Apesar de ter perdido a titularidade a época passada, Xavi foi quase sempre utilizado por Luis Enrique. Quando jogava de início, o Barça era quase sempre melhor, apesar de praticamente ninguém conseguir ver isso. Quando entrava, a equipa passava automaticamente a jogar melhor. Ainda que em final de carreira, aquele que foi, muito possivelmente, o melhor jogador de sempre, no que diz respeito à tomada de decisão, mantinha uma influência incrível, e só aqueles que acham que o futebol requer os melhores atletas não eram capazes de percebê-lo. Como o futebol é dominado por essa gente, tornou-se praticamente consensual que a era de Xavi no Barça chegara ao fim. Tenho para mim que não foi só a era de Xavi que terminou. Com Xavi, foi-se também a melhor equipa de sempre. Aliás, restam dessa equipa poucos jogadores: Dani Alves, Piqué, Busquets, Iniesta e Messi. Com a saída de Xavi (e a de Pedro), a somar-se às saídas em anos anteriores de Thiago Alcântara e Fabregas, por exemplo, o futebol de toque curto, mais pensado do que corrido, chegou ao fim. O próprio Iniesta, se virmos bem, é um autêntico órfão em campo. Messi tem capacidades atléticas (e idade) que lhe permitem adaptar-se a um estilo de jogo diferente, e o entendimento com jogadores mais vertiginosos torna-se fácil. Iniesta não as tem, e o seu futebol eclipsa-se a cada dia que passa. Não quero ser mal entendido: esse futebol não se eclipa por Iniesta já não ter capacidades físicas para mantê-lo vivo, mas porque já não está rodeado de colegas a quem interessa jogar o mesmo jogo. Cada jogador é aquilo que o rodeia. E Iniesta deixou de estar rodeado dos mais inteligentes. O Barça de Luis Enrique já não é o Barça de Xavi e Iniesta. Em tempos, num lance que não consigo situar (imaginava, erradamente, ter sido o lance em Old Trafford que permitira a Paul Scholes fazer o golo que eliminou o Barça nas meias finais da Champions de 2007/2008), Xavi falhou um passe decisivo à entrada da área por tê-lo feito sem perceber antecipadamente se o colega a quem passava a bola estaria à espera de recebê-la. Ninguém me compreendeu, porque para quase toda a gente não se deve passar a bola antes de olhar a ver se lá está o colega. Xavi, ao falhar esse passe, antecipava o Barcelona de Guardiola. Antecipava-o na medida em que antecipava aquilo que o Barcelona de Guardiola permitia a todos os jogadores, e em especial ao próprio Xavi: jogar de olhos fechados e passar sem precisar de perceber se o colega vai estar onde deve estar. Xavi passou a bola, nesse dia, para onde devia estar o colega. Só que o colega não estava lá porque não tinha sido ensinado a perceber antecipadamente onde Xavi queria que ele estivesse. O Barcelona de Guardiola fez-se sobretudo disto: todos pareciam saber com antecedência suficiente as intenções dos colegas. Numa equipa assim, ninguém superava Xavi. Tinha sempre mais passes que toda a gente, percorria sempre mais metros do que os outros. Sem bola, dava mais opções ao portador do que qualquer outro colega. Com ela, era sempre o mais eficaz, optasse pelo passe curto ou pelo passe longo. Agora que a equipa de Xavi e Iniesta já não existe, a única boa notícia é que estão os dois (especialmente Xavi) mais próximos de se tornarem treinadores de futebol.
terça-feira, 29 de setembro de 2015
O Legado de Luis Enrique e outras coisas
Apesar de ter perdido a titularidade a época passada, Xavi foi quase sempre utilizado por Luis Enrique. Quando jogava de início, o Barça era quase sempre melhor, apesar de praticamente ninguém conseguir ver isso. Quando entrava, a equipa passava automaticamente a jogar melhor. Ainda que em final de carreira, aquele que foi, muito possivelmente, o melhor jogador de sempre, no que diz respeito à tomada de decisão, mantinha uma influência incrível, e só aqueles que acham que o futebol requer os melhores atletas não eram capazes de percebê-lo. Como o futebol é dominado por essa gente, tornou-se praticamente consensual que a era de Xavi no Barça chegara ao fim. Tenho para mim que não foi só a era de Xavi que terminou. Com Xavi, foi-se também a melhor equipa de sempre. Aliás, restam dessa equipa poucos jogadores: Dani Alves, Piqué, Busquets, Iniesta e Messi. Com a saída de Xavi (e a de Pedro), a somar-se às saídas em anos anteriores de Thiago Alcântara e Fabregas, por exemplo, o futebol de toque curto, mais pensado do que corrido, chegou ao fim. O próprio Iniesta, se virmos bem, é um autêntico órfão em campo. Messi tem capacidades atléticas (e idade) que lhe permitem adaptar-se a um estilo de jogo diferente, e o entendimento com jogadores mais vertiginosos torna-se fácil. Iniesta não as tem, e o seu futebol eclipsa-se a cada dia que passa. Não quero ser mal entendido: esse futebol não se eclipa por Iniesta já não ter capacidades físicas para mantê-lo vivo, mas porque já não está rodeado de colegas a quem interessa jogar o mesmo jogo. Cada jogador é aquilo que o rodeia. E Iniesta deixou de estar rodeado dos mais inteligentes. O Barça de Luis Enrique já não é o Barça de Xavi e Iniesta. Em tempos, num lance que não consigo situar (imaginava, erradamente, ter sido o lance em Old Trafford que permitira a Paul Scholes fazer o golo que eliminou o Barça nas meias finais da Champions de 2007/2008), Xavi falhou um passe decisivo à entrada da área por tê-lo feito sem perceber antecipadamente se o colega a quem passava a bola estaria à espera de recebê-la. Ninguém me compreendeu, porque para quase toda a gente não se deve passar a bola antes de olhar a ver se lá está o colega. Xavi, ao falhar esse passe, antecipava o Barcelona de Guardiola. Antecipava-o na medida em que antecipava aquilo que o Barcelona de Guardiola permitia a todos os jogadores, e em especial ao próprio Xavi: jogar de olhos fechados e passar sem precisar de perceber se o colega vai estar onde deve estar. Xavi passou a bola, nesse dia, para onde devia estar o colega. Só que o colega não estava lá porque não tinha sido ensinado a perceber antecipadamente onde Xavi queria que ele estivesse. O Barcelona de Guardiola fez-se sobretudo disto: todos pareciam saber com antecedência suficiente as intenções dos colegas. Numa equipa assim, ninguém superava Xavi. Tinha sempre mais passes que toda a gente, percorria sempre mais metros do que os outros. Sem bola, dava mais opções ao portador do que qualquer outro colega. Com ela, era sempre o mais eficaz, optasse pelo passe curto ou pelo passe longo. Agora que a equipa de Xavi e Iniesta já não existe, a única boa notícia é que estão os dois (especialmente Xavi) mais próximos de se tornarem treinadores de futebol.
Escrito por Nuno às 10:24:00 32 bolas ao poste
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domingo, 7 de junho de 2015
Pirlo e Xavi
Escrito por Nuno às 13:16:00 3 bolas ao poste
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terça-feira, 21 de outubro de 2014
Velhos são os Trapos
Escrito por Nuno às 11:04:00 5 bolas ao poste
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segunda-feira, 29 de julho de 2013
Xavi e Iniesta: a Incompatibilidade Compatível
Quando era jovem, Guardiola achava que precisava de mais do que de passar bem a bola para vingar na modalidade, mas acabou por triunfar única e exclusivamente porque Cruyff era diferente dos outros treinadores. Não tivesse Guardiola sido treinado por alguém assim, dificilmente teria sido o jogador que foi. Poucos há que percebam isto. Para muita gente, quando se tem talento, tem-se talento e ponto final, e quem o tem acaba por triunfar, mais tarde ou mais cedo. Não podia estar mais em desacordo. Para que um jogador triunfe, sobretudo um jogador cujas principais virtudes são as tais características "relacionais", é preciso que o treinador seja especial, que prefira um determinado tipo de atributos e não outros. Ao longo dos anos, muitos dos jogadores que aqui fomos defendendo e que não conseguiram triunfar são jogadores deste tipo, jogadores que, ao contrário de Guardiola, não tiveram a sorte de ser treinados por alguém especial e que, por isso, não atingiram o máximo do seu potencial. Quanto a Xavi e Iniesta, alguém acredita que eles seriam o que são hoje se não fosse Guardiola? Basta ver como se queixavam, em 2006, por todos acharem que não podiam jogar juntos. Toda a gente gaba as habilidades de Iniesta, a capacidade de manter a bola, de rodar sobre si mesmo, a calma com que sai de situações complicadas, etc.. Mas Iniesta é capaz disso tudo porque está inserido num contexto que o favorece, porque sabe que tem sempre alguém muito perto de si e que, por tê-lo, tem também uma solução de recurso a toda a hora, o que lhe permite forçar certos movimentos, arriscar certas iniciativas. Iniesta é o jogador que é porque cresceu no ambiente mais favorável possível; tem aquelas características individuais notáveis, que todos elogiam e que a todos espanta, não porque as tenha e pronto, mas porque tem também certas características "relacionais" e está inserido num modelo que privilegia as últimas.
Ser um jogador de futebol a sério é essencialmente isto: ser extraordinário a relacionar-se com os colegas de equipa. Evidentemente, há jogadores de outro tipo, jogadores cujas habilidades individuais definem o seu talento. A estes é relativamente fácil medir a qualidade; basta contabilizar o sucesso e o insucesso de cada uma das suas acções. Medir o futebol de Xavi ou Iniesta, por exemplo, é muito mais difícil. E é-o porque cada uma das suas acções não se esgota em si mesma. Cada coisa que fazem beneficia o que faz um colega e beneficia o que faz o colectivo. É o talento individual de Xavi que faz com que consiga aquela quantidade absurda de passes por jogo? É Xavi sozinho o responsável por todos aqueles passes de régua e esquadro? É unicamente por ser Xavi o maestro que é que todos reconhecem que é dos pés dele que se inicia boa parte das jogadas do Barcelona? Não. Xavi é o que é porque os colegas fazem com que o seja. Dão-lhe opções constantes de passe, aproximam-se dele para lhe permitir várias decisões, garante-lhe proximidade e segurança para que não tenha de se apressar a tomar uma decisão. Xavi é o que é por força do que o rodeia. E o que o rodeia é um conjunto de jogadores que pensa como ele, que percebe quais possam ser as suas intenções e que fazem tudo para que ele as possa cumprir. Xavi é o que é porque joga com almas gémeas. É o próprio Xavi quem o reconhece, nesta entrevista:
Regressando à questão da compatibilidade, posso aceitar que um determinado jogador não seja compatível com outro igual a ele, mas apenas se forem jogadores que se distingam pelos seus atributos individuais. Mas, nesse caso, não acho sequer que um só jogador seja compatível com a equipa. Como entendo o jogo, uma equipa de futebol a sério tem de ter onze jogadores que se caracterizem essencialmente pela capacidade com que se relacionam com os colegas. Se for esse o caso, não me interessa ter um jogador de cada tipo, apto para uma coisa específica, mais indicado para um tipo de função e menos para outros tipos. Interessa-me, isso sim, ter jogadores todos do mesmo tipo, jogadores parecidos entre si, que valorizem as mesmas coisas, que se compreendam com facilidade, que percebam quais as dificuldades de cada colega, consoante as circunstâncias em que se encontrem. Não só acho, portanto, que Xavi e Iniesta são compatíveis, como sempre achei, como acho que Xavi é compatível com dez Iniestas, e vice-versa. Para muita gente, Xavi e Iniesta são compatíveis porque Guardiola mostrou que podiam sê-lo. Não pensavam assim há 5 anos, no entanto. E mesmo aceitando agora que o são, aceitam-no por razões erradas, porque acham que, afinal, até dá para ter dois criativos no meio-campo. Eu acho que são compatíveis, mas não por achar que haja espaço para dois médios criativos numa equipa de futebol; acho que são compatíveis porque o futebol é um jogo de médios criativos. E é por isso, em última análise, que acho não só que são compatíveis entre eles como são compatíveis com mais nove jogadores idênticos. O futebol é um jogo para criativos, e o modelo ideal de um jogo que se caracteriza assim é necessariamente aquele em que a criatividade dos jogadores for melhor potenciada. O papel do treinador ideal, deste ponto de vista, não é propriamente trazer ao de cima o melhor de cada atleta, não é conceber as melhores estratégias possíveis para contrariar os adversários, não é ser capaz de manter motivados os seus jogadores; é fazer com que cada jogador aprenda a relacionar-se com os colegas. Só isso: criar almas gémeas. E, para criá-las, há um atributo indispensável: a criatividade, entendendo-se criatividade como imaginação, ou seja, o atributo intelectual que permite a cada um perceber o tipo de soluções que pode empreender para fazer face ao que o rodeia e, por conseguinte, o que permite a cada um perceber aquilo de que precisa cada um dos seus colegas a cada instante.
Escrito por Nuno às 16:17:00 25 bolas ao poste
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quinta-feira, 21 de junho de 2012
Euro 2012 - 3ª Ronda
Escrito por Nuno às 00:18:00 20 bolas ao poste
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sábado, 14 de abril de 2012
A Tabela
1. Para dizer a verdade, no primeiro destes lances há um terceiro interveniente, precisamente o que recebe o último passe para finalizar (neste caso, Messi). Mas é irrelevante que assim seja, para o que pretendo mostrar. O lance é o do quarto golo da já longínqua goleada imposta ao Villareal em Camp Nou, no início desta época. Apesar da finalização de Messi, e do passe extraordinário de Iniesta a isolar o companheiro, num lance que parece uma criança a brincar com um ioiô, aquilo para que quero chamar a atenção é para a tabela entre Iniesta e Thiago Alcântara, tabela essa que precede o passe. Thiago invade o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, e até tem um adversário à ilharga, protegendo esse mesmo espaço. Praticamente nenhum jogador faria o que Iniesta fez, pondo nesse mesmo espaço a bola, porque Thiago não beneficiria em nada de receber ali a bola, já que ficaria rodeado de adversários. Acontece que este Barcelona usa a bola como engodo como nenhuma outra equipa, e o simples colocar da bola num espaço preenchido por adversários oferece ao adversário a tentação de recuperá-la, desposicionando-se. Repare-se que, no momento em que a bola se dirige para Thiago, há três jogadores do Villareal (os que estavam mais perto de Thiago) que saem ligeiramente das suas posições para se aproximarem do jogador que vai receber a bola naquele espaço. Parecendo que não, um pequeno passe aparentemente inútil e inofensivo, provoca desequilíbrios estruturais decisivos. Thiago dobra imediatamente o passe, entregando a bola novamente em Iniesta, mas tudo é agora diferente. Uma simples tabela vertical, sem progressão de qualquer espécie, serviu para desestabilizar a organização defensiva do adversário: um dos centrais avançou no terreno, criando um espaço nas suas costas, entre o outro central e o lateral; o médio que estava a acautelar o espaço entre linhas deslocou-se para a esquerda, abrindo uma linha de passe pelo centro; e o médio que estava mais perto de Iniesta afastou-se dele o suficiente para lhe permitir um passe em condições. Resta dizer que Messi interpretou isto de forma impressionante, e desmarcou-se precisamente para onde se devia desmarcar, recebendo o passe de Iniesta. O que me parece importante perceber neste lance não é tanto a extraordinária capacidade que os jogadores do Barça têm para inventar estes lances, mas mais a importância de algo aparentemente inútil, como seja um passe para um jogador que não pode senão devolver a bola ao colega que a passou. Sem o passe para Thiago, e a respectiva devolução, o Barcelona não teria sido capaz de criar as condições ideais para construir uma situação de perigo. É por isso que Guardiola dá tanta importância ao espaço. Em ataque organizado, tudo o que uma equipa tem de fazer é criar espaços. Para criá-los, tem de forçar o adversário a concedê-los. E a única forma de forçar um adversário que se posiciona bem em termos defensivos a concedê-los é fazendo coisas como esta, fazendo a bola entrar e sair em zonas que os adversários têm obrigatoriamente de fechar. É por isto que o futebol de toque curto, de passe e recepção, que caracteriza esta equipa não serve apenas, como muitos julgam, para adormecer o adversário, para esperar pelo momento certo para desferir o ataque, para não perder a bola à toa. Quem pensa assim não percebe nada deste Barcelona. É claro que fazer um uso cuidado da bola, como esta equipa o faz, é também uma forma de cínica de defender. Mas é muito mais do que isso, como este lance mostra. É a forma mais eficiente de atacar.
2. O segundo lance ocorreu na primeira mão da recente eliminatória frente ao Milan, a contar para os quartos de final da Liga dos Campeões. O lance acabou por não dar golo, mas foi notável o que Xavi e Messi fizeram. Quando Xavi recebe a bola, o Milan tem 9 jogadores atrás da linha da bola (os quatro defesas, os quatro médios, e Robinho), todos eles concentrados no meio. Com a invasão do espaço defensivo e uma simples tabela com Messi, Xavi termina o lance na cara do guarda-redes. Ou seja, dois jogadores e uma tabela chegaram para suplantar 9 adversários e criar uma situação clara de golo. No momento em que a tabela tem lugar, há 8 jogadores do Milan num raio de 5 metros. Se isto não é algo extraordinário, não sei o que dizer. É importante dizer que o Milan defende este lance o melhor que é possível defendê-lo, numa estrutura de quatro médios em linha. Ou seja, não há espaço suficiente entre a linha defensiva e a linha de meio-campo para que o adversário consiga fazer entrar um passe vertical, deixando um jogador receber a bola nesse espaço. O problema é que, se por alguma razão o portador da bola consegue entrar entre dois médios, como foi o caso, é um dos defesas que tem de sair para lhe obstruir a passagem. Se, nessa altura, o portador da bola tiver sido acompanhado por um colega que, a seu lado, lhe sugere uma tabela, então esse defesa acaba por ser facilmente ultrapassado. A meu ver, este lance resulta por duas razões essenciais: o facto de o Milan estar a defender em duas linhas apenas, e o facto de os jogadores catalães (neste caso, Messi) perceberem a utilidade de fornecer apoios próximos ao portador da bola. Repare-se que, assim que Xavi invade o espaço central, Messi inicia um movimento idêntico, aproximando-se dele, e adivinhando que o colega ia precisar da sua tabela. Qualquer outra equipa do mundo, perante a concentração de adversários naquele espaço central, procuraria atacar pelos flancos. Só este Barcelona é que tem a capacidade de identificar estas possibilidades de penetração centrais e só este Barcelona é que sabe o que é preciso para que essas penetrações possam ser bem sucedidas.
3. O terceiro lance é da última jornada da Liga Espanhola, e foi, na verdade, o lance que me motivou a escrever este texto. Por tudo o que disse acerca dos dois lances anteriores, é evidente que penso que este tipo de lances é aquilo que mais elogios merece, em futebol. Também por isso, e numa jornada em que voltou a haver um desses lances formidáveis em Camp Nou, merece ampla reprovação a generalização dos elogios aos golos que Cristiano Ronaldo marcou frente ao Atlético de Madrid. É claro que as pessoas, quando vêem um golo, tendem a prestar atenção apenas ao remate, ao sítio onde a bola entra, ao efeito da bola, à potência do remate, etc.. Nesse sentido, é muito mais fácil reparar nos golos de Ronaldo do que num golo deste tipo. Como acho que a avaliação da qualidade de um golo deve ter em conta muito mais que o remate final, os golos de Ronaldo, ainda que de belo efeito, não são para mim motivo de espanto. São resultado de alguém que tem, de facto, uma técnica de remate estupenda, e são bons golos. Mas não são golos extraordinários. E falar de qualquer um desses golos quando na mesma jornada Messi fez um golo dez vezes melhor parece-me estúpido. É mais ou menos como elogiar um general que venceu uma batalha por ter melhor artilharia do que o inimigo e ignorar outro general que venceu a sua batalha apenas com infantaria, mas fazendo uso de estratégias criativas para evitar a artilharia do inimigo. Ronaldo marcou um golo num remate à entrada da área, sem oposição, com um pontapé que fez a bola entrar a meio da baliza. A execução do seu remate foi extraordinária, mas o grau de dificuldade do lance era relativamente baixo. Tal não foi o caso do golo de Messi, em que, mais uma vez, dois jogadores apenas e uma tabela chegaram para vencer a oposição de 7 adversários. No início da jogada, Iniesta dá a bola a Messi, e entra no bloco defensivo do Getafe. Messi espera que Iniesta apareça entre os quatro defesas e os três médios, e faz um passe vertical, iniciando de imediato um movimento na direcção do passe. De calcanhar, Iniesta amortece a bola para que Messi, que vinha na sua direcção, a apanhe em posição privilegiada. Uma simples tabela e Messi ultrapassa três médios e ainda fica com a linha de quatro defesas decisivamente desposicionada. Depois, foi só dominar e rematar; o trabalho mais difícil estava feito. A reacção de Guardiola ao golo diz tudo: dois dos seus pupilos, com uma simples tabela, como se fosse a coisa mais simples do mundo, tinham acabado de vencer a oposição de 7 adversários. Isto, sim, é um golo memorável!
4. Para o fim deixei o meu preferido, um golo de Iniesta frente ao Viktoria Plzen, na fase de grupos da edição deste ano da Liga dos Campeões. Ao contrário do que aconteceu nos três primeiros lances, neste lance são duas as tabelas, o que torna a coisa ainda mais complexa e difícil de realizar. Iniesta dá em Messi, que devolve a Iniesta. Com esta primeira tabela, o adversário que saíra a Iniesta inicialmente é ultrapassado. Quando Iniesta recebe a devolução, tem à sua frente um novo adversário, e aproxima-se rapidamente um terceiro pela sua esquerda. De primeira, Iniesta volta a devolver a Messi, afastando de si as atenções o suficiente para se voltar a desmarcar. Messi, que em toda a jogada funcionou como mero apoio, e praticamente não teve que se mexer, volta a jogar de primeira, desta vez para as costas do segundo opositor, entre ele e outro defesa, deixando Iniesta só com um adversário pela frente. O resto foi a habilidade individual de Iniesta a fazer. Com duas tabelas, sempre ao primeiro toque, dois jogadores ultrapassaram quatro adversários, e entraram numa estrutura defensiva bastante compacta e com coberturas suficientes para inutilizar a grande maioria dos ataques de qualquer adversário. O que este lance evidencia, talvez mais do que qualquer outro dos anteriores, é precisamente o porquê de uma tabela, de uma combinação entre dois jogadores, ser algo tão difícil de parar. Quando Iniesta endossa a bola a Messi, as atenções dos adversários, fossem eles quem fossem, centram-se em Messi e não em Iniesta, pois é Messi quem vai receber a bola. Isto dá tempo suficiente para Iniesta se movimentar para o espaço que pretende, sem que nenhum adversário o impeça. Preocupados momentaneamente com o receptor, perdem de vista aquele que fez o passe. Por mais que não quisesse, é assim que reage instintivamente qualquer defesa. Se, depois disto, Messi jogar de primeira em Iniesta, as atenções viram-se para o catalão, e é Messi quem fica livre para voltar a receber. Quando chegam a Iniesta, já este voltou a dar a bola a Messi, e as atenções voltam a virar-se para o argentino, permitindo a Iniesta uma segunda desmarcação.
Ao tabelarem, os jogadores que o fazem estão sempre à frente dos defesas que reagem à tabela. Sabendo disso, os jogadores catalães usam e abusam da tabela para iludir os adversários. Tais quais os mais competentes jogadores de xadrez, estão várias jogadas à frente dos adversários. Enquanto que, no momento seguinte ao primeiro jogador soltar a bola, os defesas estão preocupados com aquele que vai receber o passe, a jogada, para quem ataca, já está a desenrolar-se no momento posterior, no momento em que o primeiro jogador vai receber a devolução. É este o poder incomparável de uma tabela. Nenhuma outra equipa no mundo o sabe usar tão bem, e é também por isso que nenhuma outra equipa no mundo tem a capacidade deste Barcelona para entrar em blocos defensivos compactos. Cultivar, portanto, a tabela, é aquilo em que muitos treinadores deveriam procurar trabalhar, se querem realmente aproveitar alguma coisa dos ensinamentos desta equipa. Isso e perceber que, mais do que ensinar cada jogador a posicionar-se em relação aos restantes, trabalhar tacticamente é acima de tudo fazer compreender a cada jogador a mente dos colegas. Por outras palavras, criar onze almas gémeas. Tentarei voltar a este assunto brevemente.
P.S. Entretanto, pensar que há treinadores que, para criar dificuldades em certos exercícios de treino, determinam, por regra, que não se devolva a bola a quem fez o passe, parece adquirir toda uma nova dimensão. Para ser sincero, 99% dos exercícios de treino da grande maioria dos treinadores são absolutamente inúteis. Para quem treina convencionalmente, um exercício com o constrangimento de não se poder passar a bola a quem fez o passe anterior é sempre apetecível: é diferente, causa estranheza, implica obrigar os jogadores a pensar bem antes de passar. Esquecem-se é que o que deviam estar a fazer era a criar condições para que os jogadores precisassem cada vez de menos tempo para pensar antes de agir. Até nesse sentido, devolver a bola a quem fez o passe inicialmente é uma solução confortável. Mas negligenciar tudo o que uma tabela pode oferecer a uma equipa, apenas para incrementar a dificuldade do exercício, só mesmo na cabeça de alguém que não sabe o que é o jogo.
Escrito por Nuno às 00:24:00 17 bolas ao poste
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quinta-feira, 10 de junho de 2010
Lições de Mestre (4)
A jogada é a do segundo golo da Espanha frente à Polónia e, além de mostrar como o futebol, quando jogado de modo colectivo, pode ser extraordinário, é uma imagem de marca desta selecção, à qual Xavi, Iniesta, Fabregas e Silva, principalmente, forçam o seu estilo. O futebol rendilhado, de toque curto, dos espanhóis, a privilegiar os espaços centrais para penetrar nas linhas adversárias, teve neste lance a perfeição idealizável. O lance começa na esquerda e os polacos não têm propriamente os espaços centrais desprotegidos. Ainda assim, Iniesta conduz a bola para o meio, deixando-a em Xavi, que tabela de imediato com David Silva. Xavi aguenta depois a carga e joga em Iniesta, que se tinha posicionado no espaço entre linhas. Este, embora tenha David Silva a apenas um metro, não hesita em jogar de frente com ele, de primeira, recebendo a devolução de imediato. Iniesta roda, espera que Xavi se desmarque nas costas da defesa e, com um passe açucarado por cima de toda a defensiva, isola o colega de equipa no Barcelona. Isolado e perante a saída do guarda-redes adversário, Xavi não aponta à baliza, optando antes por passar de primeira para David Silva, que fica com a baliza escancarada e só tem de encostar.
Tudo isto, descrito assim, parece simples, mas é preciso notar que ocorre quase tudo num espaço de pouco mais de dez metros quadrados e no meio de sete adversários. Não sei se a dimensão do lance estará a ser bem compreendida. Três jogadores, sem a ajuda de mais ninguém, conseguiram passar pelo meio de sete adversários, num espaço reduzidíssimo, não em força ou em velocidade, mas recorrendo a trocas de bola curtas e rápidas. No total, desde o passe inicial de Iniesta até ao remate de Silva para o fundo da baliza, houve oito trocas de bola. Há quem ache que isto é simples e que o que estes jogadores fazem é simplificar o jogo. Mas isto é precisamente o oposto. O futebol dos espanhóis não podia ser mais complexo e de difícil execução. É por isso que, para jogar assim, é preciso índices de criatividade elevadíssimos em todos os jogadores e uma capacidade de raciocínio muito acima da média. Aqueles toques de primeira parecem fáceis porque a bola percorre poucos metros, mas os requisitos intelectuais para se poder executar um passe daqueles não estão ao alcance de todos. Cada uma daquelas trocas de bola exige mais do que o mais fantástico dos dribles individuais, do que o mais perfeito passe longo. Estes jogadores, antes de receberem a bola, já leram a mente dos colegas e já sabem como estes se vão comportar. Para que o saibam e para que possam tirar partido disso, não precisam apenas de estar à vontade tecnicamente para jogar de primeira; precisam, sobretudo, de ter a capacidade de se colocar no lugar dos outros, isto é, precisam de uma capacidade imaginativa suficientemente ampla para que percebam não só qual a melhor solução para o lance como também de que modo está o colega a pensar. O que esta jogada está, no fundo, a fazer, de um modo bem menos perceptível, é a troçar dos Raúis Meireles da bola. Este é o futebol do futuro e, mais do que isso, o próprio indício de quais serão os mais competentes jogadores do futuro. Haverá poucas lições mais perfeitas que esta e todos os treinadores do mundo deveriam pegar neste lance e mostrá-los aos seus jogadores, dizendo de seguida: "Estão a ver? É assim que se joga futebol!"
Escrito por Nuno às 00:25:00 5 bolas ao poste
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