É já excessivamente sabido que, na concepção peculiar que temos do jogo por aqui, nenhum jogador, em nenhuma posição salvo talvez a de guarda-redes, tem funções específicas. Como concebemos uma equipa como um colectivo perfeito, toda e qualquer função deve ser do colectivo. A cada elemento do colectivo resta agir de acordo com a posição em que joga. Assim, ninguém tem a função de marcar golos, ou de pautar o jogo ofensivo da equipa, ou de recuperar bolas, ou de marcar adversários. Todas as funções são da responsabilidade do colectivo, entidade abstracta que consiste na relação entre os elementos que o compõem. Não estou a dizer com isto que essas funções devem ser alcançadas pela soma do esforço de cada um dos elementos. É mais do que isso. Devem-no ser pela própria relação entre os elementos. Perceber isto pode parecer simples, mas acredito que não é. Para dar um exemplo prático, sempre que se diz que o jogador mais criativo de uma equipa deve jogar mais recuado, em zonas de menor densidade, para poder pegar no jogo, comete-se necessariamente o erro de pensar que, por ser o jogador mais habilitado a conduzir os ataques da sua equipa, deve jogar onde o pode fazer com mais à-vontade. Discordo inteiramente disto. Isto é atribuir a esse jogador um determinado papel dentro do conjunto. Nenhum criativo deve ser responsável por assumir a condução do jogo ofensivo. Isso é tarefa do conjunto. Da mesma maneira, sempre que se diz que um jogador, em trabalho defensivo, deve ocupar uma determinada zona, está a atribuir-se a esse jogador a responsabilidade de vigiar uma zona específica. Não concordo com essa forma de defender. Nenhuma zona é da responsabilidade de ninguém, como nenhum adversário é da responsabilidade de ninguém. Defender à zona não tem nada a ver com cada jogador ter uma zona para vigiar. Tem a ver com relacionar-se correctamente com os colegas, com a bola, com a baliza e com o espaço.
Dados estes exemplos e tendo-se explicado sucintamente a ideia de nenhum jogador ter funções em campo, gostaria de partir para o caso particular dos laterais. Para muita gente, um lateral deve ter tarefas como subir pela faixa, cruzar, dobrar os centrais, etc. Não concordo com esta visão redutora da coisa. Um lateral, como outro jogador qualquer, tem por missão ocupar a sua posição e tomar a melhor decisão a cada momento. As suas tarefas são, pois, coisas gerais, que se pedem a todos os jogadores. A diferença está no facto de o seu espaço de acção não ser o mesmo. Assim, é a posição em relação aos colegas que é diferente. E é, portanto, o espaço geográfico que deve ocupar que determina o seu comportamento e não o contrário. Se é lateral, deve ser o último a fechar, na linha defensiva, quando a jogada se desenrola do lado contrário; deve ser ele a pressionar o portador da bola quando a jogada se desenrola do seu lado; deve servir de apoio recuado quando um colega tem a bola no seu flanco; deve dar profundidade quando a jogada se desenrola do lado contrário; etc. Ou seja, toda a sua acção é determinada não por ter tarefas específicas, mas por jogar numa posição que o obriga a agir de determinada maneira porque se relaciona de determinada maneira com o resto da equipa. Ora bem, assim sendo, um lateral competente tem pouco a ver com um jogador potente fisicamente que consiga percorrer quilómetros pela faixa, ou com um jogador muito dotado tecnicamente, ou com um jogador que saiba cruzar como ninguém. Um lateral competente será aquele que se relacionar bem com a equipa, com a estrutura em que está inserido; será aquele que souber ser um apoio recuado quando um companheiro tem a bola na faixa, à sua frente; será aquele que souber dar profundidade quando é necessário dá-la; será aquele que souber fechar no meio quando o adversário ataca pelo lado contrário ao seu; será aquele que souber ocupar espaços em rearranjos defensivos motivados pela deslocação de um colega em acção de pressão; e será sobretudo aquele que, com bola, melhor servir as intenções de posse e circulação de bola da equipa em acção ofensiva.
Sem querer menosprezar as preocupações defensivas de um jogador, é em acção ofensiva que me parece importante interpretar a qualidade de um jogador. Isto porque, numa equipa que queira mandar no jogo, que queira assumir as despesas da partida, maior parte do tempo será passado em acção ofensiva. No que diz respeito, portanto, a um lateral, parece-me fulcral não só a capacidade de se movimentar sem bola, fornecendo apoios ou explorando a profundidade, como principalmente aquilo que faz quando tem a bola nos pés. Se a ideia, numa equipa que quer mandar no jogo, passa por ter, em quantidade e em qualidade, a bola, todos os jogadores devem ter por princípio a acção de preservar a posse de bola. Assim, com bola, um lateral deve ter por principal prioridade o vir para dentro, o jogar no meio, o dar nos médios. Ao contrário da grande maioria dos laterais, que prefere jogar ao longo da linha (o que dificulta significativamente a recepção de bola e prejudica a preservação da mesma), o lateral competente é aquele que pouco ou nada joga pela linha, que prefere jogar curto no meio, num médio ou no trinco. Dessa forma, a equipa em posse vai a um lado, regressa ao meio, vai ao outro, regressa ao meio. E com isto obriga o adversário a oscilar, abrindo espaços para progredir. Os laterais, numa equipa que jogue assim, deverão, por isso, ter por principal acção jogar para dentro e não insistir pela linha. Um lateral que o faça recorrentemente será sempre mais competente, do ponto de vista ofensivo, do que um lateral possante, bom no drible, capaz de acções individuais notáveis. O que está aqui em jogo é a competência colectiva do lateral em contraste com a sua competência individual. Privilegiar a sua competência colectiva é o modo de manter a coerência quanto à inexistência de funções em cada jogador da equipa.
Recuperando as principais características daquilo que considero um lateral competente, temos que deve ser 1) sem bola, um jogador capaz de perceber o espaço que deve ocupar em função dos colegas, seja em acção defensiva a fazer coberturas ou em acção ofensiva a fornecer apoios ou a dar linhas de passe e 2) com bola, um jogador interessado em manter a posse de bola, um jogador que jogue curto e para o meio. Dito isto, é para mim absolutamente incompreensível a desconfiança generalizada em relação ao lateral esquerdo argentino do Benfica, Shaffer. Desde o primeiro jogo de pré-época que Shaffer me impressionou pela positiva. Além dos atributos técnicos inegáveis e de a cruzar ser, provavelmente, o melhor lateral que passou pelo campeonato português nos últimos cinco anos, Shaffer revela preocupações colectivas acertadas e possui essa virtude, tão rara actualmente, de ter por primeira opção jogar para dentro, para um médio que vem buscar ou para o trinco poder rodar o jogo. Sem bola, é também perfeito a dar profundidade pelo seu corredor e funciona muito bem como apoio recuado quando é preciso. É verdade que, em termos defensivos, ainda pode melhorar, mas não tenho dúvidas que é, talvez a par de Fucile, o melhor lateral em Portugal no que diz respeito à qualidade que confere à posse e circulação de bola da sua equipa.
Jorge Jesus parece não confiar no argentino, possivelmente por ser para ele imprescindível que o seu lateral seja perfeito a defender. Mas além de perder tudo o que de bom, em termos ofensivos, Shaffer pode dar, e que é muito, não me parece convincente que o exemplo seja David Luiz, que a defender, como lateral, é uma perfeita anedota. César Peixoto será, provavelmente, aquele que merecerá a confiança imediata de Jesus. Admiro muitíssimo o ex-bracarense e acho que pode ser uma mais-valia para o Benfica, mas tenho sérias dúvidas que consiga dar ao Benfica o mesmo que Shaffer dá (sem contar com o potencial de evolução do argentino). E, depois, resta ainda saber se, em acção defensiva fará assim tanta diferença. Até porque aquilo que falta a Shaffer (e que não é assim tão grave quanto se tem dito) é o mais fácil de corrigir, isto é, o seu comportamento sem bola, quando tem de dar atenção apenas ao movimento dos colegas e perceber a evolução defensiva da estrutura em que está inserido. Seria mais grave se faltasse a Shaffer perceber o que é correcto fazer quando se tem a bola, pois as variáveis são maiores. Mas nisso o argentino parece-me insuperável. Peixoto é um jogador mais vertical e as suas rotinas de jogo são as de um médio ou de um extremo. É pouco provável que, enquanto lateral, tenha a preocupação de jogar para dentro tão acentuada quanto Shaffer. E isso prejudicará necessariamente a posse de bola encarnada. Se esse prejuízo será decisivo ou não, logo se verá.
Dados estes exemplos e tendo-se explicado sucintamente a ideia de nenhum jogador ter funções em campo, gostaria de partir para o caso particular dos laterais. Para muita gente, um lateral deve ter tarefas como subir pela faixa, cruzar, dobrar os centrais, etc. Não concordo com esta visão redutora da coisa. Um lateral, como outro jogador qualquer, tem por missão ocupar a sua posição e tomar a melhor decisão a cada momento. As suas tarefas são, pois, coisas gerais, que se pedem a todos os jogadores. A diferença está no facto de o seu espaço de acção não ser o mesmo. Assim, é a posição em relação aos colegas que é diferente. E é, portanto, o espaço geográfico que deve ocupar que determina o seu comportamento e não o contrário. Se é lateral, deve ser o último a fechar, na linha defensiva, quando a jogada se desenrola do lado contrário; deve ser ele a pressionar o portador da bola quando a jogada se desenrola do seu lado; deve servir de apoio recuado quando um colega tem a bola no seu flanco; deve dar profundidade quando a jogada se desenrola do lado contrário; etc. Ou seja, toda a sua acção é determinada não por ter tarefas específicas, mas por jogar numa posição que o obriga a agir de determinada maneira porque se relaciona de determinada maneira com o resto da equipa. Ora bem, assim sendo, um lateral competente tem pouco a ver com um jogador potente fisicamente que consiga percorrer quilómetros pela faixa, ou com um jogador muito dotado tecnicamente, ou com um jogador que saiba cruzar como ninguém. Um lateral competente será aquele que se relacionar bem com a equipa, com a estrutura em que está inserido; será aquele que souber ser um apoio recuado quando um companheiro tem a bola na faixa, à sua frente; será aquele que souber dar profundidade quando é necessário dá-la; será aquele que souber fechar no meio quando o adversário ataca pelo lado contrário ao seu; será aquele que souber ocupar espaços em rearranjos defensivos motivados pela deslocação de um colega em acção de pressão; e será sobretudo aquele que, com bola, melhor servir as intenções de posse e circulação de bola da equipa em acção ofensiva.
Sem querer menosprezar as preocupações defensivas de um jogador, é em acção ofensiva que me parece importante interpretar a qualidade de um jogador. Isto porque, numa equipa que queira mandar no jogo, que queira assumir as despesas da partida, maior parte do tempo será passado em acção ofensiva. No que diz respeito, portanto, a um lateral, parece-me fulcral não só a capacidade de se movimentar sem bola, fornecendo apoios ou explorando a profundidade, como principalmente aquilo que faz quando tem a bola nos pés. Se a ideia, numa equipa que quer mandar no jogo, passa por ter, em quantidade e em qualidade, a bola, todos os jogadores devem ter por princípio a acção de preservar a posse de bola. Assim, com bola, um lateral deve ter por principal prioridade o vir para dentro, o jogar no meio, o dar nos médios. Ao contrário da grande maioria dos laterais, que prefere jogar ao longo da linha (o que dificulta significativamente a recepção de bola e prejudica a preservação da mesma), o lateral competente é aquele que pouco ou nada joga pela linha, que prefere jogar curto no meio, num médio ou no trinco. Dessa forma, a equipa em posse vai a um lado, regressa ao meio, vai ao outro, regressa ao meio. E com isto obriga o adversário a oscilar, abrindo espaços para progredir. Os laterais, numa equipa que jogue assim, deverão, por isso, ter por principal acção jogar para dentro e não insistir pela linha. Um lateral que o faça recorrentemente será sempre mais competente, do ponto de vista ofensivo, do que um lateral possante, bom no drible, capaz de acções individuais notáveis. O que está aqui em jogo é a competência colectiva do lateral em contraste com a sua competência individual. Privilegiar a sua competência colectiva é o modo de manter a coerência quanto à inexistência de funções em cada jogador da equipa.
Recuperando as principais características daquilo que considero um lateral competente, temos que deve ser 1) sem bola, um jogador capaz de perceber o espaço que deve ocupar em função dos colegas, seja em acção defensiva a fazer coberturas ou em acção ofensiva a fornecer apoios ou a dar linhas de passe e 2) com bola, um jogador interessado em manter a posse de bola, um jogador que jogue curto e para o meio. Dito isto, é para mim absolutamente incompreensível a desconfiança generalizada em relação ao lateral esquerdo argentino do Benfica, Shaffer. Desde o primeiro jogo de pré-época que Shaffer me impressionou pela positiva. Além dos atributos técnicos inegáveis e de a cruzar ser, provavelmente, o melhor lateral que passou pelo campeonato português nos últimos cinco anos, Shaffer revela preocupações colectivas acertadas e possui essa virtude, tão rara actualmente, de ter por primeira opção jogar para dentro, para um médio que vem buscar ou para o trinco poder rodar o jogo. Sem bola, é também perfeito a dar profundidade pelo seu corredor e funciona muito bem como apoio recuado quando é preciso. É verdade que, em termos defensivos, ainda pode melhorar, mas não tenho dúvidas que é, talvez a par de Fucile, o melhor lateral em Portugal no que diz respeito à qualidade que confere à posse e circulação de bola da sua equipa.
Jorge Jesus parece não confiar no argentino, possivelmente por ser para ele imprescindível que o seu lateral seja perfeito a defender. Mas além de perder tudo o que de bom, em termos ofensivos, Shaffer pode dar, e que é muito, não me parece convincente que o exemplo seja David Luiz, que a defender, como lateral, é uma perfeita anedota. César Peixoto será, provavelmente, aquele que merecerá a confiança imediata de Jesus. Admiro muitíssimo o ex-bracarense e acho que pode ser uma mais-valia para o Benfica, mas tenho sérias dúvidas que consiga dar ao Benfica o mesmo que Shaffer dá (sem contar com o potencial de evolução do argentino). E, depois, resta ainda saber se, em acção defensiva fará assim tanta diferença. Até porque aquilo que falta a Shaffer (e que não é assim tão grave quanto se tem dito) é o mais fácil de corrigir, isto é, o seu comportamento sem bola, quando tem de dar atenção apenas ao movimento dos colegas e perceber a evolução defensiva da estrutura em que está inserido. Seria mais grave se faltasse a Shaffer perceber o que é correcto fazer quando se tem a bola, pois as variáveis são maiores. Mas nisso o argentino parece-me insuperável. Peixoto é um jogador mais vertical e as suas rotinas de jogo são as de um médio ou de um extremo. É pouco provável que, enquanto lateral, tenha a preocupação de jogar para dentro tão acentuada quanto Shaffer. E isso prejudicará necessariamente a posse de bola encarnada. Se esse prejuízo será decisivo ou não, logo se verá.