamento em função do comportamento do colega, e não permanecer no meio do terreno, parado, a ver os adversários a trazerem a bola de novo para dentro e a aproveitarem o buraco que se criou entre ele e o colega para empatarem o clássico.

Quando as coisas correm bem, e a equipa consegue controlar a ansiedade, subir os níveis de confiança e enfrentar todo e qualquer adversário com uma intensidade assinalável, poucos são os que se lembram de que a intensidade só serve para alguma coisa enquanto houver tranquilidade e confiança, e que estas, dependendo da contingência dos resultados positivos e não do trabalho diário, tão depressa desaparecem como aparecem.

Quando as coisas correm bem, e as pessoas, não aceitando a possibilidade de estarem a correr bem apenas porque sim, acreditam que há-de haver boas razões para que estejam a correr dessa maneira e não de outra, dificilmente se poderá convencer quem assim pensa de que nenhuma equipa de futebol, nos dias que correm, pode ser bem sucedida a longo prazo com base no facto de as coisas continuarem a correr bem, e dificilmente se poderá convencer quem assim pensa de que, portanto, é apenas uma questão de tempo para que as coisas deixem de correm bem.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Os Médios de Transporte e o Renato

Ontem, diante do Atlético de Madrid, houve um jogador encarnado que se destacou. Não, não foi Renato Sanches.  Lamento desapontar todos aqueles que aplaudiram de pé a iniciativa esplendorosa do Renato quando, já perto do fim do jogo, decidiu empolgar as bancadas do circo e pegou na bola, passou por cima de meia-dúzia de adversários, aos trambolhões, e, depois de perder a bola, como era natural que acontecesse, mordeu a língua, foi atrás do adversário, recuperou-a, arrancou de novo com ela e... passou a linha lateral. O momento, gravado na emoção das pessoas com carinho, e na História do jogo como o mais ridículo, constitui o exemplo perfeito do quão absurdo é tudo o que se diz e pensa acerca do jogo nos dias que correm. O Benfica empolgou-se depois de reduzir, e o Renato, sentindo que, sendo o momento de fazer das tripas coração, podia deixar de pensar no que estava a fazer, como até então, decidiu que era uma boa altura para começar a correr desalmadamente. Nas bancadas, gosta-se de quem o faz, ainda que o faça sem nexo. As arrancadas de Renato Sanches são, de facto, poderosas. As suas competências atléticas são invejáveis, e consegue ganhar muitas bolas à custa disso. É pena que o futebol não seja nada disso, e que a um jogador de futebol se exijam, sobretudo, competências intelectuais. Sim, é verdade que, em algumas das arrancadas do Renato, deixou dois ou três adversários para trás. Mas, para que isso acontecesse, teve sempre de ganhar no choque e de esticar o drible, o que o obrigava a disputar a bola no limite com o adversário seguinte... até a perder. Sim, é verdade que ganhou dois cartões com base nesse tipo de iniciativas. Mas também perdeu inúmeras bolas que, jogando com a cabecinha e não com o músculo, não perderia. Nas bancadas, isso não interessa. Interessa, sim, que o Renato faça lembrar o Eusébio contra a Coreia, mesmo numa altura em que correr com a bola e passar por vários adversários em força já não traga quaisquer dividendos à equipa. Sim, o Renato é um anacronismo, e o que as bancadas da Luz aplaudiram, sem que o soubessem, foi a História do Clube.

O melhor em campo, ontem, não foi o Renato. Foi o Pizzi. De muito, muito longe. E quantos aplausos mereceu o Pizzi ontem? As pessoas não gostam de futebol. Gostam de circo. De tal maneira que o melhor que o Renato fez em campo foi aquilo em que praticamente ninguém reparou: a simplicidade com que jogou durante os primeiros 60 minutos. Sempre que o Renato decidiu complicar (e a partir dessa altura foi muito)  o seu futebol perdeu qualidade. Aliás, aquilo que mostrou a partir do momento em que se passou a jogar mais com o coração do que com a cabeça parece ser a tendência natural do jogador. Retraído, por estar a dar os primeiros passos na equipa principal, Renato Sanches até tem feito boas coisas. Tem decidido rápido, tem jogado simples, tem limitado o seu jogo a fazer a equipa jogar. Também ajuda o facto de o Benfica jogar em 442 clássico, e de o Renato ser forçado a jogar sistematicamente fora do bloco adversário. Num ou noutro momento, quando em circunstâncias diferentes (em zonas de terreno mais povoadas, com menos soluções de passe fáceis) ou quando o coração dita o ritmo de jogo, vê-se, no entanto, qual é a tendência  natural do Renato: transportar, driblar, ir ao choque. Não há a tendência, por exemplo, para procurar o apoio frontal em progressão, ou para solicitar uma tabela; não há a tendência para progredir com a cabeça levantada, esperando que um colega o ajude a tomar a decisão através de uma desmarcação; não há a tendência para progredir lentamente, acelerando apenas no momento em que o adversário lhe sai ao encalce, jogando assim com a expectativa de quem lhe tenta tirar a bola (veja-se o que o Draxler fez ontem no segundo golo do Wolfsburgo). Isto para não falar do seu posicionamento e da forma como falha sistematicamente em ajustá-lo à rápida alteração das circunstâncias do jogo, como o demonstra, por exemplo, o primeiro golo do Atlético de Madrid ontem. Que ninguém tenha sequer percebido que foi ele que, enquanto segundo médio, falhou em povoar o espaço à frente da defesa, ainda para mais com o deslocamento de Jardel, diz muito acerca da euforia que se gerou à sua volta. É que falhou nesse lance e falhou em muitos outros parecidos. É verdade que o 442 clássico de Rui Vitória torna difícil esse tipo de ajustamento constante, e ontem o Benfica deu sempre espaço nas costas dos dois médios. O próprio Simeone ter-se-á apercebido disso, e foi para aproveitar essa deficiência que Griezman passou a jogar solto no meio a partir dos 20 minutos de jogo, com os benefícios que se viram.

O Renato é um médio de transporte clássico. E, não sei se as pessoas ainda não repararam, mas já há algum tempo que o futebol dispensou esse tipo de médios. Há uns anos, havia um médio em Portugal que se destacava pelas arrancadas com bola, através das quais tirava dois ou três jogadores do caminho. Quase toda a gente garantia que estaria entre os melhores do mundo dentro de poucos anos. Teve a sorte de sair para o único campeonato do mundo que ainda se compadece com médios de transporte, o inglês, e teve a sorte de poder jogar a partir da posição de médio, num 442 clássico, e não como médio ofensivo, entre linhas, posição em que dificilmente as suas qualidades teriam relevância. Em poucos anos, tornou-se num jogador banalíssimo. Chamava-se Anderson. O Renato não é especialmente diferente. Não é tão evoluído tecnicamente, o que talvez obste a que possa fazer carreira numa ala (posição em que Anderson talvez pudesse ter tido mais sucesso), e parece mais forte fisicamente, o que não sei se é uma vantagem. Mais ou menos na mesma altura, havia em Portugal, e no Benfica, um médio que muita gente começou por apreciar e que se destacava precisamente por transportar e ir ao choque. Chamava-se Beto. É verdade que o Renato me parece tecnicamente mais evoluído do que o Beto. Mas lembro-me bem do impacto que o brasileiro teve quando chegou à Luz, do quão empolgadas as pessoas andavam com a forma física, a capacidade de luta e a força natural do Beto. É exactamente isso que apreciam no Renato Sanches. Ainda que o Renato me pareça francamente melhor do que o Beto, aquilo pelo qual tem sido elogiado não é em nada diferente daquilo que levava as pessoas a confundir o Beto com um jogador de futebol. Actualmente, há um jogador em Portugal do estilo do Renato. Chama-se Imbula e custou 20 milhões de euros. Tanto um como outro, tendo obviamente algumas qualidades, me parecem sobrevalorizados. São essencialmente médios de transporte, competentes do ponto de vista técnico e muito fortes fisicamente. O futebol, contudo, joga-se com a cabeça, e não há médio moderno de eleição que não tenha nas competências intelectuais a sua principal virtude.

O futebol moderno requer essencialmente dois tipos de médios: médios que se distinguem pelo posicionamento, pela simplicidade de passe e pelo compromisso que conseguem manter de não forçar a entrada no bloco adversário, e que fazem carreira como médios-defensivos (jogando como pivot defensivo ou de perfil com outro médio); e médios que se distinguem pela criatividade, pela imaginação e pela capacidade de se movimentarem dentro do bloco adversário e de decidirem em espaços curtos. Renato Sanches não parece especialmente vocacionado para nada disto. Pertence a um terceiro tipo de médios, que, em boa verdade, continua a ser apreciado em muitos sítios e por muita gente, mas dos quais dificilmente se destaca um nome, nos dias que correm. A este terceiro grupo pertencem os médios de transporte, como é o caso do Renato, mas também os médios de combate, sobretudo vocacionados para tarefas defensivas, e os chamados "box-to-box", médios que se distinguem especialmente pelas capacidades sem bola, pela forma como recuperam o posicionamento defensivo, como facilitam a transição ofensiva ou como chegam com velocidade à área adversária. É provável que não haja um médio deste terceiro tipo entre os 20 melhores médios do mundo desde Patrick Vieira (talvez tenha havido o Essien, durante duas épocas). Mesmo Yaya Touré, que é vulgarmente tido como médio de transporte, não cinge o seu jogo a isso, sendo muito perspicaz, por exemplo, na maneira como se envolve em triangulações com os colegas. No futebol moderno, os melhores de entre este terceiro tipo de médios estão ao nível dos razoáveis dos outros dois tipos. Do Renato Sanches não espero, por isso, muito mais do que um médio razoável. Toda a euforia em torno dele é profundamente injustificada, e vem apenas confirmar que só por acaso é que o halterofilismo não é o desporto-rei em Portugal.

P.S. Os últimos minutos do jogo deram a impressão de que o Benfica conseguiu discutir o resultado com o Atlético de Madrid, e foi isso que, em larga medida, quase toda a gente disse. Se calhar vi um jogo diferente, mas pareceu-me que o Atlético, sem fazer um jogo extraordinário, podia facilmente ter saído da Luz com uma goleada. Valeu Lisandro, com três ou quatro antecipações providenciais, o facto de a equipa de Simeone não estar entre as melhores do mundo a aproveitar o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo e o desinteresse dos espanhóis em ter a bola ao longo de todo o jogo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O Benfica de Rui Vitória

O Benfica de Rui Vitória é, até à data, pouco mais do que um conjunto de jogadores espalhados num campo de futebol. A conclusão não é tardia nem motivada pelo descalabro do último fim-de-semana; em abono da verdade, foi o que tem vido a ser, jogo após jogo, desde o início do campeonato. Os resultados e a confiança que eles trazem mascararam essa realidade, criando a ilusão de que a equipa estava a crescer enquanto equipa. Não estava. O Benfica de Rui Vitória, até à data, não cresceu rigorosamente nada. Luís Freitas Lobo, por exemplo, acredita que este Benfica, em comparação com o de Jesus, é mais compacto e equilibrado, joga com as linhas mais juntas e é capaz, por isso mesmo, de jogar de forma mais pausada. É inacreditável que se possa sequer acreditar nisso. Basta ver 10 minutos de um jogo do Benfica de Rui Vitória para se perceber que o portador da bola é invariavelmente deixado ao abandono, que os homens sem bola raramente fazem movimentos de aproximação, que os alas e os avançados pouco ou nada são encorajados a invadir espaços interiores ou a baixar, que a tendência é para ocupar o máximo de espaço no terreno de jogo e que a inferioridade numérica no meio-campo, decorrente da insistência num modelo de jogo que requer necessariamente formas de compensar essa inferioridade é sempre, mas sempre, perniciosa para a equipa. O Benfica de Rui Vitória, até à data, é uma perfeita nulidade enquanto equipa.

Dois ou três resultados gordos (um deles construído nos últimos 20 minutos) e uma vitória inesperada em Madrid, conquistada às custas de 90 minutos a defender e de um Júlio César intransponível, não deveriam ser suficientes para se tirarem ilações positivas deste Benfica. Como sempre, as pessoas fiam-se nos resultados, e depois acontecem coisas que não conseguem explicar. A derrota humilhante deste fim-de-semana, uma das mais pesadas de sempre do Benfica em casa, não foi surpreendente, porém, para quem vê o que é importante ver. O Sporting ganhou com justiça, sem sequer fazer um jogo extraordinário. Foi eficaz e soube potenciar os erros do modelo do Benfica. Mas, mesmo que o não fosse, bastaria ocupar relativamente bem os espaços, coisa que as equipas de Jesus costumam saber fazer, para ter o domínio relativo do jogo. Tal como na Supertaça, o Sporting foi superior ao Benfica essencialmente porque foi uma equipa mais equilibrada em cada momento do jogo. Isso é o princípio de tudo. Sem ter sequer feito da troca de bola um modo de desposicionar o Benfica, bastou ao Sporting esperar que os encarnados, tendo que assumir as despesas do jogo, se desorganizassem por si. E assim foi. O Benfica foi sempre uma equipa desorganizada, tanto a defender como a atacar; teve sempre menos gente na zona da bola; nunca se preocupou com os apoios recuados ou com os apoios laterais, deixando o portador da bola sem outra solução que não o apoio vertical; defendeu sempre demasiados metros em largura quando a bola entrava nas alas, o que criava espaços excessivos entre os jogadores  (veja-se o espaço entre os centrais no segundo golo, potenciado por uma linha defensiva demasiado centrada quando a bola está encostada à linha esquerda); etc..

Para dar um exemplo do que é o Benfica de Rui Vitória, note-se a falta de rede no meio-campo, no terceiro golo do Sporting: o médio que incia a jogada não tem atrás de si nenhum outro médio, a dar um apoio recuado e a oferecer a cobertura numa eventual perda de bola, assim como não tem ninguém à sua direita, em cerca de quarenta metros, a não ser o lateral, que procura abrir. Assim é muito fácil ao adversário prever a opção do portador da bola. A antecipação que origina a perda de bola não é demérito do portador  nem do receptor, nem sequer é mérito do defesa sportinguista; é demérito colectivo do Benfica. O principal motivo da perda da bola é a desorganização colectiva que torna fácil ao adversário ler o lance. A agravar a situação, os centrais estão muito longe do portador da bola e do meio-campo, ficando, por conseguinte, incapacitados de reagir rapidamente à perda. No lance do terceiro golo, as pessoas vão crucificar o médio que cometeu a imprudência de fazer um passe à queima, ou o atacante que teve o desmazelo de se deixar antecipar, ou até mesmo o lateral direito, Sílvio, que demorou a reocupar a sua posição depois de a equipa ficar sem a bola, apesar de ser o único que, no momento ofensivo, se preocupou em dar uma solução de passe ao portador da bola (o que o deixou  naturalmente em condições deficientes para recuperar rapidamente). As pessoas vão crucificar qualquer um destes três, ou mesmo qualquer um dos outros jogadores que estavam em campo, pois não são capazes de perceber que um jogador joga aquilo que o colectivo lhe permitir jogar. As pessoas vão crucificar os jogadores, mas o principal responsável é Rui Vitória. O Benfica de Rui Vitória é, até à data, aquilo que foi exemplarmente neste jogo: pouco mais que nada.

P.S. O que pude ver do arranque da época fez-me antecipar, desde muito cedo e sem grandes hesitações, que o Sporting era o principal candidato ao título, este ano. Ainda que essa convicção tenha ficado enfraquecida depois do afastamento de Carrillo, possivelmente o melhor jogador do arranque de temporada leonino, creio que continuo a subscrever esse prognóstico.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A Decisão de Talisca

Não é novidade, para quem visita este espaço com regularidade, que a velha máxima do chutar sempre que possível é algo que não me agrada particularmente. Ora, não é por o lance terminar com a bola no fundo da baliza adversária que um remate, quando se pedia outra acção, passa a ser uma boa decisão. O lance a que me reporto é o do segundo golo do Benfica no Dragão. Não obstante já muita coisa ter sido dita sobre o clássico e não obstante o mesmo ter acontecido há já algumas semanas, creio que o lance é especialmente útil para aquilo que proponho. A jogada terminou com Lima a empurrar a bola para a baliza deserta de Fabiano, mas foi tudo menos uma boa jogada. E, sobretudo, foi tudo menos uma boa decisão de Talisca, que continua a gozar de enorme admiração por parte da massa adepta dos encarnados sem que o justifique propriamente. Não querendo falar de Talisca em termos genéricos, até porque isso daria pano para mangas, posso dizer, essencialmente, que o seu perfil de decisão deixa muito a desejar. À excepção dos índices competitivos que tem conseguido apresentar, o que é notável para um jovem acabado de chegar à Europa vindo de um campeonato em que a competitividade é bem diferente, e à excepção de competências técnicas que muito decorrem desses índices competitivos admiráveis, Talisca não tem mostrado grande coisa. Não tem, aliás, mostrado - e isso parece-me claro - nada que justifique a euforia que se tem criado à sua volta. Mais uma vez, não fora os golos decisivos que marcou, e que muito se deveram, essencialmente, à capacidade competitiva que lhe reconheço, e não se falava dele como se fala actualmente. Mais uma vez, um ou dois lances por jogo são suficientes para a generalidade das pessoas formarem uma opinião. Mas, passando à frente, o que fez de errado Talisca no lance do segundo golo encarnado?



O remate em zona frontal é sempre apetecível, e é uma boa solução quando há espaço e, sobretudo, quando não há desequilíbrios causados pela movimentação dos colegas. Ora, é isso mesmo que Talisca não respeita, ou que pelo menos ignora. Ao contrário de muita gente, não creio que um jogador deva respeitar obrigatoriamente movimentações de colegas nas costas. Mas deve, pelo menos aproveitá-las. Depois do passe de Gaitan para Talisca, Enzo Perez apressa o passo para passar nas costas de Talisca de modo a criar superioridade numérica no flanco esquerdo, onde a defesa portista estava descompensada. Talisca não tinha que ter esperado por Enzo para lhe dar a bola, mas tinha que ter esperado por ele para jogar com a superioridade que ele ia criar e à qual os adversários iriam ter de reagir. Quando Talisca recebe o passe de Gaitan em zona central, tem à sua frente um defesa que o impede de progredir. Depois de contemporizar, por força dessa oposição, fica com mais um médio portista à ilharga. É nesta altura, quando já está francamente apertado, quando perdeu algum enquadramento para o remate e já sem sequer o equilíbrio perfeito, que se decide pelo remate, ignorando que o seu compasso de espera tanto permitira a aproximação de adversários como permitira o início da desmarcação de Enzo. Ao receber a bola, Talisca apercebeu-se que tinha apenas um adversário pela frente e que, possivelmente, teria espaço para rematar. Desde que recebeu a bola, não pensou em mais nada. Durante o tempo que perdeu a preparar esse remate, deveria ter mantido em aberto a possibilidade de tomar outra decisão.  Como tinha a ideia formada, não pensou em mais nada. Podia ter inclusivamente jogardo curto, entre linhas, em Gaitan, mas nem o viu. A melhor decisão, porém, era sempre esperar por Enzo, que ia criar o desequilíbrio na esquerda. Bastava a Talisca ter esperado mais um pouco e poderia jogar com essa desmarcação. Podia fazer o passe para que Enzo cruzasse já dentro da área (ou até para que pudesse rematar) ou podia jogar com essa desmarcação de outra maneira, esperando que Danilo se desposicionasse ao tentar adivinhar um eventual passe para Enzo. Como não pensou nisso, e como tinha o remate na cabeça desde que recebeu a bola, decidiu mal. Que o lance tenha resultado em golo não apaga a má decisão. Note-se, de resto, que o remate não saiu muito potente, como era natural que saísse nas condições em que se encontrava (tinha vários adversários à frente, a bola estava demasiado debaixo do seu próprio corpo, e o enquadramento não era perfeito), e que só um frango monumental de Fabiano, que defendeu com a cara, permitiu que aquela má decisão se transformasse numa recarga de Lima. Para muita gente, Talisca fez bem em chutar, uma vez que deu golo. O problema, no entanto, é o do costume: em situações idênticas, não só um remate naquelas condições dificilmente resultará em golo como a decisão de rematar naquelas condições e com um desequilíbrio prestes a ser criado por um colega dificilmente será a melhor decisão. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Curtas de Dezembro

1. Depois de uma época que só não foi exemplar por ter deixado escapar a Liga Europa, Jorge Jesus perdeu vários jogadores e começou a época com um plantel bem menos forte do que o dos últimos anos. O sorteio da Champions não ajudou, e o Benfica acabou eliminado das competições europeias mais cedo do que nos últimos anos. À margem das circunstâncias adversas, o futebol encarnado depende, mais do que nunca na era de Jesus, da qualidade individual, e é essa a principal crítica que lhe deve ser feita. Num modelo como o de Jesus, o mínimo desinvestimento tem um impacto significativo, e o desempenho ofensivo dos encarnados, esta época, é quase exclusivamente explicado pelos golos de Talisca, pelas arrancadas de Salvio e Gaitan, e pela qualidade de Enzo.

2. O Porto de Lopetegui é uma equipa de oito e oitenta. Tem um plantel formidável do meio-campo para diante; tem uma plantel banalíssimo do meio-campo para trás; tanto goleia como empata com o Boavista; tanto sufoca o adversário do primeiro ao último minuto como se deixa surpreender depois de estar a vencer por alguns golos de diferença. Agrada-me a atitude ofensiva da equipa e agrada-me a intenção de pressionar alto; desagradam-me, porém, as variações constantes de flanco, o excesso de vertigem e a incapacidade, mais ou menos geral, para controlar o ritmo de jogo. Não sei o que acontecerá na segunda metade da época, até porque, sobretudo numa prova de regularidade como é o campeonato, uma equipa assim tanto arrisca o fracasso quanto o sucesso.

3. Marco Silva está a fazer um trabalho interessante. Um clube como o Sporting deve ambicionar sempre o título. O que não pode fazer, num momento complicado em que não pode, de maneira nenhuma, competir com o investimento dos dois rivais e que vem na sequência de anos de crise desportiva, é anunciar publicamente essa ambição. Enquanto "outsider", o Sporting pode sempre intrometer-se nessas contas, como aconteceu o ano passado; enquanto candidato, dificilmente. Não tem plantel para isso e entra em campo pressionado para ganhar. Não obstante, Marco Silva tem apresentado bons indicadores. É verdade que ter Nani - que só por questões extra-desportivas não está a jogar num dos dez melhores clubes europeus - ajuda muito, mas a equipa tem comportamentos interessantes. Acima de tudo, é menos mecânica do que a equipa de Leonardo Jardim, que obteve o máximo do que poderia ter obtido a época transacta, e isso é já um indício do quanto poderá evoluir no futuro. Era importante agora, a meu ver, que dessem finalmente oportunidades a dois jogadores da equipa B que, por quaisquer razões, continuam na gaveta: Chaby e Iuri.

4. Em Espanha, o Real Madrid só não é campeão se não quiser. Dia sim, dia não, a imprensa portuguesa diz que Mourinho é o melhor do mundo. Mas basta ver as diferenças do Real de Mourinho para o Real de Ancelotti para se perceber que, no mínimo, a imprensa portuguesa é tendenciosa. Mourinho jogava com médios como Khedira, Granero ou Diarra. Chegou a jogar com Pepe no meio-campo. Modric nunca foi opção. Ancelotti joga só com dois médios: Modric e Kroos. Não é preciso falar de títulos para que se percebam as diferenças. Mesmo sem Ozil e sem Di Maria, jogando num sistema de jogo que nem sempre oferece uma boa rede de apoios, o Real é uma máquina de futebol de ataque. E isso tem a ver, acima de tudo, com as ideias de Ancelotti a respeito do seu meio-campo. É aí que é profundamente diferente de Mourinho. E é por aí que o seu Real é bem mais competente e criativo do que o Real de Mourinho. Voltemos alguns anos atrás no tempo, lembremo-nos de que foi ele quem "inventou" um meio-campo inteiro para que um jogador que nunca sequer tinha jogado como médio-defensivo se pudesse tornar o melhor dos últimos quinze anos nessa posição e teremos a melhor descrição possível de Carlo Ancelotti.

5. O novo Barcelona começou muito bem. Luis Enrique conseguiu que a equipa jogasse com o bloco tão subido quanto na era de Guardiola, com os sectores muito juntos e a pressionar muito alto. Ao mesmo tempo, ia apostando em jovens jogadores de grande talento, como Munir, usava aos três e aos quatro médios criativos, e conseguia dinâmicas inacreditáveis. Tudo isso se foi, pouco a pouco, dissipando. Às vezes fala-se da coragem de um treinador sem se saber muito bem do que se fala. Para mim, coragem é manter as ideias quando as coisas não correm bem. E o que Luis Enrique fez, a partir de dada altura, foi mostrar que não a tem. Primeiro, foi Piqué, de longe o melhor central do plantel (seguido de Bartra) a ser encostado. Luis Enrique prefere Mascherano e Mathieu porque são mais compenetrados, metem mais o pé, esfolam-se mais, etc.. Depois, foi a derrota diante do Real Madrid. O Barça ainda não tinha sofrido golos no campeonato, jogava bem e fazia coisas que mais nenhuma equipa (salvo o Bayern de Guardiola) faz. Depois da derrota com o rival da capital, o Barça é uma equipa mais banal do que o Barça de Tata Martino. Já não joga com a defesa subida, já não aproxima os sectores, já não pressiona alto, e já nem sequer é capaz de fazer um jogo de posse como antes. Entretanto, desde que Luis Suarez passou a poder jogar, Pedro Rodriguez nunca mais foi titular e Munir raramente foi chamado. Mais do que nunca, o Barça é uma equipa de avançados, e o seu treinador espera que Neymar, Messi e Suarez, para os quais os outros oito jogam, resolvam individualmente o que o colectivo deixou de querer resolver.

6. Paco Jémez foi um dos nomes mais falados para substituir Tata Martino. A direcção do Barça acabou por escolher mal, e Paco Jémez manteve-se aos comandos do Rayo Vallecano. Esta entrevista devia ser lida por toda a gente, mas principalmente por Luis Enrique, que é quem tem a responsabilidade, pela herança que tem, pela tradição do clube e pelas características dos jogadores que possui, de fazer o que nela é ensinado. Para Jémez, ter a bola a todo o custo, arriscando se for preciso arriscar, é o que mais importa, e metê-la na frente é sempre pior do que procurar alguém perto com critério. Além disso, é o adversário que tem de se preocupar com a sua equipa, não a sua equipa com o adversário, e a defesa defende os espaços, não os adversários. Por outro lado, quando um lateral sobe, deve estar preocupado com tudo menos com o facto de ter de vir defender a seguir: a equipa encarregar-se-á de compensar essa subida colectivamente. Para Paco Jémez, é falso que não se possa pressionar durante 90 minutos essencialmente porque pressionar, em seu entender, é um esforço colectivo que depende mais de ajudas, coberturas e posicionamentos relativos do que com esforço muscular, agressividade perante o portador da bola e perseguições individuais. Empatar, acrescenta ainda, é o pior resultado que pode obter: prefere perder, porque, evidentemente, pode perder dois jogos em cada três e fazer os mesmos pontos que faz com três empates. Há pouca gente que pensa assim, e há pouca gente que não vai achar em quase tudo o que Paco Jémez diz um certo atrevimento. E, no entanto, diz mais coisas acertadas em meia-dúzia de respostas do que se diz em dez anos de cursos de formação de treinadores.

7. Nuno Espírito Santo começou a sua aventura em Valência e tem sido bastante elogiado. Evidentemente, é elogiado porque tem tido bons resultados. O futebol do Valência baseia-se, porém, no erro do adversário e no contra-golpe. Tudo o que Nuno pretende é que a equipa chegue rapidamente à baliza adversária, assim que rouba a bola. Defensivamente, os comportamentos da equipa nem são maus, parecendo saber exactamente o que fazer nos momentos de pressing. Mas com bola exigia-se muito mais. E exigia-se sobretudo menos pressa. O Sevilha, o Villareal e o Rayo Vallecano, para dar exemplos de equipas com orçamentos inferiores ou muito inferiores, jogam muito mais à bola do que o Valência, e quando as coisas começarem a correr menos bem e os resultados começarem a ser menos lisonjeiros, talvez caia em desgraça com a mesma velocidade com que caiu em graça.

8. Em Inglaterra, o campeão Manchester City cometeu, a meu ver, o maior pecado que um campeão pode cometer: não ter mudado nada para a nova época. Os campeões precisam de estímulos novos para continuarem a querer ser os melhores, e uma boa maneira de criá-los seria modificar qualquer coisa, sobretudo na forma de atacar da equipa. Sem grandes reforços e sem grandes mexidas na maneira da equipa jogar, o City perderá a pouco e pouco a capacidade de continuar no topo em Inglaterra.

9. O Arsenal de Wenger continua incapaz de ser uma equipa competitiva durante toda a época. Embora o investimento comece a aproximar-se do investimento feito por alguns rivais, e embora consiga finalmente preservar os melhores jogadores de ano para ano, mantêm-se os principais problemas na equipa: as competências defensivas e as lesões. É pena, porque a equipa consegue fazer coisas que a esmagadora maioria das equipas não consegue. E é pena porque Wenger é dos treinadores mais interessantes, do ponto de vista ofensivo. Gosto do estilo, mas tenho de reconhecer que, se não caprichar mais, sobretudo na forma como a equipa defende, o estilo de Wenger não é suficiente.

10. O Chelsea de Mourinho tem o melhor plantel, de muito longe, da Premier League. E mesmo com um meio-campo composto por Matic, Fabregas e Óscar, o futebol praticado é, na maioria das vezes, muito pobre. Defensivamente, a equipa não podia ser mais competente, mas continua a preferir entregar a decisão dos jogos às iniciativas individuais e ao aproveitamento dos detalhes do que às qualidades colectivas. Ainda assim, é capaz de chegar para ser campeão. Em Espanha, em Itália, em França e na Alemanha, Mourinho dificilmente seria campeão a jogar desta maneira. Mas em Inglaterra não há uma equipa capaz de ser regular desde que Ferguson se reformou, e isso é tudo o que importa. O seu Chelsea é competente defensivamente, e isso talvez seja suficiente.

11. Entretanto, Mourinho não perde uma oportunidade para aludir a Guardiola. Quando lhe perguntaram se podia ganhar quatro competições esta época, disse que não porque, ao contrário de outros campeonatos, o campeonato inglês não tem pausa de Inverno e até se joga no Natal. Já aqui tinha sugerido que a carreira de Mourinho pode ser descrita, a partir de certo momento, como uma tentativa de resposta a uma certa obsessão. Agora parece que encontrou outra.

12. Depois de uma época quase brilhante, o Liverpool de Brendan Rodgers está a fazer uma campanha sofrível. A saída de Suarez e a lesão de Sturridge fazem com que o ataque da formação inglesa seja muito diferente do que foi a época passada, e essa pode ser uma explicação para o sucedido, até porque não há muitas mais diferenças. Gosto de pensar, contudo, que uma equipa em que Mario Balotelli é titular em praticamente todos os jogos e em que Lazar Markovic mal tem oportunidades para jogar é uma equipa que não merece muito mais do que a modesta posição que ocupa. Pode-se tentar explicar o insucesso do Liverpool de muitas maneiras, mas referir um treinador que avalia tão mal a qualidade individual dos atletas que tem à sua disposição é capaz de ser suficiente.

13. Gostei muito do trabalho de Pochettino no Espanyol e, do que vi em Inglaterra, só posso dizer bem. A aventura com o Tottenham não tem sido tão feliz quanto isso, ainda que a equipa mantenha as aspirações intactas (está a cinco pontos do acesso à Liga dos Campeões) e há muita gente que tem criticado o seu trabalho. A primeira coisa que gostava de dizer é que Pochettino herdou uma equipa absurda, quase toda formatada pela ideia absurda de jogo que André Villas-Boas tentou implementar. A qualidade individual do Tottenham, ao contrário do que se possa pensar, é muito má, quando se pensa que o clube tem aspirações europeias: Lloris, Verthongen e Lamela são talvez os únicos que podiam jogar num clube maior. Daí que exigir a Pochettino outra coisa que não ficar entre os dez primeiros me pareça um exagero. Ainda assim, não se vê o técnico argentino a jogar para os pontos. Pelo contrário, é das poucas equipas da Premier League que tenta fazer coisas diferentes, que tenta jogar pelo meio, que tenta invadir espaços entre linhas, que joga com os apoios próximos. As derrotas não têm ajudado e vê-se que muitos dos jogadores não gostam de ter de pensar tanto e preferiam um futebol mais à inglesa. Há uns anos, Juande Ramos tentou fazer coisas parecidas e os jogadores do Tottenham, na altura, fizeram-lhe a cama. Lembro-me de ter dito que, embora tivesse regressado às vitórias com Harry Redknapp, o Tottenham perdera nessa altura uma boa oportunidade de se tornar um clube grande em Inglaterra. Não me enganei, ainda que os quartos e quintos lugares de Redknapp tenham dado alegrias a muita gente. Com Pochettino, o Tottenham tinha finalmente a oportunidade de ser, a médio prazo, uma equipa muito forte em Inglaterra. É verdade que os jogadores não são os melhores para isso, mas, para já, era pelo menos importante que esses mesmos jogadores não preferissem ser jogadores de equipa pequena. Infelizmente, é isso que me parece que querem ser.

14. Tim Sherwood, antigo treinador do Tottenham, percebe tanto de futebol como um lagarto ao sol percebe de física quântica. Na sequência da recente derrota do Tottenham com o Chelsea, sugeriu que o belga Verthongen é "muito mau a defender". Para Sherwood, defender é aquilo a que, nas distritas e na Premier League, vulgarmente se chama ter caparro. Verthongen, realmente, não tem caparro. Ou não faz grande uso dele. Isso não significa que não saiba defender. É com preconceitos deste género, preconceitos de que o futebol está completamente cheio, que continuamos a ter de lidar. Esta gente ganha milhões e continua a pensar como o velho que vai à bola ao Domingo a dizer que o futebol era bom era no tempo dos cinco violinos.

15. Na Alemanha, o Bayern vai chegar de novo à viragem do ano com o campeonato praticamente no bolso. É verdade que a resistência interna não é muita, e que o Dortmund, ainda por cima, tratou de facilitar a vida aos bávaros, mas não deixa de ser uma proeza. Quanto ao futebol da equipa, vai crescendo aos poucos e, mesmo sem alguns dos melhores intérpretes, Guardiola tem os seus pupilos cada vez mais próximos do que pretende. Além do 433 da época passada, a equipa joga agora também em 343 e em 352 com uma facilidade impressionante. A linha defensiva está sempre muito alta, o que é absolutamente decisivo para quem queira jogar como Guardiola joga, e os sectores sempre muito juntos, pelo que é fácil depois à equipa adaptar-se a um posicionamento diferente. Mais significativo ainda é perceber que o 343, por exemplo, não serve tanto para abrir a frente de ataque, pois os extremos são essencialmente jogadores para jogar por dentro e vir solicitar o passe a zonas entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, quanto serve para ter mais gente no meio. A diferença de Guardiola para os restantes treinadores de futebol é tanta que fazer com que as pessoas a percebam é muito difícil.

16. Por cá, nos últimos dias, o Benfica recebeu o Belenenses, que jogou sem Miguel Rosa e sem Deyverson, possivelmente os dois jogadores mais influentes da equipa esta época. Se calhar é patetice minha, mas isto é capaz de ser um caso de polícia. Miguel Rosa desvinculou-se do Benfica e, mesmo assim, continua a ver a sua carreira comprometida por quem quer que no Benfica tenha algum poder. Já o ano passado tinha sido assim, e voltou a sê-lo este ano. E a única coisa que se faz é assobiar para o lado. Há muita coisa que vai mal no futebol. Há pouca coisa tão abjecta como isto.

17. Por falar em mafiosos, um dos sites portugueses com maior afluência, o TV Golo, foi há tempos bloqueado por todas as operadoras, segundo consta, na sequência de uma ordem judicial desencadeada por uma queixa da Sporttv. O site em questão disponibilizava links para videos de golos e apanhados dos melhores lances de jogos de muitas ligas. Não sei muito bem o que leva uma empresa como a Sporttv a sentir-se lesada por um site deste género (ainda por cima, tanto quanto pude perceber, o site inglês okgoals.com disponibiliza boa parte do que era disponibilizado pelo tvgolo.com), da mesma maneira que não consigo compreender a maior parte das razões contra a livre divulgação de conteúdos na internet, em geral. De qualquer modo, é no mínimo irónico que esta acção moralizadora dos costumes dos utilizadores da internet tenha vindo precisamente de uma empresa que, pelo menos até há bem pouco tempo, detinha o monopólio do negócio do futebol em Portugal e que o vendia como queria e pelos preços que queria. Haja escrúpulos...

terça-feira, 3 de junho de 2014

Balanço Negativo

Como tive oportunidade de escrever, esta época futebolística representou, de certo modo, um retrocesso na evolução do jogo. Com um campeonato do mundo à porta ao qual alguns dos melhores jogadores do mundo chegam em más condições (ou não chegam, de todo), e a julgar por aquilo que se passou há um ano no Brasil, antevejo uma prova sofrível, o que seria a cereja no cimo do bolo. Não acredito, apesar de tudo, que um ano sirva para inverter a evolução do que quer que seja, e a tendência será, nos anos que se seguem, as coisas voltarem à normalidade. Dito isto, gostaria de fazer um balanço daqueles que foram os principais destaques desta temporada:

Em Portugal, Jesus voltou a ser campeão. Tenho falado muito acerca do quão importantes são, para o reconhecimento de um treinador, um jogador ou uma equipa, as circunstâncias que os mesmos não controlam, como o acaso, o talento dos adversários, as decisões de terceiros, etc., e esta época de Jesus é disso um extraordinário exemplo. Para muitos, porque ganhou mais títulos do que nunca e porque esteve pertíssimo de ganhar tudo o que podia ganhar, este foi o melhor dos cinco anos de Jesus à frente do Benfica. Não só discordo amplamente disto como me parece absurdo que se tenha tal opinião. O Benfica começou muito mal a época, tendo uma participação medíocre na Liga dos Campeões e perdendo muito terreno para o principal adversário. Se o Porto não estivesse fragilizado e conseguisse manter a qualidade do futebol que apresentou no início da época, o Benfica teria tido muitas dificuldades em recuperar o terreno perdido e, pior do que isso, em atingir os níveis de confiança que viria a atingir no final da época. Quando se fala na época no Benfica, concede-se o mau arranque, mas considera-se que a segunda metade da época o compensou. Esquece-se, porém, que só o compensou porque as coisas começaram a correr mal aos adversários dos encarnados. Os níveis de confiança subiram porque os resultados começaram a ser positivos, não o contrário. O Benfica termina a época a poder ganhar tudo porque internamente não teve adversários à altura, o que permitiu à equipa convencer-se de que não tinha defeitos e, assim, elevar bastante os níveis de confiança que, no início, estavam bastante debilitados. Foram as circunstâncias externas, não a qualidade do Benfica propriamente dita, que ditaram o sucesso desportivo desta época. O Benfica de Jesus, tal como o do ano passado, é mais calculista do que nunca. Defensivamente, tornou-se uma equipa fortíssima, mas ofensivamente depende cada vez mais das características atléticas dos seus jogadores. Em termos de criatividade colectiva, foi mesmo o ano mais fraco dos cinco anos de Jesus.

Em Espanha, o Atlético de Madrid foi campeão. Já disse a maior parte das coisas que tenho a dizer sobre a equipa de Simeone, mas posso dizer mais uma ou outra. Continuo sem conseguir dar mérito a uma equipa cuja principal arma é a agressividade com que disputa os seus lances. Não o consigo não por não valorizar o empenho e a crença daquelas jogadores, mas porque acho que, em futebol, níveis de agressividade como os do Atlético de Madrid são contraproducentes. São-no no sentido de desposicionarem e desgastarem excessivamente quem os pratica, já para não falar do risco que é jogar 90 minutos com entradas a pedir cartão, e só podem ter gerado sucesso por factores alheios ao jogo. Em primeiro lugar, pela conivência das equipas de arbitragem. Foram pouquíssimos os jogos do Atlético de Madrid a que assisti em que não ficasse um ou dois jogadores por expulsar. Em segundo lugar, porque os adversários foram bem mais fracos do que em anos anteriores. Por fim, porque a fragilidade dos adversários e a possibilidade do título no horizonte criaram a ilusão aos jogadores de que eram melhores do que são, o que os fez transcenderem-se. O Atlético de Madrid foi campeão e Simeone é hoje um dos treinadores mais aplaudidos na Europa. Individualmente e colectivamente, contudo, a equipa é banalíssima. Há jogadores com futuro, mas são poucos: Courtois, Arda, Adrián e Oliver, principalmente, sendo que os últimos dois praticamente nem foram opção. Colectivamente, não há um princípio de jogo que se possa dizer que seja extraordinário. Ofensivamente, então, desafio mesmo a que me digam que tipo de jogadas é que a equipa privilegia. Assim que as coisas começarem a correr menos bem, a confiança com que chegaram até ao topo evapora-se. E é nessa altura que a verdadeira qualidade ficará à vista. A minha previsão é de que esse momento não tardará.

Em Inglaterra, igualmente, o ano foi muito fraco. Como previa há um ano, a reforma de Alex Ferguson e o regresso de Mourinho iam fazer com que o campeonato inglês fosse mais disputado do que tinha sido nos últimos anos. Não esperava, porém, que, além de disputado, fosse tão mal disputado. Wenger continua a ser pouco perspicaz, em termos defensivos, e isso custou-lhe mais um campeonato. Andou durante muito tempo na frente, mas não teve estofo, na recta final da prova, para preparar a equipa para ser campeã. Ao contrário, todavia, do que se conjecturava, o seu Arsenal esteve mais perto dos principais candidatos, o que comprova que, quando o plantel se mantém, a tendência é tornar-se melhor. A próxima época, não perdendo ninguém, mostrará um Arsenal mais experiente e certamente mais capaz de se impor quando as coisas correrem menos bem. Mourinho foi a principal desilusão (tendo em conta que de André Villas-Boas, depois do que fizera no ano anterior, dificilmente esperava mais do que meia temporada em Londres) e o Chelsea, repleto de jogadores talentosos, acabou a temporada a jogar à Di Matteo. Mata fora o melhor jogador do Chelsea nos últimos dois anos, e foi o primeiro a ser ostracizado por Mourinho. Seguiu-se Óscar. Sobrou Hazard, o que é manifestamente pouco. Abdicar de dois dos três jogadores mais criativos da equipa é de uma estupidez inacreditável. Mourinho pode continuar a ser um treinador atento, muito esperto e competitivo, mas, depois da lobotomia, deixou de pertencer ao restrito grupo dos melhores treinadores do mundo. O Chelsea só não foi campeão porque Mourinho já não é Mourinho. Pellegrini não é um treinador genial, mas é um treinador com uma ideia de jogo interessante. Conseguiu ser campeão porque o principal adversário, pelo menos em termos de recursos, andou o ano inteiro a jogar como uma equipa pequena. Sobre David Moyes e o que aconteceu ao Manchester United, francamente, não me surpreende. O seu Everton foi sempre uma equipa deprimente, e era natural que não conseguisse melhor em Manchester. Conseguir ficar atrás da sua antiga equipa, agora bem melhor treinada, aliás, foi obra. Sobre Brendan Rodgers, não tenho uma opinião muito formada. Não vi muitos jogos do Liverpool, mas os que vi não me entusiasmaram particularmente. É uma equipa competitiva, muito agressiva, e que me parece beneficiar disso por jogar em Inglaterra. Mas não vejo uma equipa criativa, capaz de resolver problemas complicados, e com uma ideia de jogo clara, que não se baseie unicamente em recuperar a bola em zonas adiantadas ou em atacar vertiginosamente. É uma espécie de Atlético de Madrid, ainda que não tão agressiva e com menos qualidade individual, que dependerá muito, no futuro, daquilo em que os jogadores puderem acreditar.

Em ano de estreia na Alemanha, Guardiola fez muitas coisas boas, mas podia ter feito mais. Em termos de títulos, francamente, foi uma época muitíssimo positiva. Ser campeão a 7 jornadas do fim, vencer a Taça e alcançar as meias-finais da Liga dos Campeões é muito bom, e dificilmente se podia pedir mais. Em termos de evolução de ideia de jogo, também me parece irrefutável que este Bayern se tornou mais forte e mais dominador do que era, ainda que não tenha ganho tanto. Faltou, no entanto, uma coisa que, a meio da época, parecia mais ou menos evidente e possível, a capacidade de a equipa continuar a evoluir num modelo de jogo tão exigente como aquele que Guardiola propõe. A minha opinião é a de que Guardiola sentiu demasiadas pressões e, a meio da temporada, não obstante a equipa estar cada vez mais sólida e cada vez mais capacitada para jogar como pretendia, decidiu fazer a vontade a quem o criticava. Aproveitando-se da vantagem no campeonato, começou a preparar a equipa para jogar como jogara em anos anteriores, arriscando menos quando em posse, e isso fez com que os bávaros parassem de aprender a jogar dentro de um modelo que exige coisas que só com muita prática se aprendem. Pareceu-me, porém, que Guardiola nunca se satisfez com isso, e a verdade é que foi em alguns jogos mais exigentes que voltou às suas ideias arrojadas. Na Liga dos Campeões, por exemplo, nunca jogou com dois médios de perfil, como o passou a fazer na segunda metade do campeonato. O que aconteceu foi que, nos dois únicos jogos em que se exigia perfeição à equipa em posse, os bávaros não conseguiram ser perfeitos. E não o foram, essencialmente, porque a exigência de Guardiola na segunda metade da época não foi suficiente. Jogaram de acordo com uma ideia de jogo boa, mas sem o devido nível de preparação para ela. Sem essa preparação, e sem a sorte do jogo que o Real Madrid acabou por ter, o Bayern acabou por desconcentrar-se e terminou a eliminatória dando uma imagem que não é a verdadeira imagem da equipa. Não sei se Guardiola prepara grandes mudanças no plantel para a época que vem, mas o mais importante seria tentar convencer os jogadores de que, apesar do desaire, aquela é a melhor maneira de serem uma equipa de futebol.

A principal prova do futebol europeu foi, talvez, o espelho mais fiel da tenebrosa temporada futebolística que se viveu este ano. Desde jogos horripilantes, como a primeira mão da eliminatória que opôs o Atlético de Madrid ao Chelsa, a decisões dramáticas no tempo regulamentar, como o povo tanto gosta, esta edição da Liga dos Campeões teve mais a ver com religião do que com futebol propriamente dito. As equipas que melhor futebol apresentaram foram sendo eliminadas, fosse pelo azar ditado pelo sorteio, como o Manchester City e o Arsenal, fosse por cobardia, como o PSG, fosse por erros próprios ou porque o futebol, em última análise, é um jogo que se presta a isso, como o Borussia de Dortmund ou o Barcelona, e nas meias-finais só já havia uma equipa cujo futebol era minimamente interessante. Quando, nas quatro semi-finalistas, há apenas uma das seis equipas que melhor futebol mostraram, pouco mais há a dizer. O Real acabou por vencer a décima e foi o menos mau que poderia ter acontecido. A equipa continua longe de jogar bem, mas consegue juntar um leque de jogadores que, do ponto de vista individual, pode ser decisivo. Foi-o, de facto, nos quartos de final e nas meias-finais, e foi por esse leque de individualidades que marcou presença na final. Há, no entanto, muito, mas mesmo muito, a melhorar no ano que vem, sobretudo porque a ambição de ganhar uma competição que não ganhavam há largos anos, o principal dínamo emocional da equipa esta temporada, já não existe, e porque há uma série de jogadores (Ronaldo à cabeça) cuja idade forçará a que o seu rendimento seja, a partir de agora, tendecialmente inferior.

terça-feira, 4 de março de 2014

Três Apontamentos

No fim-de-semana passado, sem ninguém saber porquê, nem mesmo o seu treinador, Miguel Rosa ficou na bancada e não defrontou o antigo clube. O Benfica ganhou sem jogar bem e beneficiou de um erro do árbitro, mas continuo a achar que ninguém deu importância àquilo que realmente importa. Maus jogos e vitórias à custa de foras-de-jogo mal tirados acontecem a toda a hora. Que um jogador que andou claramente a ser queimado nas últimas cinco épocas se tenha desvinculado do clube que andou a tentar acabar com a sua carreira e que, ainda assim, continue a ser queimado é que me parece motivo de uma investigação. Se houvesse jornalismo a sério em Portugal, e se por algum milagre parte desse jornalismo fosse dedicado ao jornalismo desportivo, andava meio país de volta de Miguel Rosa, dos dirigentes do Belenenses e dos Carraças que para aí andam. É inacreditável que um dos mais promissores jogadores da sua geração, mesmo tendo conseguido libertar-se do vínculo com o clube ao qual deu mais de metade da vida, continue a ser prejudicado por, de algum modo, ter pisado os calos a alguém com suficiente poder para lhe arruinar a carreira. Fora das quatros linhas, o futebol são hienas. Como tenho opiniões controversas acerca do que fazer a hienas, abstenho-me de dizer mais do que isto.

No mesmo fim-de-semana, uma paulobentice por um discípulo. O futebol das equipas de Abel é tão pobre que ficar do lado do treinador, por mais razão que possa ter, me parece idiota. Não sei o que se passou, e na verdade não preciso. A ser verdade o que foi noticiado, Iuri Medeiros entrou em campo na segunda parte, provavelmente já amuado, e não mostrou muita vontade, sobretudo em defender. Devo dizer que o simples facto de um dos mais talentosos jogadores da equipa ficar no banco me parece mais grave do que qualquer amuo de um miúdo de 20 anos. O problema de Abel é que nunca foi muito talentoso. Quando se tem talento, e se vê outros que não o têm a jogar no lugar de quem o tem, é difícil arranjar motivação. Alegam os mais conservadores que poder um dia jogar na equipa principal devia ser motivação suficiente para Iuri. Quem o alega não sabe o que é jogar futebol, não sabe o que é ter consciência de que se é muito melhor do que certos colegas e ser preterido porque esses colegas são mais "esforçados", não sabe o que é ter expectativas quanto à progressão numa carreira curta como a de jogador de futebol e sentir, semana após semana, que essa progressão depende de quem não percebe nada do jogo, etc.. Iuri Medeiros é um dos melhores jogadores da sua geração. Tem mau feitio? É irreverente? Acha que é vedeta? Estes jogadores motivam-se pondo-os a jogar, dando-lhe responsabilidades acrescidas. Ninguém com o perfil dele fica melhor jogador por ser castigado. Os castigos vão apenas fazer com que se sinta mais revoltado e com menos vontade de mostrar o que vale. Se querem ensinar-lhe alguma coisa, a ser solidário, por exemplo, façam com que se sinta responsável por alguma coisa: dêem-lhe a responsabilidade de bater os cantos, de usar a braçadeira de capitão, etc.. Enquanto não compreenderem que os jogadores de futebol, nos dias que correm, não cumprem deveres só porque é isso que devem fazer, não compreenderão nada e continuarão a desperdiçar talentos. Para que alguém como Iuri faça em campo o que Abel gostaria que ele fizesse, era preciso que Abel o convencesse de que ele, mais do que um dever a cumprir, tem uma responsabilidade para com ele mesmo. Mas isso, dado o perfil de treinador de Abel, é coisa que dificilmente será capaz de fazer. Esperemos, para o bem de Iuri e do futebol português, que Abel não dure muito tempo nestas funções.

Muito se tem falado do Atlético de Madrid de Diego Simeone esta época. A minha opinião mantém-se mais ou menos a mesma, independentemente de este ano estar envolvido na luta pelo título. Reconheço que, defensivamente, o Atlético é uma equipa que raramente se desorganiza, que defende com muitos homens junto da bola, e que sabe escolher os momentos de pressão. Reconheço também que essas são as únicas virtudes da equipa. O resto é fé, muita fé, níveis de confiança altíssimos, e a equipa mais parecida com o Boavista de Jaime Pacheco desde que deixaram de permitir dez entradas acima do joelho por jogo. O desafio deste fim-de-semana, frente ao rival de Madrid, tirou todas as dúvidas. Mourinho tinha construído uma equipa de caceteiros (até Ozil batia), uma equipa que só com muita boa vontade dos árbitros, sobretudo nos jogos contra o Barcelona, era capaz de terminar a partida com onze jogadores. Passado o período de Mourinho, essa equipa perdeu boa parte desses maus hábitos, salvo talvez os dois animais que jogam como defesas centrais. Devo dizer, porém, que essa equipa, ao pé do Atlético de Madrid de Diego Simeone, era uma equipa de escuteiros. Ao intervalo, este fim-de-semana, quantos jogadores do Atlético de Madrid teriam conseguido permanecer em campo, com um árbitro rigoroso? O Atlético entra em campo com onze arruaceiros, e a arruaça é, sem sombra de qualquer dúvida, a arma pela qual conseguem nivelar as suas partidas. Tudo espremido, o futebol do Atlético de Madrid de Simeone dava talvez para andar a lutar pela manutenção (em termos colectivos, claro). Valem os agarrões, os puxões, as entradas violentas, a agressividade bem à margem das leis, a pressão constante, intimidatória, mesmo, sobre os árbitros, etc.. O Atlético ganha os seus jogos, geralmente, porque empurra - literalmente - os adversários para o seu último reduto, acabando por marcar nalgum lance confuso, num ressalto, ou numa perda de bola qualquer. Raramente se vêm jogadas pensadas. Vencem pelo desgaste, pela garra, pela provocação, pela dureza física. O Boavista de Jaime Pacheco também não jogava futebol. Confesso, todavia, que julgava que equipas que confundem futebol com lutas de galos tivessem os dias contados. Infelizmente, não têm. De tempos a tempos, lá aparece um arruaceiro, secundado por outros arruaceiros, a comandar onze arruaceiros e a gozarem da complacência de quem tem medo de arruaceiros. Como se viu no passado, equipas assim duram enquanto durar aquilo que as anima: a crença de que podem superar-se e a complacência de quem os deixa jogar de acordo com leis diferentes. Quando se acabarem estas coisas - digamos assim - acaba-se tudo. A Diego Simeone auguro, por isso, pouco mais do que augurava a Jaime Pacheco há década e meia: um ou outro título no currículo, talvez um contrato num clube com maiores aspirações, um resto de carreira  repleto de fracassos sucessivos e a posteridade recordando-se eternamente do quão feio era o futebol das suas equipas.

domingo, 29 de setembro de 2013

O Caso Cardozo

Muito se falou do caso Cardozo durante o defeso, o que me levou a planear um texto sobre o assunto que, por falta de tempo e oportunidade, acabei por nunca escrever. Embora o caso, pelo menos internamente, pareça resolvido, continua a ser motivo de conversa, sobretudo entre aqueles que, provavelmente para satisfazerem frustrações pessoais, se têm tentado aproveitar de tudo e mais alguma coisa para atacar a equipa técnica, a direcção ou o clube encarnado. Nos últimos dias, por exemplo, ouvi várias opiniões favoráveis à dispensa do paraguaio, face ao sucedido, em nome de um bem maior que seria a dignidade do clube, a coesão do grupo ou o normal funcionamento da estrutura. A minha opinião acerca do Benfica, da sua direcção ou da competência da equipa técnica é absolutamente irrelevante para o que vou dizer, pelo que me abstenho de fazer juízos a estas entidades respeitantes, acerca das decisões tomadas neste caso. Ora, sobre o caso em concreto, confesso que nunca percebi bem a teoria por detrás do argumento, aliás absolutamente consensual em praça pública, de que um jogador que põe em causa a autoridade de um treinador deve ser imediatamente afastado do grupo, por descredibilizar o treinador e, por arrasto, enfraquecer a confiança dos restantes elementos do grupo naquele que o chefia. Na verdade, não compreendo a teoria porque não compreendo o argumento. E não compreendo o argumento porque não compreendo as diferentes premissas que o sustentam, a saber, 1) a convicção de que a força de um grupo depende da confiança que os diferentes elementos do grupo depositam naquele que o chefia e 2) a convicção de que a acção de um jogador pôr em causa a autoridade de um treinador produz necessariamente, aos olhos dos restantes elementos do grupo, o efeito da descredibilização desse treinador e a desconfiança generalizada acerca das suas competências enquanto tal.
A respeito da primeira premissa, posso talvez contra-argumentar lembrando que não parece haver grande diferença, pelo menos à partida, entre uma equipa inteira desconfiar das competências do treinador e a equipa inteira desconfiar das competências do guarda-redes dessa equipa. Isto é, a confiança de um grupo depende tanto da confiança no seu líder quanto da confiança em qualquer um dos colegas. Num grupo, o líder não tem uma posição privilegiada senão para liderá-lo. É verdade que as decisões de um líder afectam cada um dos elementos do grupo. Mas tenho muitas dúvidas que um mau guarda-redes não possa afectar ainda mais a confiança de cada um deles. Sou, aliás, da opinião, contrária à opinião da maioria das pessoas que conheço, que o problema do Sporting de José Peseiro foi muito menos a falta de competências para liderar um grupo do que a sucessão de fífias do central Hugo e do guarda-redes Ricardo, sobretudo no final da temporada. A força de um grupo depende de muitas coisas, das quais a confiança no treinador é apenas uma parte. E um bom treinador, a esse respeito, tratará sempre de fazer com que os seus jogadores desenvolvam mais a confiança em si próprios e uns nos outros do que propriamente na figura a que têm de obedecer.

A segunda premissa é mais importante, para o argumento contra Cardozo, e é também - parece-me - mais consensual. Em primeiro lugar, por que carga de água é que as acções de um jogador modificam necessariamente a opinião ou as crenças de outros jogadores? Será que os vários episódios de indisciplina de Mario Balotelli em Inglaterra alguma vez fizeram com que os restantes jogadores do City mudassem de opinião acerca das competências de Roberto Mancini? Para o mal ou para o bem, Mancini continuou a ser Mancini, depois de cada um desses episódios. E, mais ainda, continuaria a ser o mesmo de sempre, perdoando-o, como acabou invariavelmente por perdoar, não obstante os castigos que lhe aplicava, ou não o perdoando. É preciso muito mais do que um acto isolado de um único jogador para mudar a opinião acerca de um treinador. Em segundo lugar, é contestar uma decisão de alguém, ainda que de forma veemente, uma forma de pôr em causa a confiança que outras pessoas depositam nesse alguém? Sendo franco, se fosse treinador gostaria que os meus jogadores contestassem boa parte das minhas decisões. Não por causa daquela treta de que o inconformismo é sinal de empenho e vontade de ajudar. A razão é outra e reside no facto de acreditar que o sucesso de uma relação entre um superior e um subordinado depende mais do respeito dos subordinados pelas ideias do superior do que pelo respeito da sua posição superior. Embora vivamos em democracia há praticamente quatro décadas, o espírito democrático, em Portugal, continua a ser praticamente nulo, e poucos haverá que concordarão com esta perspectiva. Do meu ponto de vista, contudo, a verdadeira confiança conquista-se com diálogo, com justificações de acções, com persuasão. Conquistando-se dessa forma, não se perde só porque alguém decide contestar uma decisão.
Para ser bruto, há vestígios de um certo saudosismo fascista em todos aqueles que se indignaram contra o que fez Cardozo. Mas há também, parece-me, uma absoluta incompreensão acerca do que é ser um jogador de futebol, incompreensão esta, aliás, absolutamente idêntica àquela que se regista quando alguém diz que um jogador comete uma imprudência quando, sabendo que pode ser admoestado, tira a camisola para festejar um golo ou protesta uma decisão do árbitro, ou ainda idêntica àquela que ocorre quando se condena um jogador por protestar por ter sido substituído ou por o treinador não o utilizar. Durante os 90 minutos, não se é a mesma pessoa, nem fisiologicamente, nem emocionalmente; há adrenalina envolvida; há empenho, ambições, vaidades em causa. De resto, desentendimentos destes ocorrem com muita frequência, numa equipa de futebol, e não deveriam, por isso, ter importância suficiente para motivar tanta celeuma. Que tenha acontecido em público é apenas uma contingência dos tempos que correm, uma vez que cada vez menos coisas escapam às objectivas e aos jornalistas, e não deve ter maior gravidade por isso. O mais importante deveria ser a equipa; não a alegada desautorização do seu líder. É engraçado, por fim, que a primeira obra literária da História da Cultura Ocidental contenha já a evidência de que afastar de um grupo quem se insubordina só porque se insubordina pode não ser o melhor para o grupo. Se aquele que se insubordina faz realmente falta ao grupo, como Aquiles fazia aos Aqueus, pode até ser a pior a decisão possível. Aliás, não é nada claro, na Ilíada, que a confiança dos Aqueus em Agamémnon, o líder deles, fosse superior à confiança deles em Aquiles, o melhor dos guerreiros entre eles. Aos Aqueus, a insubordinação de Aquiles perante Agamémnon (uma insubordinação pública, diga-se), por pouco não lhes custava a guerra e a glória. Mas, 2800 anos depois, parece que continuamos sem aprender a lição de Homero; continuamos a preferir o "respeitinho, que é bonito", a disciplina, a boa educação, a serventia; continuamos a achar que coisas tão triviais como uma contestação pública de um chefe se devem configurar como ofensas de extrema gravidade. Os gregos, pelo menos os gregos homéricos, estavam a borrifar-se para bagatelas deste género. Pelo menos neste aspecto, eram francamente mais espertos do que os homens de hoje. A única coisa indispensável a um herói era a arete, a virtude ou a excelência, algo que, aplicado ao caso futebolístico que motivou a comparação, se traduziria no seguinte: a única coisa indispensável num jogador de futebol é o talento. O resto é conversa fiada. E gente a quem falta talvez um pouco de Grécia.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O Síndroma de Mourinho

Acontece a quem valoriza menos as convicções do que o treino, a metodologia, a capacidade de agarrar num conjunto de jogadores e de prepará-los de acordo com as competências de cada um, passar por ser um treinador cujas equipas jogam de determinada forma, com um determinado estilo, quando na verdade é um treinador cujas equipas apenas se caracterizam pela competitividade que consegue incutir-lhes. Já aqui escrevi sobre isso, a respeito de Mourinho, mas posso repeti-lo, para que se saiba do que falo. No Porto e nos primeiros anos de Chelsea, Mourinho valorizava coisas que agora já não valoriza. Pode nunca ter abdicado da competitividade, da intensidade, da compenetração táctica do colectivo, mas as suas primeiras equipas eram mais dominadoras com bola do que o são agora. A partir do terceiro ano no Chelsea, tudo mudou. Sempre achei, e continuo a achar, que a principal razão para tal foi a obsessão em conquistar nova Liga dos Campeões, troféu que lhe fugiu nos dois primeiros anos de Chelsea pelos detalhes de uma ou outra eliminatória. A partir desse ano, Mourinho passou a preparar as suas equipas não para o longo prazo, não para serem regulares, exibindo um futebol de posse, mas para serem equipas calculistas, especialmente aptas para os momentos cruciais da época. Custou-lhe isso não só a perda do campeonato inglês, logo nesse ano, mas sobretudo a perda da identidade. O seu Chelsea não voltou a ser o que fora nos anos anteriores (até o 442 clássico experimentou), passou a privilegiar dois médios defensivos, em vez de um, e por onde quer que tenha passado (Inter e Real Madrid), não obstante o que conseguiu, nunca mais foi capaz de montar uma equipa cuja superioridade, em termos de qualidade de jogo, fosse evidente. Obviamente, não deixou de ser um treinador competente, capaz de ter um conjunto de jogadores moralizados e perfeitamente conscientes do seu papel em campo. Deixou foi de ter um modelo de jogo distinto, que se impusesse naturalmente aos dos adversários, que dependesse pouco da capacidade de concentração da equipa nos momentos decisivos da época, assim como da sorte e de todos os outros imponderáveis.

Para efeitos de argumento, chamarei a esta mudança de crenças (a mudança da crença nas convicções para a crença na versatilidade e na adaptabilidade) o síndroma de Mourinho. Nada do que tenho para dizer neste texto diz, no entanto, respeito a Mourinho senão o facto de usar o seu exemplo para diagnosticar noutros o que nele se passou. Há 3 semanas, haveria poucos que hesitariam perante a seguinte pergunta: qual foi o melhor dos quatro anos de Jesus no Benfica? Por essa altura, preparava-me para escrever um texto para defender que, ao contrário do que muito gente com certeza acharia, a melhor época de Jorge Jesus não era a presente, mas a primeira de todas. Independentemente dos resultados malogrados, continuo a achar que esta época do Benfica, em termos de rendimento, foi muito boa e que será difícil o Benfica encontrar um treinador capaz de fazer com que a equipa tenha um rendimento tão alto. Mas, ao contrário do que muita gente acredita, não creio que uma época de rendimento alto implique que a época tenha sido boa. A meu ver, esta foi, aliás, a pior época do Benfica, desde que Jesus chegou. Não porque não tenha ganho nada e não porque tenha prometido e falhado tudo. Foi a pior época simplesmente porque foi a época em que a equipa jogou pior. É verdade que não escrevi muito sobre isso ao longo da época, mas o Benfica de Jesus, este ano, foi sobretudo uma equipa muito competitiva, capaz de manter os índices de concentração elevados, e que se conseguiu transcender num ou noutro jogo importante, sobretudo na Europa. Não foi, porém, uma equipa com um fio de jogo agradável, não defendeu tão bem quanto noutras épocas, não foi minimamente criativa, e acabou por pagar tudo isso da pior maneira possível. O que proponho de seguida é apresentar as razões pelas quais isto foi assim.

Na minha opinião, aconteceu com Jesus o que aconteceu com Mourinho, ou seja, mudou de crenças. Tal como com Mourinho, este diagnóstico só é possível ao final de algumas épocas. É verdade que já na sua primeira época lhe apontávamos aqui como defeito o excesso de vertigem com que jogara não só no Benfica, mas também no Braga. Embora reconhecêssemos às suas equipas enormes virtudes, agradava-nos mais o seu Belenenses, com um futebol mais pausado, de toque mais curto, em 442 losango, do que o seu Braga ou o seu Benfica. Ao contrário do que seria talvez expectável, os poucos defeitos que identificávamos no modelo (excesso de velocidade e intensidade de jogo, incapacidade de gerir o ritmo da partida, demasiada amplitude e espaço no meio-campo, problemas de transição defensiva e pouca criatividade no último terço do terreno) foram precisamente os aspectos em que Jorge Jesus passou a depositar mais confiança, nas épocas seguintes. Ramires, que não era um extremo e, por isso, jogava mais por dentro, para além de conferir uma qualidade em transição notável, foi substituído por Salvio, e o 4132 passou a ser ainda mais aberto do que era; a dupla Aimar-Saviola, que na primeira época fora o principal motor da criatividade da equipa em espaços muito povoados, foi desfeita e pouquíssimo utilizada a partir de então; a própria pressão alta, uma das maiores bandeiras de Jesus quando chegou ao Benfica, passou a ser feita bem mais atrás. Estes três aspectos, na altura, faziam pouco sentido. Por que razão haveria Jorge Jesus de modificar tais coisas, sendo que algumas delas eram a sua imagem de marca? A resposta a esta pergunta só se tornou clara para mim no decorrer da presente época, e explica-se, como o fiz acima, por uma mudança de crenças.

É claro para mim, agora, que Jesus já não é o mesmo treinador que chegou ao Benfica. Acima de tudo, já não é o treinador convicto que era. Se alguma coisa o caracterizava, era a convicção nele próprio e no futebol em que acreditava. Essa convicção era de tal forma pronunciada que, não raro, descambava em fanfarronice e precipitações. O insucesso europeu da primeira época, com o seu Benfica, avassalador do lado de cá da fronteira, a denotar debilidades tácticas e alguma inexperiência fora de portas, mas também, porventura, as sucessivas derrotas com o Porto de Villas-Boas na época seguinte (entre elas, a perda da Supertaça, uma derrota pesada no Dragão, a derrota em casa que permitiu os festejos do título na Luz, e a derrota em casa na segunda mão das meias-finais da Taça de Portugal, perdendo a vantagem de 2 golos que trazia da primeira mão), a diferença de 21 pontos para o mesmo Porto, e a saída prematura da Liga dos Campeões num ano em que afirmara ser candidato a vencê-la terão sido machadadas demasiado fortes nas convicções de Jorge Jesus. Se não imediatamente no princípio da segunda época, pelo menos a meio dela já Jesus sentia que o insucesso lhe impunha a necessidade de modificar o seu modelo. Todas as modificações que se verificaram desde essa altura são uma resposta a essa imposição. Jamais, antes desse momento, Jesus pensaria em entrar em partidas a defender atrás da linha de meio-campo e em conceder toda a iniciativa do jogo ao adversário, como o fez variadas vezes esta época; jamais especularia sem bola, encontrando-se a vencer apenas por um golo, como o seu Benfica quase sempre fez ao longo desta temporada. O Benfica da primeira época de Jesus era voraz. Evidentemente, essa voracidade causou, num ou noutro momento de inexperiência, alguns dissabores. Mas, no longo prazo, foi o que garantiu não só o sucesso mas também o espectáculo. Atrevo-me até a dizer que, com o Jorge Jesus dessa primeira época no banco, esta época, o Benfica não teria perdido o título no Dragão, pelo menos não da maneira que perdeu, e não teria perdido a final da taça depois de estar em vantagem.

Essa equipa podia ter, de facto, momentos de ingenuidade, mas era capaz de golear com uma regularidade de que nenhuma outra equipa de Jesus, desde então, foi capaz. Depois desse ano, ou talvez no decorrer da época seguinte, Jorge Jesus sentiu que tinha de ser mais calculista, que tinha de fazer com que a sua equipa aprendesse a gerir vantagens sem bola. Durante muito tempo, Jesus identificou-se com a escola holandesa, e foi assim que foi campeão logo no ano em que chegou à Luz. Depois disso, italianizou-se. Não só nunca mais teve os êxitos desportivos desse ano como, sobretudo, nunca mais soube pôr o Benfica a jogar como nesse ano. Se, no primeiro ano, o seu Benfica pecava por alguma verticalidade, não sabendo identificar com exactidão os momentos do jogo em que se pedia uma gestão da bola e da velocidade mais correcta, o seu Benfica de hoje é uma equipa absolutamente vertical. É absolutamente vertical não no sentido de ser vertiginosa (a esse respeito, não o é tanto, é verdade), mas no sentido de ser muito menos competente a jogar por dentro, a construir horizontalmente, a tabelar, a criar espaços através de movimentações sem bola, etc.. Desde que Aimar e Saviola deixaram de jogar juntos, por exemplo, que não há criatividade, em termos colectivos. Os momentos de criatividade que há são individuais, e tudo o que a equipa consegue consegue-o às custas da intensidade, da competitividade e do talento de cada um dos jogadores. Para combater o insucesso, Jorge Jesus transformou um modelo no qual, apesar de tudo, havia espaço para a imaginação, para a inteligência e para a criatividade num modelo que privilegia unicamente a concentração e a atitude competitiva, a mecanização dos processos de jogo e as faculdades motoras dos jogadores. Está, por essa razão, mais igual que nunca a José Mourinho. Não deixa de ser irónico, por isso mesmo, que, apesar das expectativas que se criaram quer em torno do Benfica, quer em torno do Real Madrid, os dois tenham perdido este ano todas as competições pelas quais pugnaram. Seria bom, portanto, que este insucesso os fizesse reflectir, como outrora o insucesso lhes motivou o abandono das primeiras convicções.