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terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Legado de Luis Enrique e outras coisas

1. O Fim de uma Era

Quando a época passada terminou, e o Barça de Luis Enrique conquistou os três principais títulos, tive o ensejo de escrever um texto que, por vários motivos, acabei por nunca escrever. O que queria ter dito na altura e não disse é o que, muito abreviadamente, direi agora. O Barça ganhou tudo e, para muitos, voltou ao domínio do futebol europeu. A minha opinião é ligeiramente diferente: o Barça ganhou tudo, e perdeu finalmente a hegemonia que teve na última década. Pode parecer um contrassenso, mas creio que as conquistas do ano passado são o ponto final de uma era que começou com a chegada de Guardiola ao clube. O futebol da equipa de Luis Enrique já não tinha muito a ver com aquele que Guardiola preconizava (e que Tito Villanova e Tata Martino, mal ou bem, mantiveram), e o sucesso desse futebol significa a ruptura decisiva com o passado. Correndo o risco de parecer incoerente, uma vez que defendo que esse futebol já não tinha muito a ver com a da grande equipa de há uns anos, acho que muito desse sucesso se deve ao que os jogadores aprenderam com Guardiola: muito do que seria o trabalho do treinador é dispensado pelo que os jogadores, em termos colectivos, ainda retêm dessa altura. O mérito de Luis Enrique nas conquistas da equipa é, aliás, muito reduzido. Além de um conjunto de jogadores que cresceram a fazer uma série de coisas que agora fazem de olhos fechados, contou com jogadores que, do ponto de vista individual, fizeram toda a diferença. Para dizer de outro modo, o Barcelona ganhou tudo como poderia ter perdido tudo e como várias equipas ganham tudo. Jupp Heynckes ganhou tudo pelo Bayern há uns anos, e não me parece que lhe deva ser dado um mérito especial. Há sempre alguém que tem de ganhar, e o ano passado calhou ao Barcelona. Ao ganhar desse modo, como ganharia qualquer outra equipa, o Barça voltou a ser uma equipa normal. E a hegemonia que teve, e que continuava a assustar toda a gente, acabou. Por outras palavras, foi a melhor equipa dos últimos dez anos, mas arrisco-me a dizer que não será a melhor dos próximos. Se o impacto de Guardiola se viu até ao ano que passou, culminando com o triplete de Luis Enrique, o impacto de Luis Enrique ver-se-á daqui a 5 anos, quando o Barça for uma equipa banal.

2. A Lesão de Messi

Há um pormenor que costuma ser negligenciado quando se fala nas conquistas europeias: as lesões. Os dois anos em que Guardiola não ganhou a Champions quando ao serviço do Barcelona foram pautados por lesões relativamente longas ou recorrentes de jogadores importantes: Ibrahimovic, Iniesta, Villa, etc.. A equipa de Luis Enrique teve um ano praticamente imaculado, a esse nível, e isso também foi decisivo. Foi-o, de modo evidente, na forma como pôde superar o Bayern de Guardiola, fustigado por lesões, mas foi-o também ao longo de toda a época. Não houve lesões de grande duração em nenhum jogador importante, e isso permitiu à equipa manter os seus índices de produtividade. Que o tenha sido não me parece, de modo nenhum, irrelevante. Repetir a sorte de uma época sem lesões é praticamente impossível, e creio que isso ditará um ano bem mais modesto em termos de conquistas. A primeira lesão importante aconteceu este fim-de-semana, e ainda não se sabem bem as consequências dela. Apesar de ser preferível perder Messi nesta altura, dois meses (mais um mês ou dois até recuperar o melhor ritmo) é tempo suficiente para que o Barça perca terreno, por exemplo, no campeonato. Messi, aliás, foi decisivo nos jogos decisivos da época passada, e o principal responsável pelo sucesso de Luis Enrique nas provas a eliminar (em vários jogos da Champions, concretamente contra o Bayern, e na final da Taça do Rei, por exemplo). Sem Messi, o Barça de Guardiola era só a mesma equipa menos o seu melhor jogador. Sem Messi, o Barça de Luis Enrique vale menos de metade.

3. Xavi e Iniesta

Apesar de ter perdido a titularidade a época passada, Xavi foi quase sempre utilizado por Luis Enrique. Quando jogava de início, o Barça era quase sempre melhor, apesar de praticamente ninguém conseguir ver isso. Quando entrava, a equipa passava automaticamente a jogar melhor. Ainda que em final de carreira, aquele que foi, muito possivelmente, o melhor jogador de sempre, no que diz respeito à tomada de decisão, mantinha uma influência incrível, e só aqueles que acham que o futebol requer os melhores atletas não eram capazes de percebê-lo. Como o futebol é dominado por essa gente, tornou-se praticamente consensual que a era de Xavi no Barça chegara ao fim. Tenho para mim que não foi só a era de Xavi que terminou. Com Xavi, foi-se também a melhor equipa de sempre. Aliás, restam dessa equipa poucos jogadores: Dani Alves, Piqué, Busquets, Iniesta e Messi. Com a saída de Xavi (e a de Pedro), a somar-se às saídas em anos anteriores de Thiago Alcântara e Fabregas, por exemplo, o futebol de toque curto, mais pensado do que corrido, chegou ao fim. O próprio Iniesta, se virmos bem, é um autêntico órfão em campo. Messi tem capacidades atléticas (e idade) que lhe permitem adaptar-se a um estilo de jogo diferente, e o entendimento com jogadores mais vertiginosos torna-se fácil. Iniesta não as tem, e o seu futebol eclipsa-se a cada dia que passa. Não quero ser mal entendido: esse futebol não se eclipa por  Iniesta já não ter capacidades físicas para mantê-lo vivo, mas porque já não está rodeado de colegas a quem interessa jogar o mesmo jogo. Cada jogador é aquilo que o rodeia. E Iniesta deixou de estar rodeado dos mais inteligentes. O Barça de Luis Enrique já não é o Barça de Xavi e Iniesta. Em tempos, num lance que não consigo situar (imaginava, erradamente, ter sido o lance em Old Trafford que permitira a Paul Scholes fazer o golo que eliminou o Barça nas meias finais da Champions de 2007/2008), Xavi falhou um passe decisivo à entrada da área por tê-lo feito sem perceber antecipadamente se o colega a quem passava a bola estaria à espera de recebê-la. Ninguém me compreendeu, porque para quase toda a gente não se deve passar a bola antes de olhar a ver se lá está o colega. Xavi, ao falhar esse passe, antecipava o Barcelona de Guardiola. Antecipava-o na medida em que antecipava aquilo que o Barcelona de Guardiola permitia a todos os jogadores, e em especial ao próprio Xavi: jogar de olhos fechados e passar sem precisar de perceber se o colega vai estar onde deve estar. Xavi passou a bola, nesse dia, para onde devia estar o colega. Só que o colega não estava lá porque não tinha sido ensinado a perceber antecipadamente onde Xavi queria que ele estivesse. O Barcelona de Guardiola fez-se sobretudo disto: todos pareciam saber com antecedência suficiente as intenções dos colegas. Numa equipa assim, ninguém superava Xavi. Tinha sempre mais passes que toda a gente, percorria sempre mais metros do que os outros. Sem bola, dava mais opções ao portador do que qualquer outro colega. Com ela, era sempre o mais eficaz, optasse pelo passe curto ou pelo passe longo. Agora que a equipa de Xavi e Iniesta já não existe, a única boa notícia é que estão os dois (especialmente Xavi) mais próximos de se tornarem treinadores de futebol.

 4. As Inconsistências e os Estúpidos

Quando, na segunda época de Guardiola, Ibrahimovic marcou 16 golos na Liga Espanhola em 2034 minutos (num total de 21 golos em 3285 minutos jogados em todas as competições), quase toda a gente concluiu que tinha sido uma má época do sueco. Apressaram-se então a dizer que falhara na Catalunha, ainda que o seu contributo para a manobra ofensiva do Barça tivesse sido inestimável, e que Guardiola se equivocara ao contratá-lo. Guardiola e Ibrahimovic não parecem ter-se entendido às mil maravilhas, é verdade, mas duvido que o rendimento do sueco tenha sido o problema. Guardiola começava a perceber que precisava de colocar Messi numa posição central, e Ibrahimovic não parecia disposto a jogar noutra posição. A saída de Ibrahimovic do clube pareceu dar razão àqueles que defenderam o mau investimento, e o principal argumento foi sempre aquele que os estúpidos mais depressa invocam: os números. Ora, os números de Ibrahimovic nessa primeira época são praticamente os mesmos que os de... isso, acertaram: Luis Suarez! Suarez fez, a época transacta, os mesmos 16 golos em 2180 minutos na Liga Espanhola (num total de 25 golos em 3535 minutos em todas as competições). Em média, Suarez marcou menos golos por minuto jogado na Liga Espanhola do que Ibrahimovic. Com quatro agravantes. A primeira é a de que o Barça de Luis Enrique, enquanto equipa, fez mais 12 golos do que o de Guardiola nessa época, o que significa que Ibrahimovic fez 16,3% dos golos da equipa e Suarez apenas 14,5%. A segunda é a de que, apesar de ter começado a jogar mais tarde, Suarez nunca se lesionou, o que fez com que nunca tivesse quebras de rendimento, coisa que não aconteceu com Ibrahimovic, que esteve constantemente a recuperar de lesões. A terceira é a de que, além dos golos, Suarez não ofereceu mais nada à equipa, o que também não foi o caso com Ibrahimovic, cujo envolvimento com o colectivo foi muito importante. A quarta é a de que Luis Suarez foi bem mais caro do que Ibrahimovic. Tudo somado, até para aqueles que gostam de apoiar os seus argumentos nos números, é impossível defender que Ibrahimovic tenha feita uma má primeira época e  que Suarez tenha feito uma boa época. Mas - surpresa das surpresas - é exactamente isso que é defendido de modo generalizado! Suarez é hoje tido como um dos elementos mais importantes da equipa catalã, está eleito entre os três melhores jogadores da temporada passada, e há sobre ele uma opinião generalizada muito favorável. Não é impressionante que assim seja. A maior parte das pessoas baseia as suas opiniões no que ouvem dizer e o que ouvem dizer é geralmente o que não interessa ouvir. Neste caso, Suarez é tido como uma grande contratação porque o Barça ganhou a Champions e porque Suarez é aquele tipo de avançado do qual se condescende porque é aguerrido. Não tem metade da qualidade de Ibrahimovic, não fez metade do que Ibrahimovic fez em Barcelona e, como se demonstra, nem sequer marcou mais golos do que Ibrahimovic. O futebol continua a ser dos estúpidos, e os estúpidos continuam a fazer-se ouvir a outros estúpidos. Um dos avançados mais sobrevalorizados da actualidade já pode dizer que foi eleito para melhor jogador do mundo; o melhor avançado da história do jogo nunca chegou a sê-lo, e provavelmente já não virá a sê-lo.

domingo, 7 de junho de 2015

Pirlo e Xavi

Nos últimos 15 anos, o futebol foi-se tornando, gradualmente, um jogo de médios como estes dois. Com Andrea Pirlo, o futebol mundial aprendeu que os médios-defensivos não precisavam de ser, como até então se julgava, jogadores de competências essencialmente defensivas. O futebol mundial aprendeu, e o futuro precipitou-se. Nenhuma equipa de topo, hoje em dia, tem como médio-defensivo um cão de guarda., e nenhuma equipa de topo que queira ganhar alguma coisa poderá voltar a pensar em ganhar tendo médios que saibam apenas andar atrás dos adversários. Devemos isso a Andrea Pirlo. Um grande jogador vê-se sobretudo no modo como antecipa o futuro da modalidade. Ainda que não pareça haver qualquer relação entre as duas coisas, a revolução de Guardiola não teria sido possível sem Pirlo. Não é por acaso, de resto, que Guardiola quis juntar (e esteve pertíssimo de consegui-lo) Pirlo a Xavi e Iniesta, como conta o italiano na sua biografia. Pirlo é o precursor dessa fabulosa equipa de médios, e o verdadeiro precursor do futebol moderno. É também, em boa verdade, o precursor de Xavi Hernandez, cujo futebol se tornou  perfeito apenas quando Guardiola pegou na equipa e lhe entregou a batuta.

Xavi é o médio mais perfeccionista de sempre. Quando o futebol se tornou, acima de qualquer outra coisa, um jogo de decisões, foi ele quem melhor mostrou como se jogava esse novo jogo. Nenhuma revolução se faz de um dia para o outro, e Xavi herda anos de evolução na Catalunha e herda também aquilo que, por exemplo, Pirlo andava a mostrar há alguns anos. Quando finalmente pôde pôr em prática tudo isso, mudou o jogo para sempre. Fez parte da melhor equipa de todos os tempos, ganhou tudo e mais alguma coisa, mas o seu principal legado são as decisões acertadas. Ninguém, como ele, conseguiu acertar tanto, estar tanto em jogo, receber tanto e passar tanto como ele. Quando Guardiola saiu de Barcelona, pensava-se que aquele futebol tinha acabado, e que o futuro era de equipas que jogavam de modo diferente do seu Barcelona. Não é assim que as coisas se processam. O futebol, como muitas outras coisas, evolui. Tal como nunca mais será possível haver grandes equipas com médios que não saibam jogar à bola, também não voltará a ser possível ganhar continuadamente sem uma equipa que se caracterize pelas boas decisões. A evolução pode não ser linear, pode haver precalços e pequenos retrocessos, mas é irreversível.

Andrea Pirlo é o rosto do futebol do século XXI e Xavi Hernandez a sua alma. Quis a História que terminassem as suas carreiras (ao mais alto nível, pelo menos) no mesmo estádio, na mesma final, disputando o melhor dos troféus, defrontando-se um ao outro e, o que é espantoso, ainda jogando a um nível altíssimo. A admiração mútua é talvez o maior destaque desta final, e é por ela que nenhum dos dois saiu realmente derrotado de Berlim. Pirlo e Xavi mudaram o futebol, e ambos reconheceram a importância do outro nessa mudança. Não é todos os dias que dois campeões deste calibre, com esta personalidade e admirando-se mutuamente, fazem o último jogo oficial na Europa jogando um contra o outro numa final da Liga dos Campões. É por isso que interessa menos qual dos dois ficou com a taça do que o abraço que as câmaras e os fotógrafos registaram no final do jogo. Há pequenos momentos que a posteridade lembra com mais nitidez do que aquilo que se passou no jogo a que correspondem, e este será sem dúvida um deles. O legado de Pirlo e Xavi é maior do que qualquer vitrine premiada, e na retina dos vindouros ficará esta imagem, não o que se passou em campo. Hoje é um dia triste, porque deixaremos de ver dois dos maiores jogadores de sempre. Amanhã haverá, por isso, menos classe nos relvados europeus. Mas o futebol será um jogo muito diferente do que era antes de eles pisarem os grandes palcos. O papel decisivo que ambos tiveram na evolução do jogo ninguém lhes tira, e quem gosta realmente deste jogo só pode estar, por isso, muitíssimo agradecido por tudo o que eles fizeram. Pirlo e Xavi podem ter terminado as suas carreiras, mas o futebol que jogavam não terminou. Voltaremos a vê-los, ainda que nos pés e nas ideias dos melhores médios que se lhes seguirem.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Velhos são os Trapos

Foi noticiado, no defeso, que Xavi Hernandez abandonaria o clube de sempre. O motivo era o mais trivial de todos, o de que a idade avançava e as qualidades de Xavi já não eram as de outros tempos. A sustentar esta tese estavam, como sempre, os números. A época anterior, não obstante a titularidade indiscutível, fora surpreendentemente fraca, quer em golos, quer em assistências. Como sabe quem lê este blogue, creio que os números são o pior dos argumentos, em futebol. E podem mesmo ser falaciosos, como me parece ser o caso. O Barcelona de Tata Martino, sobretudo o da segunda metade da época, era uma equipa pouco dinâmica, pouco capaz de envolver os médios em acções ofensivas. É natural que Xavi, um jogador cujos números sempre dependeram do facto de o colectivo jogar de uma determinada maneira, se ressentisse, nesse aspecto. Pessoalmente, acho que o futebol do médio espanhol ainda não começou a decair, e que Xavi ainda é capaz de tudo aquilo que o distinguiu. As suas capacidades físicas podem já não ser as que foram (o que não é sequer certo), mas Xavi nunca se distinguiu por elas. Sempre foi um jogador de poucos rasgos, de poucas mudanças de velocidade, um jogador de regularidade, que faz das decisões a sua principal arma. E isso - perdoem-me os que acham que depois dos 30 anos um jogador já não é o que era - é coisa que Xavi ainda não perdeu. Aos 34 anos, continua ser o mesmo jogador cerebral que era, o mesmo jogador capaz de gerir os ritmos da equipa, capaz de jogar por fora e por dentro do bloco adversário, capaz de perceber, a cada momento, o que é melhor para a sua equipa. Há jogadores que se destacam por qualidades atléticas que, com 34 anos, dificilmente poderão ser o que eram aos 30. Com Xavi não é assim. Com Xavi - diria mesmo - ter 30 anos ou ter 38 é mais ou menos o mesmo. E desconfio que só deixa de jogar ou por preconceito do seu treinador ou quando decidir que é tempo de parar.


Contra o Eibar, na jornada passada, foi assim. Aquele lance em que tira um adversário do caminho e depois trava, ajeitando de calcanhar, com dois toques, tirando mais um adversário da frente, foi já perto do final do jogo. Alguém que, com 34 anos, faz 90 minutos e ainda tem a frescura, física e mental, para fazer uma coisa daquelas é alguém que não está acabado, como dizem. Há um preconceito muito comum no futebol moderno que consiste em presumir que um jogador que já não tem as pernas que tinha tem de dar lugar a quem as tenha. O preconceito está em considerar o futebol um jogo em que "ter pernas" é o principal requisito de quem o joga. Não só isso é falso como há jogadores que nunca se caracterizaram por "ter pernas". Há uns anos, Allegri achou que Pirlo estava velho. Dispensou-o, e ele foi ser campeão pela Juventus. Com Xavi, é mais ou menos o mesmo. Associou-se a época menos feliz do Barcelona, no ano transacto, à idade de Xavi, e fez-se crer que o maestro do meio-campo catalão tinha de dar lugar a outros. É sempre mais fácil achar que uma equipa precisa de mudar de intérpretes do que achar que precisa de mudar de interpretação. Com Luís Enrique, Xavi parece ter perdido o estatuto de titular indiscutível. Mas, no Barcelona de Luis Enrique, cuja principal virtude, em relação ao Barça de Tata Martino, é ser capaz de pressionar mais alto, e com o bloco bem mais junto, Xavi volta a ter o protagonismo que tinha antigamente. Volta a ter muita bola, em zonas avançadas do terreno, com companheiros perto de si, e volta a poder fazer o que melhor sabe. Quem vê Xavi a jogar hoje, não consegue ver grandes diferenças para o que era Xavi há 5 ou 6 anos. A idade está lá, e sempre que o Barcelona não for a equipa de posse que foi com Guardiola, uma equipa paciente, sem pressas, que joga a maior parte do tempo no meio-campo do adversário, que pressiona alto, começando as suas jogadas em terrenos muito avançados, Xavi terá as dificuldades que sempre teve. Mas se o colectivo lhe permitir potenciar as suas melhores qualidades e o proteger das debilidades que sempre teve, será o mesmo Xavi que era. Quem joga, numa equipa desse tipo, é o cérebro. E um cérebro de 34 anos está tudo menos acabado. 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Xavi e Iniesta: a Incompatibilidade Compatível

Há 5 anos, antes de Guardiola chegar ao comando do Barcelona, jogar com um médio-defensivo e dois médios à frente dele era coisa em que poucos treinadores apostavam. Mesmo de entre os que o faziam, quantos arriscavam em dois jogadores de características ofensivas, dois jogadores criativos no meio-campo? Desde que o Entre Dez existe que essa foi uma das coisas que mais se defendeu aqui, que não só era compatível jogar com dois médios de ataque à frente de um médio-defensivo como era assim e só assim que uma equipa que se pretendesse ofensiva podia ser dominadora a meio-campo. Desde que chegou, Guardiola apostou em Xavi e Iniesta, lado a lado, dois médios de características ofensivas, pequenos, franzinos, sem capacidade de ir ao choque. Sem medo, entregou o meio-campo a quem tinha cabeça, não a quem tinha pernas. Para muitos treinadores, um criativo chega e sobra. Para esses, o meio-campo serve para vedar o caminho ao adversário e pouco mais; serve para fechar espaços, para roubar bolas e, quando dá, para solicitar o médio com melhores pés, que joga preferencialmente perto do avançado, para que ele possa depois fazer a bola chegar aos atacantes. Para Guardiola, o meio-campo é muito mais do que isso. Percebeu que o trabalho defensivo, o trabalho de cobrir espaços, de reagir à perda, é da competência de toda a equipa em conjunto e que, sendo-o, não precisava de jogadores no meio-campo que se distinguissem pela quantidade de desarmes que conseguem. No meio-campo precisava era dos mais inteligentes, daqueles capazes de perceber melhor as necessidades da equipa. É um chavão dizer-se que o meio-campo é o centro nevrálgico do jogo, mas quantos dos que o dizem tiram as consequências que deviam tirar disso? Dizem que é o centro nevrálgico do jogo, mas depois acham que é lugar para pôr aqueles que têm mais pulmão ou mais músculo. Não. No centro nevrálgico do jogo devem jogar os mais inteligentes, os que sabem desenvencilhar-se melhor dos problemas. Eis o que Guardiola pensava de Iniesta:

"Iniesta es un jugador fino, es de los que priorizan más pensar que correr. Su primer control en movimiento es maravilloso. Le da continuidad y velocidad al juego. Interpreta el juego. Seguramente en otros lugares habrá jugadores de este estilo, pero allí no interesan, no los buscan", sostenía Pep Guardiola."

Poderá isto parecer presunção, mas este blogue nasceu porque, antes de Xavi e Iniesta jogarem juntos, já havia quem reclamasse que Xavi e Iniesta tinham de jogar juntos. Tínhamos descoberto, o Gonçalo e eu, que o futebol de cada um era muito mais fácil quando um andava perto do outro. Fosse para não ser forçado a driblar, fosse para não ser forçado a fazer um passe comprido, fosse por que fosse, com alguém que pensava exactamente da mesma maneira ali ao lado, na mesma posição e com as mesmas obrigações, o futebol era muito mais fácil. Qualquer médio ofensivo habilidoso, sobretudo jogando com dois médios nas costas, com liberdade para fazer mais ou menos o que lhe apetecesse, pode resolver um jogo a qualquer altura, seja com um último passe, seja com uma jogada individual, seja com um remate à entrada da área. E qualquer jogador ambiciona jogar como médio-ofensivo precisamente por isso, porque é aquele a quem o treinador, por norma, entrega a batuta da equipa e a maior fatia de liberdade; é aquele que é invejado pelos colegas, aquele que assume maior protagonismo, etc.. O que a dada altura percebemos é que isso é uma imbecilidade. Quantas bolas tem um médio-ofensivo de entregar ao adversário para que seja o protagonista que esperam que seja? Quanto ganha a equipa com um jogador assim e quanto perde? À medida que íamos ganhando consciência táctica, que íamos percebendo a consequência de cada uma das nossas acções, menos contentes estávamos com o papel de protagonista solitário que nos cabia. Sempre que tínhamos a possibilidade de jogar juntos, por outro lado, a tendência era aproximar-nos, pedir a bola um ao outro, dar ao outro uma solução diferente, uma tabela, uma possibilidade de passe curto que deixasse o adversário indeciso, uma troca de posições, etc.. Dois criativos no meio-campo não é só o dobro da criatividade; é também todo um conjunto de novas possibilidades de lances. Foi isso que Guardiola mostrou ao mundo, quando pôs Xavi a jogar ao lado de Iniesta. Mostrou que dois médios criativos são compatíveis e mostrou ainda que, mais do que serem compatíveis, permitem à equipa coisas que, de outra maneira, a equipa nunca conseguiria fazer.

Para muita gente, uma equipa de futebol é um agregado de operários fabris, cada um com as suas funções específicas. Para esses, se um determinado jogador vai jogar (por exemplo, um médio criativo), é preciso que um jogador de características diferentes jogue a seu lado ou perto dele, para compensar as coisas em que é menos bom. É por isso que quase todos os treinadores sentem a necessidade de utilizar um médio de características defensivas (ou dois) ao lado de um médio mais habilidoso. O que Guardiola mostrou é que o futebol não é nada disso, que não é preciso que as características de um jogador compensem as de outro. É possível construir uma grande equipa sem jogadores altos, sem jogadores musculados, sem jogadores agressivos, etc.. Isto porque, em futebol, tudo isso é secundário. Para muita gente, o trabalho de um treinador consiste essencialmente em montar uma máquina em que cada peça está no sítio certo e desempenha o melhor possível a tarefa que lhe compete. Não acredito em nada disso. Não acredito que o futebol seja um jogo em que a melhor equipa é aquela que tem os onze melhores especialistas em cada uma das onze posições a desempenharem o melhor possível a sua função. E é por não acreditar que o futebol é um jogo desse tipo que não acredito que o trabalho de um treinador seja apenas educar os seus jogadores a comportarem-se o melhor possível de acordo com as funções que desempenharão dentro de campo. O futebol é um jogo de relações, um jogo em que é melhor não a equipa que tiver os onze melhores especialistas a fazerem o melhor que podem, mas um jogo em que é melhor a equipa em que os onze jogadores se compreendem melhor uns aos outros. Para muita gente, a qualidade de uma equipa é a soma da qualidade individual dos onze jogadores que a compõem somada, por sua vez, à capacidade que cada indivíduo tem para cumprir os requisitos colectivos da sua posição. Para mim, a qualidade da equipa mede-se essencialmente pela forma como os onze jogadores se relacionam entre si. É por isso que não acredito na tese da incompatibilidade entre dois jogadores muito parecidos. Para mim, as fragilidades de um jogador devem ser supridas pelo colectivo, não por um jogador com características opostas. Ter dois jogadores parecidos não é um problema, como muita gente pensa; é uma bênção. Dois jogadores parecidos não descompensam uma equipa; equilibram-na. Dois jogadores parecidos não é um excesso ou um luxo; é complementaridade. Vejam como discutem Xavi e Iniesta sobre o assunto, nesta entrevista de 2006:

"X. Justo. Pues ya mete goles y nadie se acuerda de las tonterías que decían: que si el salto cualitativo no lo daba, que si patatín... ¡Listos! Tiempo al tiempo. Eso hay que darle a la gente, tiempo para que madure. Ahora parece que yo estoy acabado; que, si juega él, no puedo jugar yo.
I. Más tonterías. Podemos jugar juntos. No se dónde está escrito que no podemos hacerlo. La putada es que llevaban pidiendo que jugáramos juntos no sé cuánto tiempo y nos ponen en Madrid y perdemos. Dos días antes era la mejor solución. Ni que perdiéramos por jugar nosotros.
X. Es que yo me lo paso muy bien contigo. No somos clónicos, somos complementarios. ¿Sabes cuál es el problema? Que somos de la casa. Si uno de los dos fuese de fuera, no habría debate."

Para Iniesta, não havia razão nenhuma, já em 2006, para que ele e Xavi não jogassem juntos. Xavi, por sua vez, dizia que se sentia bem a jogar com Iniesta. Não compreender isto é não compreender nada de futebol. O que estes dois sentiam, numa altura em que não jogavam juntos, numa altura em que não tinham o estatuto que têm hoje e numa altura em que se dizia que, quando Iniesta começasse a jogar, Xavi deixaria de fazê-lo, era precisamente que o futebol não é tão individual como queriam que acreditassem. Já na altura sentiam que eram melhores jogadores quando jogavam os dois, quando um percebia as necessidades do outro e lhe dava a linha de passe de que precisava, quando o outro percebia que podia ficar com a bola até ao último instante porque sabia que, nessa altura, se precisasse, o outro lá estaria a dar-lhe uma solução de passe alternativa. Com Iniesta ao lado, era como se Xavi jogasse com outro Xavi. E o mesmo ao contrário. É por isso que não é apenas por serem dois criativos e não um, por haver o dobro da criatividade em campo, que acho que uma equipa é melhor com dois criativos em vez de um. É porque, além de a criatividade ser a dobrar, cada um deles é melhor jogador se o outro estiver em campo. Com Iniesta ao lado, Xavi era mais Xavi do que nunca. E Iniesta mais Iniesta do que nunca. É por isso que a qualidade de uma equipa não pode ter apenas a ver com a qualidade de cada um dos jogadores e com a adequação da qualidade de cada um deles à posição que ocupam em campo. Tem também de ter a ver com (eu diria que tem sobretudo a ver com isso) a relação de cada jogador com cada um dos colegas, começando, obviamente, por aqueles que estão mais próximos.

Quando se fala em sintonia entre colegas, fala-se sobretudo em duplas de atacantes ou duplas de centrais e fala-se sobretudo das características complementares que devem ter: um avançado mais fixo e um mais móvel; um defesa mais cerebral e um mais rápido, etc.. Não é disso que falo. A compatibilidade a que me reporto é do foro intelectual e aquilo para o qual estou a tentar chamar a atenção é para jogadores que se compreendem muito bem por pensarem da mesma maneira, que sabem exactamente o que o colega vai fazer porque era aquilo que fariam naquelas circunstâncias, que sabem perfeitamente que, em determinada situação, o colega vai estar a dar o apoio no sítio certo porque, se estivessem na pele dele, perceberiam que o colega iria imaginar que ele ali estivesse. Dir-me-ão que isso só acontecerá em casos extraordinários, que almas gémeas desse tipo só em jogadores que jogam há muitos anos uns com os outros. Também não acredito nisso. Xavi e Iniesta, aliás, não cresceram juntos e não jogaram juntos até coincidirem na equipa principal. Basta que o treinador saiba criar as condições ideais para que isso aconteça, que saiba estimular os jogadores a compreenderem-se, a pensar de forma análoga, a interpretar as necessidades uns dos outros, etc.. Foi o que, de resto, Guardiola fez, ao permitir, sem hesitar, que Iniesta e Xavi jogassem lado a lado. E foi precisamente a dupla Xavi-Iniesta quem primeiro pôs em prática o que Guardiola queria que todos os seus onze jogadores fizessem. Antes de haver verdadeiramente o Barcelona de Guardiola, já havia Xavi e Iniesta a tabelar, a trocar a bola entre si, a dar e a devolver, a oferecerem apoios verticais um ao outro, etc.. No primeiro ano de Guardiola, a equipa catalã ainda não estava totalmente afinada. As únicas almas gémeas que verdadeiramente existiam eram as de Xavi e Iniesta. Foram eles, pela relação que mantiveram um com o outro, quem ensinaram os colegas a jogar. Associou-se a eles depois Messi e, mais tarde, toda a equipa. E assim se cumpriu o sonho de Guardiola.

É por isso que acho que o trabalho de um treinador é muito mais do que desenvolver características individuais e adaptá-las às funções que os jogadores desempenharão em campo. A esmagadora maioria dos treinadores acredita nisso. Para mim, por outro lado, aquilo que verdadeiramente compete a um treinador de futebol é criar onze almas gémeas. É esse o verdadeiro legado de Cruyff, e só assim me parece plausível pensar no jogo de forma colectiva. Ao contrário da maioria dos treinadores (e até da maioria dos treinadores actuais), não eram as características estritamente individuais, mas as características "relacionais", aquelas com as quais alguém se relaciona com o meio envolvente, que mais interessavam a Cruyff. O próprio Guardiola o confessa, nesta conversa com Valdano:

"J.V.:¿Soñabas con ser jugador de Primera División?
P.G.:"Si, por supuesto. De diez niños catalanes, ocho querrán jugar en el Barcelona. Le decia a mi madre: "Si llego al juvenil, ya estaré contento". Pensaba que para jugar al fútbol necesitaba mucho más que: "Pasa bien el balón, juega bien, las pilla todas". El destino y el estilo de un entrenador que le gustaba más el hecho de pasar que el de romper fue lo que me ayudó".
¿Qué hubiera pasado si no hubiera existido ese entrenador?
Lo habría pasado mal. Es de esas cosas en las que he tenido suerte. Jugué desde el primer momento. El primer año, si no juego y estoy mal, igual me voy para casa. Aunque no fue cuestión de supervivencia. Me lo pasaba muy bien siendo jugador infantil del Barcelona."

Quando era jovem, Guardiola achava que precisava de mais do que de passar bem a bola para vingar na modalidade, mas acabou por triunfar única e exclusivamente porque Cruyff era diferente dos outros treinadores. Não tivesse Guardiola sido treinado por alguém assim, dificilmente teria sido o jogador que foi. Poucos há que percebam isto. Para muita gente, quando se tem talento, tem-se talento e ponto final, e quem o tem acaba por triunfar, mais tarde ou mais cedo. Não podia estar mais em desacordo. Para que um jogador triunfe, sobretudo um jogador cujas principais virtudes são as tais características "relacionais", é preciso que o treinador seja especial, que prefira um determinado tipo de atributos e não outros. Ao longo dos anos, muitos dos jogadores que aqui fomos defendendo e que não conseguiram triunfar são jogadores deste tipo, jogadores que, ao contrário de Guardiola, não tiveram a sorte de ser treinados por alguém especial e que, por isso, não atingiram o máximo do seu potencial. Quanto a Xavi e Iniesta, alguém acredita que eles seriam o que são hoje se não fosse Guardiola? Basta ver como se queixavam, em 2006, por todos acharem que não podiam jogar juntos. Toda a gente gaba as habilidades de Iniesta, a capacidade de manter a bola, de rodar sobre si mesmo, a calma com que sai de situações complicadas, etc.. Mas Iniesta é capaz disso tudo porque está inserido num contexto que o favorece, porque sabe que tem sempre alguém muito perto de si e que, por tê-lo, tem também uma solução de recurso a toda a hora, o que lhe permite forçar certos movimentos, arriscar certas iniciativas. Iniesta é o jogador que é porque cresceu no ambiente mais favorável possível; tem aquelas características individuais notáveis, que todos elogiam e que a todos espanta, não porque as tenha e pronto, mas porque tem também certas características "relacionais" e está inserido num modelo que privilegia as últimas.

Ser um jogador de futebol a sério é essencialmente isto: ser extraordinário a relacionar-se com os colegas de equipa. Evidentemente, há jogadores de outro tipo, jogadores cujas habilidades individuais definem o seu talento. A estes é relativamente fácil medir a qualidade; basta contabilizar o sucesso e o insucesso de cada uma das suas acções. Medir o futebol de Xavi ou Iniesta, por exemplo, é muito mais difícil. E é-o porque cada uma das suas acções não se esgota em si mesma. Cada coisa que fazem beneficia o que faz um colega e beneficia o que faz o colectivo. É o talento individual de Xavi que faz com que consiga aquela quantidade absurda de passes por jogo? É Xavi sozinho o responsável por todos aqueles passes de régua e esquadro? É unicamente por ser Xavi o maestro que é que todos reconhecem que é dos pés dele que se inicia boa parte das jogadas do Barcelona? Não. Xavi é o que é porque os colegas fazem com que o seja. Dão-lhe opções constantes de passe, aproximam-se dele para lhe permitir várias decisões, garante-lhe proximidade e segurança para que não tenha de se apressar a tomar uma decisão. Xavi é o que é por força do que o rodeia. E o que o rodeia é um conjunto de jogadores que pensa como ele, que percebe quais possam ser as suas intenções e que fazem tudo para que ele as possa cumprir. Xavi é o que é porque joga com almas gémeas. É o próprio Xavi quem o reconhece, nesta entrevista:

"Your Barcelona team-mate Dani Alves said that you don't play to the run, you make the run by obliging team-mates to move into certain areas. "Xavi," he said, "plays in the future."
They make it easy. My football is passing but, wow, if I have Dani, Iniesta, Pedro, [David] Villa … there are so many options. Sometimes, I even think to myself: man, so-and-so is going to get annoyed because I've played three passes and haven't given him the ball yet. I'd better give the next one to Dani because he's gone up the wing three times. When Leo [Messi] doesn't get involved, it's like he gets annoyed … and the next pass is for him."

Dizer que Guardiola teve o trabalho facilitado porque tinha os jogadores certos para o modelo que pretendia é um disparate. Foi Guardiola que impôs que os jogadores se relacionassem como se relacionam. É claro que ajuda o facto de a grande maioria ter "estudado" no mesmo sítio, ter tido os mesmos "professores" e ter tido as mesmas referências. Mas nada disso teria sido relevante se não fossem obrigados a fazer certas coisas. Não foram a mentalidade do clube ou a educação semelhante que os jogadores tiveram que construíram o modelo de Guardiola; foi Guardiola que, levando-os a comportar-se de determinada maneira, levando-os a executar um determinado modelo de jogo, "obrigou" a que os jogadores recuperassem a mentalidade do clube que lhes tinha sido incutida e a que relembrassem a educação que tinham tido nesse mesmo clube. Mais do que qualquer outro modelo de jogo, o modelo de Guardiola força a que os jogadores se relacionem constantemente. Como tal, força a que sejam aquilo para o qual foram ensinados a ser, ou seja, jogadores que privilegiam determinadas coisas em detrimento de outras.

Regressando à questão da compatibilidade, posso aceitar que um determinado jogador não seja compatível com outro igual a ele, mas apenas se forem jogadores que se distingam pelos seus atributos individuais. Mas, nesse caso, não acho sequer que um só jogador seja compatível com a equipa. Como entendo o jogo, uma equipa de futebol a sério tem de ter onze jogadores que se caracterizem essencialmente pela capacidade com que se relacionam com os colegas. Se for esse o caso, não me interessa ter um jogador de cada tipo, apto para uma coisa específica, mais indicado para um tipo de função e menos para outros tipos. Interessa-me, isso sim, ter jogadores todos do mesmo tipo, jogadores parecidos entre si, que valorizem as mesmas coisas, que se compreendam com facilidade, que percebam quais as dificuldades de cada colega, consoante as circunstâncias em que se encontrem. Não só acho, portanto, que Xavi e Iniesta são compatíveis, como sempre achei, como acho que Xavi é compatível com dez Iniestas, e vice-versa. Para muita gente, Xavi e Iniesta são compatíveis porque Guardiola mostrou que podiam sê-lo. Não pensavam assim há 5 anos, no entanto. E mesmo aceitando agora que o são, aceitam-no por razões erradas, porque acham que, afinal, até dá para ter dois criativos no meio-campo. Eu acho que são compatíveis, mas não por achar que haja espaço para dois médios criativos numa equipa de futebol; acho que são compatíveis porque o futebol é um jogo de médios criativos. E é por isso, em última análise, que acho não só que são compatíveis entre eles como são compatíveis com mais nove jogadores idênticos. O futebol é um jogo para criativos, e o modelo ideal de um jogo que se caracteriza assim é necessariamente aquele em que a criatividade dos jogadores for melhor potenciada. O papel do treinador ideal, deste ponto de vista, não é propriamente trazer ao de cima o melhor de cada atleta, não é conceber as melhores estratégias possíveis para contrariar os adversários, não é ser capaz de manter motivados os seus jogadores; é fazer com que cada jogador aprenda a relacionar-se com os colegas. Só isso: criar almas gémeas. E, para criá-las, há um atributo indispensável: a criatividade, entendendo-se criatividade como imaginação, ou seja, o atributo intelectual que permite a cada um perceber o tipo de soluções que pode empreender para fazer face ao que o rodeia e, por conseguinte, o que permite a cada um perceber aquilo de que precisa cada um dos seus colegas a cada instante.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Euro 2012 - 3ª Ronda

Grupo A

Terminada a fase de grupos, fica por terra a equipa que, para muitos, mais entusiasmou na primeira ronda. Como escrevi logo na altura, tinha muitas reservas quanto ao futebol dos russos. Gostava muito das unidades, agradava-me a organização da equipa, e a capacidade da mesma para sair em transição, mas tinha bastantes cautelas quanto à real capacidade da equipa para assumir o jogo. O segundo jogo contra a Polónia comprovou as minhas suspeitas, e a derrota frente à Grécia só as tornou mais claras para todos. Os números da Rússia, no primeiro jogo, que tanto entusiasmaram, deveram-se mais às facilidades que encontraram nesse jogo, especialmente em transição, do que propriamente à qualidade dos russos. Contra equipas mais fechadas, nunca souberam criar as dinâmicas certas para arranjar espaços. Contra a Grécia, então, foi deplorável. Para muitos, os gregos passam esta fase de grupo do mesmo modo que ganharam o Euro 2004. Eu não sou tão crítico. A Grécia fez um péssimo jogo contra a República Checa, mas contra a Rússia não foi inferior. Não invalida isto que não tenha tido sorte em adiantar-se no marcador, podendo assim gerir a vantagem. Teve, claro. Mas a segunda parte dos gregos foi inteligente, porque estavam em vantagem, e porque souberam como defender-se da principal arma russa, o contra-ataque. A mim, ainda que considerasse que a Rússia podia ter ido mais longe, não me surpreende a eliminação. No outro jogo, a Polónia começou como começara contra a Grécia. O problema é que as pessoas confundem qualidade com vontade de ganhar. Já contra a Grécia, os polacos tinham sido muito elogiados pelos seus vinte minutos iniciais. A verdade é que a equipa nunca apresentou muita qualidade, e as oportunidades criadas nesses primeiros vinte minutos, nesse e neste jogo, resultaram mais de uma intensidade altíssima (insustentável nos 90 minutos) do que propriamente de qualidade de jogo. Assim que os polacos começaram a perder gás, e os checos se acalmaram, a tendência do jogo virou. A partir dos 30 minutos, o jogo foi todo checo, com a equipa a trocar muito bem a bola, mesmo sem Rosicky. A República Checa vence o grupo, e vence bem, pois foi, de longe, a equipa mais interessante. Não tem muitas individualidades extraordinárias, mas tem um modelo de jogo que assenta na posse de bola, e a equipa é, colectivamente, muito competente a circular a bola e a arranjar os espaços de penetração certos. Com a capacidade de definição de Rosicky, caso esteja apto, não considero Portugal tão favorito como a grande maioria das pessoas considera.

Grupo B

Não tive a oportunidade de assistir ao jogo que opôs Alemanha a Dinamarca, pelo que me abstenho de falar do mesmo. Ainda assim, pelo que vi nos outros jogos, creio que os alemães são os justos vencedores deste grupo. No outro jogo, finalmente uma boa exibição de Portugal. É preciso, no entanto, perceber que, do outro lado esteve a equipa mais fraca, em termos colectivos, deste europeu, se excluirmos a Irlanda, e que o espaço que Portugal encontrou para jogar neste jogo, e que não encontrou noutros, se deve acima de tudo a isso. Deve-se a isso, e deve-se também ao facto de os portugueses, após recuperarem a bola, não quererem chegar imediatamente à baliza adversária, apenas com um ou dois passes. Nesse capítulo, acho que há mérito da equipa de Paulo Bento, que foi bem mais paciente e inteligente do que nos outros jogos. Também ajudou o facto de os holandeses terem marcado primeiro, condicionando a estratégia conservadora inicial. A perder, Portugal foi obrigado a assumir o jogo, e foi nessa altura que melhorou. Depois, com espaço entre os atacantes e os defesas holandeses, soube criar as condições certas para atacar a baliza holandesa, e venceu com toda a justiça. Embora já tenha sido referenciado no Lateral-Esquerdo, não queria deixar passar a oportunidade de falar no primeiro golo português. Os intervenientes foram João Pereira e Ronaldo, mas quem acha que Portugal chegaria ao golo com outro avançado em campo que não Hélder Postiga está enganado. Para mim, mais do que um jogo de individualidades, ou de soma de individualidades, o futebol é um jogo de relações, e quando se elogia um passe de alguém, esquece-se sempre de perceber que, sem a solicitação do colega, qualquer passe genial está condenado ao insucesso. Para dar um exemplo claro, quem acha que Xavi é o que é porque tem uma visão de jogo que mais ninguém possui, desengane-se. É óbvio que ele tem uma visão de jogo muito boa, mas não é essa a principal razão para que tenha tanto sucesso com os seus passes. Uma visão de jogo como a de Xavi muitos há que a tenham. O que acontece é que Xavi joga com vários colegas (no Barça ou na selecção espanhola) que lhe fazem a papinha toda, em termos de desmarcação. Quero com isto dizer que o passe de João Pereira, embora muito bom, só teve sucesso porque os colegas (e aqui, obviamente, não é só Ronaldo), ao movimentarem-se sem bola, criaram as condições certas para que tivesse sucesso. O movimento de aproximação de Postiga, complementado com o movimento de ruptura de Ronaldo, criou a linha de passe que, de outro modo, não existiria. É este conjunto de coisas que normalmente se negligencia, e é este tipo de soluções "invisíveis" que um avançado que se movimenta tão bem como Hélder Postiga oferece à equipa em que joga. Aliás, tendo Portugal talvez o extremo que melhores movimentos de ruptura, em diagonal, faz, o avançado ao lado de quem mais renderá será necessariamente um que faça movimentos de aproximação bem feitos, criando com isso os espaços nas suas costas em que tal extremo possa entrar. No Real Madrid, Ronaldo rende muito mais com Benzema do que com Higuain precisamente porque o francês faz este tipo de movimentos muito melhor do que o argentino. Nem que fosse pelas características de Ronaldo, Postiga era desde logo o homem certo para jogar nesta selecção.

Grupo C

Antes de mais, importa salientar que estão neste grupo 3 dos principais candidatos, na minha opinião, ao prémio de melhor jogador da competição. Falo de Andrés Iniesta, Andrea Pirlo, e Luka Modric. Assombrosa, a forma como Modric, praticamente sozinho, ia mandando a selecção espanhola para casa. A Croácia não fez, apesar de tudo, um grande jogo. Jogou 65 minutos atrás da linha da bola, e reservou o último terço da partida para tentar marcar um golo. Tendo a Itália, no outro jogo, marcado logo na primeira parte, é para mim incompreensível a falta de coragem de Bilic. Ainda por cima, tendo bastante qualidade individual ao seu dispor. A estratégia defensiva da Cróacia foi bem sucedida, mas sobretudo por demérito da Espanha, que fez um jogo muito fraco. Duas são as razões, a meu ver, para tal exibição: saber que o empate bastava, e Vicente del Bosque. O treinador espanhol quer jogar à Barcelona, mas não sabe o que é preciso para o fazer. Para mim, a utilização de um duplo-pivot é usualmente uma má opção. Mas numa equipa que joga curto, a passo, sempre organizada, faz especial confusão. Se gosta tanto de Xabi Alonso, tire Busquets; se quer mesmo o futebol do Barcelona, deixe o catalão sozinho, a fazer coberturas a uma dupla de médios ofensivos. Para jogar contra equipas que baixam o bloco, é absolutamente necessário que se invadam espaços centrais entre linhas, e o que Vicente del Bosque tem feito, ao utilizar um avançado exclusivamente interessado em movimentos de ruptura, e um duplo-pivot, é tirar sistematicamente dois jogadores desses espaços. Iniesta e Silva ainda vêm dentro, procurar esses espaços, mas é pouco para as exigências que duas linhas de quatro impõem. A Espanha seria campeã da Europa se jogasse em 433, com Busquets, Xavi e Iniesta no meio-campo, Silva, Pedro e Fabregas na frente. Assim, como está, não ponho as mãos no fogo. A equipa é incapaz de invadir os espaços entre linhas com a qualidade com que poderia fazê-lo, e é também incapaz de pressionar imediatamente a seguir à perda da bola. É um caso evidente de como o sistema táctico prejudica as dinâmicas. A outra chamada de atenção é para os laterais, que são incapazes de perceber que, vindo os extremos para dentro, a profundidade tem de ser dada por eles. Arbeloa não sabe isto, e não é capaz de dar isso à equipa. Jordi Alba tem vontade, mas tem muito que aprender. De referir, ainda, que a insistência em fazer saltar do banco um jogador como Navas, para se integrar num colectivo como este, é não perceber nada do assunto. E ainda não ter utilizado Fernando Llorente nem Mata é criminoso. Nota muito negativa para Vicente del Bosque, portanto. No outro jogo, pouca história. A Itália utilizou um sistema táctico diferente, e há uma particularidade interessante. Prandelli é um treinador com ideias ofensivas, e percebe a importância dos espaços centrais para a progressão com bola. Assim, a atacar, o 442 clássico da Itália desmonta-se, e Marchisio e Motta, os dois alas, vêm para dentro, formando um quadrado com Pirlo e De Rossi, e permitindo que sejam os laterais a dar largura. Ganha com isto, a Itália, gente no meio. Mas parece-me que haver uma diferença tão grande na relação entre jogadores entre a fase defensiva e a fase ofensiva implica uma certa desorganização no momento da perda da bola. Um caso a rever, no jogo contra a Inglaterra, caso Prandelli não regresse ao modelo anterior.

Grupo D

Era o grupo mais fraco dos quatro, em termos de qualidade colectiva das equipas, e isso acabou por se reflectir na fraca qualidade dos jogos. Do jogo em que a Suécia bateu a França, pude ver apenas o resumo. O golo de Ibrahimovic é fenomenal (pelo gesto técnico, e pela própria jogada, que é bem construída), e os suecos acabam por ir para casa de cabeça erguida! Quanto à França, mais uma vez, não surpreende. Os franceses não têm apresentado consistência nem qualidade suficiente para que mereçam o rótulo de favoritos. Quanto à Inglaterra, venceu o grupo, mas não fez uma única exibição digna de nota. Não sei até onde esta mediania dos ingleses os pode levar. Para já, segue-se a Itália, num jogo em relação ao qual não sei bem o que esperar. Dependerá muito, parece-me, do que Prandelli quiser fazer. Quanto à Ucrânia, sai do Euro algo ingloriamente. Os ucranianos não eram, enquanto equipa, extraordinários, mas não foram muito inferiores aos franceses, e nada inferiores aos ingleses. Individualmente, gostei bastante de Iarmolenko. Konoplianka, o outro extremo, é um jogador de drible fácil, mas nem sempre toma boas decisões. Iarmolenko, esse sim, vale a pena seguir com atenção. Outro ponto de interesse no jogo foi a inclusão de Milevsky no onze. Brilhante, como sempre, ainda que discreto, passou ao lado dos holofotes da partida, para os comentadores. José Peseiro, aliás, insistiu durante quase toda a segunda parte que era o jogador mais apagado, que devia ser substituído, etc.. E nem sequer o mencionou no lance do golo mal anulado aos ucranianos, ainda que tivesse sido ele a isolar, de um modo praticamente impossível, o colega. O caso dos pontas-de-lança, neste Euro, é até muitíssimo interessante de analisar. Mais do que demonstrar o que quer que seja acerca de pontas-de-lança, demonstra de que modo analisa o desempenho de um ponta-de-lança aquele que vê um jogo. É que não foi por acaso que se elogiaram desmedidamente avançados como Lewandowsky, Kerzhakov, e Mandzukic, e que se criticaram sistematicamente jogadores como Samaras, Postiga, e Milevsky. Acontece que os primeiros são mais vistosos, destacam-se porque rematam muito à baliza, porque se embrulham muito com os defesas, porque têm tendência para querer resolver os problemas da equipa sozinhos. Os segundos não são assim. As competências que possuem são competências mais colectivas: a movimentação sem bola, a capacidade para tabelar, a tomada de decisão, a capacidade para segurar a bola, a qualidade entre linhas. Não são jogadores que se destaquem por si, mas que percebem o que é o jogo, em todos os momentos, e aquilo que o jogo exige deles. São discretos porque percebem a inutilidade de ir ao choque em todas as bolas, a inutilidade de correr feitos parvos para tudo o que é sítio, e a inutilidade de querer resolver a partida, qualquer que seja a situação em que se encontram. A maioria das pessoas, porém, vê futebol como se habituou a vê-lo. Vê-o como um conjunto de acções isoladas, e tende, por isso, a prestar atenção a muito poucas coisas, e apenas àquelas que, por norma, aparecem nos resumos dos jogos. Vêem, por isso, muito mal. E não vêem, na maioria dos casos, o que é mais importante.

sábado, 14 de abril de 2012

A Tabela

Para muitos, uma tabela é uma coisa relativamente banal, um truque com o qual se pode desequilibrar de vez em quando. Para alguns académicos, é uma forma muito útil de ultrapassar um adversário. Poucos há, no entanto, que vêem numa simples tabela mais do que isto. E, não raro, diverte-se muita gente a criticar aqueles que as procuram em demasia. Nos últimos quatro anos, uma equipa há que tem mostrado a todos que há ganhos extraordinários em cultivar a tabela. Falo, obviamente, do Barcelona de Guardiola, que parece cada vez mais proficiente a usar a tabela como forma de progredir no terreno e de penetrar nas defesas contrárias. Ainda assim, e apesar de muitos já reconhecerem as virtudes catalãs, a tabela continua a ser algo que as equipas procuram pouco, seja em que zona do terreno for. Apesar de tudo o que este Barcelona tem evidenciado, continua a pensar-se que a tabela só tem utilidade em situações de dois para um, ou em situações de clara vantagem numérica, ou em zonas com espaço suficiente para a executar. Discordo disto. E, para ilustrar a minha discordância, trago quatro lances em que uma simples tabela entre dois jogadores foi o suficiente para fazer ruir uma defesa inteira.



1. Para dizer a verdade, no primeiro destes lances há um terceiro interveniente, precisamente o que recebe o último passe para finalizar (neste caso, Messi). Mas é irrelevante que assim seja, para o que pretendo mostrar. O lance é o do quarto golo da já longínqua goleada imposta ao Villareal em Camp Nou, no início desta época. Apesar da finalização de Messi, e do passe extraordinário de Iniesta a isolar o companheiro, num lance que parece uma criança a brincar com um ioiô, aquilo para que quero chamar a atenção é para a tabela entre Iniesta e Thiago Alcântara, tabela essa que precede o passe. Thiago invade o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, e até tem um adversário à ilharga, protegendo esse mesmo espaço. Praticamente nenhum jogador faria o que Iniesta fez, pondo nesse mesmo espaço a bola, porque Thiago não beneficiria em nada de receber ali a bola, já que ficaria rodeado de adversários. Acontece que este Barcelona usa a bola como engodo como nenhuma outra equipa, e o simples colocar da bola num espaço preenchido por adversários oferece ao adversário a tentação de recuperá-la, desposicionando-se. Repare-se que, no momento em que a bola se dirige para Thiago, há três jogadores do Villareal (os que estavam mais perto de Thiago) que saem ligeiramente das suas posições para se aproximarem do jogador que vai receber a bola naquele espaço. Parecendo que não, um pequeno passe aparentemente inútil e inofensivo, provoca desequilíbrios estruturais decisivos. Thiago dobra imediatamente o passe, entregando a bola novamente em Iniesta, mas tudo é agora diferente. Uma simples tabela vertical, sem progressão de qualquer espécie, serviu para desestabilizar a organização defensiva do adversário: um dos centrais avançou no terreno, criando um espaço nas suas costas, entre o outro central e o lateral; o médio que estava a acautelar o espaço entre linhas deslocou-se para a esquerda, abrindo uma linha de passe pelo centro; e o médio que estava mais perto de Iniesta afastou-se dele o suficiente para lhe permitir um passe em condições. Resta dizer que Messi interpretou isto de forma impressionante, e desmarcou-se precisamente para onde se devia desmarcar, recebendo o passe de Iniesta. O que me parece importante perceber neste lance não é tanto a extraordinária capacidade que os jogadores do Barça têm para inventar estes lances, mas mais a importância de algo aparentemente inútil, como seja um passe para um jogador que não pode senão devolver a bola ao colega que a passou. Sem o passe para Thiago, e a respectiva devolução, o Barcelona não teria sido capaz de criar as condições ideais para construir uma situação de perigo. É por isso que Guardiola dá tanta importância ao espaço. Em ataque organizado, tudo o que uma equipa tem de fazer é criar espaços. Para criá-los, tem de forçar o adversário a concedê-los. E a única forma de forçar um adversário que se posiciona bem em termos defensivos a concedê-los é fazendo coisas como esta, fazendo a bola entrar e sair em zonas que os adversários têm obrigatoriamente de fechar. É por isto que o futebol de toque curto, de passe e recepção, que caracteriza esta equipa não serve apenas, como muitos julgam, para adormecer o adversário, para esperar pelo momento certo para desferir o ataque, para não perder a bola à toa. Quem pensa assim não percebe nada deste Barcelona. É claro que fazer um uso cuidado da bola, como esta equipa o faz, é também uma forma de cínica de defender. Mas é muito mais do que isso, como este lance mostra. É a forma mais eficiente de atacar.

2. O segundo lance ocorreu na primeira mão da recente eliminatória frente ao Milan, a contar para os quartos de final da Liga dos Campeões. O lance acabou por não dar golo, mas foi notável o que Xavi e Messi fizeram. Quando Xavi recebe a bola, o Milan tem 9 jogadores atrás da linha da bola (os quatro defesas, os quatro médios, e Robinho), todos eles concentrados no meio. Com a invasão do espaço defensivo e uma simples tabela com Messi, Xavi termina o lance na cara do guarda-redes. Ou seja, dois jogadores e uma tabela chegaram para suplantar 9 adversários e criar uma situação clara de golo. No momento em que a tabela tem lugar, há 8 jogadores do Milan num raio de 5 metros. Se isto não é algo extraordinário, não sei o que dizer. É importante dizer que o Milan defende este lance o melhor que é possível defendê-lo, numa estrutura de quatro médios em linha. Ou seja, não há espaço suficiente entre a linha defensiva e a linha de meio-campo para que o adversário consiga fazer entrar um passe vertical, deixando um jogador receber a bola nesse espaço. O problema é que, se por alguma razão o portador da bola consegue entrar entre dois médios, como foi o caso, é um dos defesas que tem de sair para lhe obstruir a passagem. Se, nessa altura, o portador da bola tiver sido acompanhado por um colega que, a seu lado, lhe sugere uma tabela, então esse defesa acaba por ser facilmente ultrapassado. A meu ver, este lance resulta por duas razões essenciais: o facto de o Milan estar a defender em duas linhas apenas, e o facto de os jogadores catalães (neste caso, Messi) perceberem a utilidade de fornecer apoios próximos ao portador da bola. Repare-se que, assim que Xavi invade o espaço central, Messi inicia um movimento idêntico, aproximando-se dele, e adivinhando que o colega ia precisar da sua tabela. Qualquer outra equipa do mundo, perante a concentração de adversários naquele espaço central, procuraria atacar pelos flancos. Só este Barcelona é que tem a capacidade de identificar estas possibilidades de penetração centrais e só este Barcelona é que sabe o que é preciso para que essas penetrações possam ser bem sucedidas.

3. O terceiro lance é da última jornada da Liga Espanhola, e foi, na verdade, o lance que me motivou a escrever este texto. Por tudo o que disse acerca dos dois lances anteriores, é evidente que penso que este tipo de lances é aquilo que mais elogios merece, em futebol. Também por isso, e numa jornada em que voltou a haver um desses lances formidáveis em Camp Nou, merece ampla reprovação a generalização dos elogios aos golos que Cristiano Ronaldo marcou frente ao Atlético de Madrid. É claro que as pessoas, quando vêem um golo, tendem a prestar atenção apenas ao remate, ao sítio onde a bola entra, ao efeito da bola, à potência do remate, etc.. Nesse sentido, é muito mais fácil reparar nos golos de Ronaldo do que num golo deste tipo. Como acho que a avaliação da qualidade de um golo deve ter em conta muito mais que o remate final, os golos de Ronaldo, ainda que de belo efeito, não são para mim motivo de espanto. São resultado de alguém que tem, de facto, uma técnica de remate estupenda, e são bons golos. Mas não são golos extraordinários. E falar de qualquer um desses golos quando na mesma jornada Messi fez um golo dez vezes melhor parece-me estúpido. É mais ou menos como elogiar um general que venceu uma batalha por ter melhor artilharia do que o inimigo e ignorar outro general que venceu a sua batalha apenas com infantaria, mas fazendo uso de estratégias criativas para evitar a artilharia do inimigo. Ronaldo marcou um golo num remate à entrada da área, sem oposição, com um pontapé que fez a bola entrar a meio da baliza. A execução do seu remate foi extraordinária, mas o grau de dificuldade do lance era relativamente baixo. Tal não foi o caso do golo de Messi, em que, mais uma vez, dois jogadores apenas e uma tabela chegaram para vencer a oposição de 7 adversários. No início da jogada, Iniesta dá a bola a Messi, e entra no bloco defensivo do Getafe. Messi espera que Iniesta apareça entre os quatro defesas e os três médios, e faz um passe vertical, iniciando de imediato um movimento na direcção do passe. De calcanhar, Iniesta amortece a bola para que Messi, que vinha na sua direcção, a apanhe em posição privilegiada. Uma simples tabela e Messi ultrapassa três médios e ainda fica com a linha de quatro defesas decisivamente desposicionada. Depois, foi só dominar e rematar; o trabalho mais difícil estava feito. A reacção de Guardiola ao golo diz tudo: dois dos seus pupilos, com uma simples tabela, como se fosse a coisa mais simples do mundo, tinham acabado de vencer a oposição de 7 adversários. Isto, sim, é um golo memorável!

4. Para o fim deixei o meu preferido, um golo de Iniesta frente ao Viktoria Plzen, na fase de grupos da edição deste ano da Liga dos Campeões. Ao contrário do que aconteceu nos três primeiros lances, neste lance são duas as tabelas, o que torna a coisa ainda mais complexa e difícil de realizar. Iniesta dá em Messi, que devolve a Iniesta. Com esta primeira tabela, o adversário que saíra a Iniesta inicialmente é ultrapassado. Quando Iniesta recebe a devolução, tem à sua frente um novo adversário, e aproxima-se rapidamente um terceiro pela sua esquerda. De primeira, Iniesta volta a devolver a Messi, afastando de si as atenções o suficiente para se voltar a desmarcar. Messi, que em toda a jogada funcionou como mero apoio, e praticamente não teve que se mexer, volta a jogar de primeira, desta vez para as costas do segundo opositor, entre ele e outro defesa, deixando Iniesta só com um adversário pela frente. O resto foi a habilidade individual de Iniesta a fazer. Com duas tabelas, sempre ao primeiro toque, dois jogadores ultrapassaram quatro adversários, e entraram numa estrutura defensiva bastante compacta e com coberturas suficientes para inutilizar a grande maioria dos ataques de qualquer adversário. O que este lance evidencia, talvez mais do que qualquer outro dos anteriores, é precisamente o porquê de uma tabela, de uma combinação entre dois jogadores, ser algo tão difícil de parar. Quando Iniesta endossa a bola a Messi, as atenções dos adversários, fossem eles quem fossem, centram-se em Messi e não em Iniesta, pois é Messi quem vai receber a bola. Isto dá tempo suficiente para Iniesta se movimentar para o espaço que pretende, sem que nenhum adversário o impeça. Preocupados momentaneamente com o receptor, perdem de vista aquele que fez o passe. Por mais que não quisesse, é assim que reage instintivamente qualquer defesa. Se, depois disto, Messi jogar de primeira em Iniesta, as atenções viram-se para o catalão, e é Messi quem fica livre para voltar a receber. Quando chegam a Iniesta, já este voltou a dar a bola a Messi, e as atenções voltam a virar-se para o argentino, permitindo a Iniesta uma segunda desmarcação.

Ao tabelarem, os jogadores que o fazem estão sempre à frente dos defesas que reagem à tabela. Sabendo disso, os jogadores catalães usam e abusam da tabela para iludir os adversários. Tais quais os mais competentes jogadores de xadrez, estão várias jogadas à frente dos adversários. Enquanto que, no momento seguinte ao primeiro jogador soltar a bola, os defesas estão preocupados com aquele que vai receber o passe, a jogada, para quem ataca, já está a desenrolar-se no momento posterior, no momento em que o primeiro jogador vai receber a devolução. É este o poder incomparável de uma tabela. Nenhuma outra equipa no mundo o sabe usar tão bem, e é também por isso que nenhuma outra equipa no mundo tem a capacidade deste Barcelona para entrar em blocos defensivos compactos. Cultivar, portanto, a tabela, é aquilo em que muitos treinadores deveriam procurar trabalhar, se querem realmente aproveitar alguma coisa dos ensinamentos desta equipa. Isso e perceber que, mais do que ensinar cada jogador a posicionar-se em relação aos restantes, trabalhar tacticamente é acima de tudo fazer compreender a cada jogador a mente dos colegas. Por outras palavras, criar onze almas gémeas. Tentarei voltar a este assunto brevemente.

P.S. Entretanto, pensar que há treinadores que, para criar dificuldades em certos exercícios de treino, determinam, por regra, que não se devolva a bola a quem fez o passe, parece adquirir toda uma nova dimensão. Para ser sincero, 99% dos exercícios de treino da grande maioria dos treinadores são absolutamente inúteis. Para quem treina convencionalmente, um exercício com o constrangimento de não se poder passar a bola a quem fez o passe anterior é sempre apetecível: é diferente, causa estranheza, implica obrigar os jogadores a pensar bem antes de passar. Esquecem-se é que o que deviam estar a fazer era a criar condições para que os jogadores precisassem cada vez de menos tempo para pensar antes de agir. Até nesse sentido, devolver a bola a quem fez o passe inicialmente é uma solução confortável. Mas negligenciar tudo o que uma tabela pode oferecer a uma equipa, apenas para incrementar a dificuldade do exercício, só mesmo na cabeça de alguém que não sabe o que é o jogo.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Lições de Mestre (4)

O mundial está aí à porta e, enquanto uns suam as estopinhas para ganhar a Moçambique, outros fazem os polacos comer pó e vencem-nos por seis golos sem resposta. A selecção espanhola é aquela que me parece, à partida, melhor apetrechada para vencer a competição e aquela cujo futebol mais espanta. Já o era para mim antes do Euro 2008 (prova que veio a vencer), apesar de o modelo de jogo e o trabalho técnico em torno do colectivo ter sido francamente pobre, e a substituição de Luis Aragonés por Vicente del Bosque no cargo de seleccionador só veio reforçar essa opinião. Depois de uma qualificação brilhante, só com vitórias, os espanhóis partem agora para o mundial no grupo dos maiores favoritos. Nunca antes a expectativa em torno de nuestros hermanos fora tão alta.



A jogada é a do segundo golo da Espanha frente à Polónia e, além de mostrar como o futebol, quando jogado de modo colectivo, pode ser extraordinário, é uma imagem de marca desta selecção, à qual Xavi, Iniesta, Fabregas e Silva, principalmente, forçam o seu estilo. O futebol rendilhado, de toque curto, dos espanhóis, a privilegiar os espaços centrais para penetrar nas linhas adversárias, teve neste lance a perfeição idealizável. O lance começa na esquerda e os polacos não têm propriamente os espaços centrais desprotegidos. Ainda assim, Iniesta conduz a bola para o meio, deixando-a em Xavi, que tabela de imediato com David Silva. Xavi aguenta depois a carga e joga em Iniesta, que se tinha posicionado no espaço entre linhas. Este, embora tenha David Silva a apenas um metro, não hesita em jogar de frente com ele, de primeira, recebendo a devolução de imediato. Iniesta roda, espera que Xavi se desmarque nas costas da defesa e, com um passe açucarado por cima de toda a defensiva, isola o colega de equipa no Barcelona. Isolado e perante a saída do guarda-redes adversário, Xavi não aponta à baliza, optando antes por passar de primeira para David Silva, que fica com a baliza escancarada e só tem de encostar.

Tudo isto, descrito assim, parece simples, mas é preciso notar que ocorre quase tudo num espaço de pouco mais de dez metros quadrados e no meio de sete adversários. Não sei se a dimensão do lance estará a ser bem compreendida. Três jogadores, sem a ajuda de mais ninguém, conseguiram passar pelo meio de sete adversários, num espaço reduzidíssimo, não em força ou em velocidade, mas recorrendo a trocas de bola curtas e rápidas. No total, desde o passe inicial de Iniesta até ao remate de Silva para o fundo da baliza, houve oito trocas de bola. Há quem ache que isto é simples e que o que estes jogadores fazem é simplificar o jogo. Mas isto é precisamente o oposto. O futebol dos espanhóis não podia ser mais complexo e de difícil execução. É por isso que, para jogar assim, é preciso índices de criatividade elevadíssimos em todos os jogadores e uma capacidade de raciocínio muito acima da média. Aqueles toques de primeira parecem fáceis porque a bola percorre poucos metros, mas os requisitos intelectuais para se poder executar um passe daqueles não estão ao alcance de todos. Cada uma daquelas trocas de bola exige mais do que o mais fantástico dos dribles individuais, do que o mais perfeito passe longo. Estes jogadores, antes de receberem a bola, já leram a mente dos colegas e já sabem como estes se vão comportar. Para que o saibam e para que possam tirar partido disso, não precisam apenas de estar à vontade tecnicamente para jogar de primeira; precisam, sobretudo, de ter a capacidade de se colocar no lugar dos outros, isto é, precisam de uma capacidade imaginativa suficientemente ampla para que percebam não só qual a melhor solução para o lance como também de que modo está o colega a pensar. O que esta jogada está, no fundo, a fazer, de um modo bem menos perceptível, é a troçar dos Raúis Meireles da bola. Este é o futebol do futuro e, mais do que isso, o próprio indício de quais serão os mais competentes jogadores do futuro. Haverá poucas lições mais perfeitas que esta e todos os treinadores do mundo deveriam pegar neste lance e mostrá-los aos seus jogadores, dizendo de seguida: "Estão a ver? É assim que se joga futebol!"