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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Filhos e Enteados

Uma das coisas que mais confusão me faz, no comportamento das pessoas, é a adesão irreflectida às convenções. O fenómeno faz-me confusão, apesar de conseguir compreendê-lo. Consigo compreender que a educação que receberam não as preparou para exercerem o espírito crítico. Como aprenderam quase tudo por estipulação (por exemplo, disseram-lhes que a soma do quadrado dos catetos era igual ao quadrado da hipotenusa, decoraram-no e tomaram-no por verdade), aprenderam também que todas as coisas se sabem por estipulação. Assim convictos, passam o resto da vida a receber informações alheias e a transformá-las em certezas. E aquilo que sabem, ou julgam saber, não é senão o que os outros lhes dizem. Quando desconfiam dessas informações, cruzam-nas com outras opiniões e, por um critério democrático, aceitam-nas como verdades quando chegam à conclusão de que é uma opinião maioritária. Pessoalmente, considero que quem sabe tudo por estipulação e sufrágio, que é o caso das pessoas que estou a caricaturar acima e que corresponde, em larga medida, à esmagadora maioria das pessoas, não sabe nada. Assim que se lhes diz uma coisa, e que se lhes mostra que até há muita gente que considera que essa coisa é verdade, essas pessoas decidem aderir à mesma opinião. A tendência gregária recomenda-lhes que é melhor ficar do lado das maiorias e, como não sabem nada, ficam sem razão alguma para desconfiar daquilo que lhes está a ser dito. Este género particular de estupidez em massa é tão característica em futebol como noutra actividade qualquer. E é ainda característico - creio - de sociedades democráticas, nas quais a opinião de um bêbedo num café vale tanto como a opinião de qualquer outra pessoa, seja a respeito de que assunto for. Este tique democrático absurdo de acreditar no que é convencional é flagrante - introduzindo agora o assunto sobre que quero falar - na opinião que começa a fixar-se, entre benfiquistas e não só, acerca das qualidades de Jonas. Ou melhor, a distinção entre a opinião relativamente impoluta que se começa a formar acerca de Jonas e a opinião que se foi formando ao longo dos anos acerca de um jogador que me parece incrivelmente parecido com Jonas é tão significativa que torna flagrante o tique a que me estou a referir. 

Ao contrário de muita gente, já conhecia Jonas há alguns anos. Não acompanhei o seu percurso no Brasil, mas habituei-me a vê-lo no Valência, e tenho uma opinião bastante informada acerca das suas competências. Não me surpreende, por isso, o entusiasmo que essas competências, sobretudo a sua inteligência, a finura com que trata a bola, a capacidade técnica e as boas decisões, têm gerado, ainda que me pareça que, sem os golos que tem marcado, a reacção das pessoas não seria igual. E também não me surpreende, para dizer a verdade, que as pessoas estejam a reagir com entusiasmo a essas competências quando, em relação a outros jogadores em que elas se verificam, ou ficam indiferentes ou reagem com desdém. Para dar um exemplo de um jogador que, não sendo aquele com quem quero comparar Jonas, tem um perfil muito semelhante ao brasileiro do Benfica, não encontro muita gente entusiasmada com o futebol de Freddy Montero, possivelmente o melhor avançado a jogar em Portugal. Montero gerou entusiasmo nos primeiros meses, é verdade, mas só porque andava a marcar golos. Assim que os seus números diminuíram, as pessoas foram deixando de apreciá-lo. Aquilo que oferece ao futebol do Sporting é inestimável, mas aos poucos o argelino Slimani, que no princípio da época transacta era considerado um pinheiro, passou a reunir mais admiração do que o colombiano. Slimani é um finalizador razoável. Tirando a capacidade de finalização, procura não complicar muito as suas acções, mas é um avançado banalíssimo. Montero é tudo menos banal. Quase tudo o que faz é muito bem feito, tecnicamente é extraordinário, sabe servir de apoio frontal como ninguém, percebe exactamente qual a melhor solução a dar aos colegas sem bola, sabe jogar entre linhas, etc.. Que opinião é que as pessoas têm dele? Que tem pouca confiança, que é razoável a tratar a bola, mas que faz poucos golos. O número de golos, esse critério maravilhoso para aferir as qualidades de um avançado, é tudo aquilo de que as pessoas precisam para refutar as opiniões dos bêbedos do café a que costumam ir. Realmente, é um critério irrefutável entre bêbedos. Entre pessoas com o domínio das suas competências racionais, no entanto, não é nada. O número de golos não diz nada acerca da qualidade de um avançado e não diz nada acerca do que esse avançado faz pela equipa em que joga. Nada! O Sporting, de resto, teve na sua História recente uma relação de 8 ou 9 anos com um avançado que prejudicava inacreditavelmente a equipa, mas que, como marcava muitos golos, era muito acarinhado. Nessa altura, defendi muitas coisas polémicas acerca do futuro próximo do Sporting, não necessariamente acerca dos efeitos que esse avançado teria nesse futuro, mas acerca dos efeitos que a opinião acerca desse avançado produziria no futuro. Defendi que, com Liedson, o Sporting jamais seria campeão, mas defendi também que o Sporting, como clube, seria mais pequeno nos anos seguintes; defendi que, com Liedson, havia uma série de jogadores que nunca poderiam atingir patamares superiores, mas defendi também que o Sporting, pela admiração que tinha por aquele jogador, iria ter problemas para competir com os seus principais rivais nos anos vindouros. O Sporting teve, entretanto, outros problemas. Nenhum deles é mais difícil de resolver do que o comprazimento na mediocridade de um jogador como Liedson. E é por isso que a equipa de futebol do Sporting é cada vez mais uma equipa de clube pequeno. E é pena, porque o Sporting é um clube grande.

Voltando ao assunto "Jonas", poderia falar ainda de Óscar Cardozo. Ao contrário de Montero, que ainda só está em Portugal há um ano e, portanto, ainda não deu tempo para que se gerassem opiniões firmes acerca das suas qualidades, Cardozo esteve muito tempo em Portugal. Infelizmente para este argumento, Cardozo foi marcando muitos golos e, como tal, houve muita gente que foi resistindo a dar razão àqueles que achavam que Cardozo era lento, pouco ágil, pouco agressivo, pouco intenso, preguiçoso e coisas do género. Tenho a certeza, contudo, que se Cardozo tivesse o azar de permanecer mais um ou dois anos em Portugal sem marcar muitos golos, como na última época, depressa a opinião pública se tornaria assustadoramente negativa. E, no entanto, Cardozo é um avançado interessantíssimo, mesmo sem marcar o número de golos a que habitou a massa adepta do Benfica. É-o porque, apesar da sua envergadura, apesar da pouca agilidade, apesar das dificuldades motoras, é um jogador inteligente, que toma boas decisões, que sabe oferecer apoios verticais e jogar de costas para a baliza, e que tem um excelente sentido posicional. Isto é o mais importante, do meu ponto de vista, num avançado de uma equipa que passa a maior parte do tempo em organização ofensiva. E é isto, fundamentalmente, que Jonas tem, que faz dele o avançado que é, e que causa o entusiasmo que tem causado. É bastante diferente de Cardozo em muitas coisas, mas é um jogador que, em organização ofensiva, faz bem o que o paraguaio fazia bem. Pode ser mais ágil, mais móvel, tecnicamente mais evoluído, ser mais rápido a decidir, mas o seu perfil de decisão é semelhante. Cardozo compensava aquilo em que era menos bom com outras características (a facilidade de remate e a capacidade para proteger a bola, por exemplo), mas tinha um perfil de decisão parecido. É isto que é importante perceber.

Ora bem, é sobretudo pelo perfil de decisão, mas também por quase tudo o resto, que acho que Jonas é parecido... com Hélder Postiga. Quem segue este blogue, sabe não só o que acho acerca de Postiga como terá decerto adivinhado quem era o avançado a quem queria comparar Jonas. Quem não o segue, como é o caso dos imbecis que resolveram adoptar o tique democrático absurdo de que me queixo acima quando comparei os dois jogadores na caixa de comentários deste texto no Lateral Esquerdo, esta comparação talvez faça rir. Sobre a reacção da risada, disse o que tinha a dizer no primeiro parágrafo deste texto: quem ri assim teve uma educação fraca, não sabe pensar, adere a tudo o que as maiorias pensam e gosta é de conversar com bêbedos. Sobre a comparação propriamente dita, justifico-a como justifiquei as comparações anteriores. Postiga é um avançado inteligentíssimo, bom tecnicamente, que resolve situações complicadas tendo pouco espaço e pouco tempo, que decide invariavelmente bem, que não é egoísta, que sabe jogar entre linhas e sabe oferecer apoios verticais aos médios; é alguém com quem é muito fácil combinar, seja com tabelas, seja com triangulações, seja simplesmente com arrastamentos posicionais; é um avançado que contribui, em todas as fases do ataque, de alguma maneira, que percebe exactamente as necessidades da equipa a cada momento. Em que é que isto é diferente daquilo que Jonas tem mostrado? Rigorosamente nada. A não ser que tudo o que se anda a dizer de Jonas se ande a dizer só porque, além disso, tem marcado golos. Devo dizer que não tenho grandes dúvidas de que assim seja. Criou-se a ideia de que Postiga é perdulário (que é uma ideia absolutamente falsa!), e acha-se, portanto, que Jonas não é. Se é essa a diferença, e se é por isso que, consciente ou inconscientemente, esta comparação melindra tanto as pessoas, aquilo que posso recomendar é paciência. É que os golos de Jonas não vão durar para sempre. Ele não será pior jogador quando deixar de marcar, mas nessa altura a opinião das pessoas modificar-se-á. Nessa altura, garanto àqueles que têm opiniões e que pensam que as suas opiniões, por serem idênticas à opinião maioritária, são boas, que Jonas se parecerá um bocadinho mais com Postiga. É pouco provável que venha a criar uma opinião negativa tão consolidada como a opinião que se tem acerca de Postiga, até porque uma opinião assim requer tempo de consolidação, mas a opinião será diferente da que se tem agora. E quem tiver essa opinião nem sequer perceberá que antes tivera uma opinião diferente, nem sequer perceberá que a sua opinião mudou porque as pessoas que estão à sua volta mudaram de opinião, nem sequer perceberá que, na verdade, a opinião que toma por sua não é propriamente sua, mas da massa informe e estúpida a que inconscientemente pertence. E rir-se-á quando alguém comparar um avançado recém-chegado que julga ser extraordinário a um avançado sobre o qual tem uma opinião que não é senão a opinião imbecil dos vizinhos e dos bêbedos que conhece.

domingo, 29 de setembro de 2013

O Caso Cardozo

Muito se falou do caso Cardozo durante o defeso, o que me levou a planear um texto sobre o assunto que, por falta de tempo e oportunidade, acabei por nunca escrever. Embora o caso, pelo menos internamente, pareça resolvido, continua a ser motivo de conversa, sobretudo entre aqueles que, provavelmente para satisfazerem frustrações pessoais, se têm tentado aproveitar de tudo e mais alguma coisa para atacar a equipa técnica, a direcção ou o clube encarnado. Nos últimos dias, por exemplo, ouvi várias opiniões favoráveis à dispensa do paraguaio, face ao sucedido, em nome de um bem maior que seria a dignidade do clube, a coesão do grupo ou o normal funcionamento da estrutura. A minha opinião acerca do Benfica, da sua direcção ou da competência da equipa técnica é absolutamente irrelevante para o que vou dizer, pelo que me abstenho de fazer juízos a estas entidades respeitantes, acerca das decisões tomadas neste caso. Ora, sobre o caso em concreto, confesso que nunca percebi bem a teoria por detrás do argumento, aliás absolutamente consensual em praça pública, de que um jogador que põe em causa a autoridade de um treinador deve ser imediatamente afastado do grupo, por descredibilizar o treinador e, por arrasto, enfraquecer a confiança dos restantes elementos do grupo naquele que o chefia. Na verdade, não compreendo a teoria porque não compreendo o argumento. E não compreendo o argumento porque não compreendo as diferentes premissas que o sustentam, a saber, 1) a convicção de que a força de um grupo depende da confiança que os diferentes elementos do grupo depositam naquele que o chefia e 2) a convicção de que a acção de um jogador pôr em causa a autoridade de um treinador produz necessariamente, aos olhos dos restantes elementos do grupo, o efeito da descredibilização desse treinador e a desconfiança generalizada acerca das suas competências enquanto tal.
A respeito da primeira premissa, posso talvez contra-argumentar lembrando que não parece haver grande diferença, pelo menos à partida, entre uma equipa inteira desconfiar das competências do treinador e a equipa inteira desconfiar das competências do guarda-redes dessa equipa. Isto é, a confiança de um grupo depende tanto da confiança no seu líder quanto da confiança em qualquer um dos colegas. Num grupo, o líder não tem uma posição privilegiada senão para liderá-lo. É verdade que as decisões de um líder afectam cada um dos elementos do grupo. Mas tenho muitas dúvidas que um mau guarda-redes não possa afectar ainda mais a confiança de cada um deles. Sou, aliás, da opinião, contrária à opinião da maioria das pessoas que conheço, que o problema do Sporting de José Peseiro foi muito menos a falta de competências para liderar um grupo do que a sucessão de fífias do central Hugo e do guarda-redes Ricardo, sobretudo no final da temporada. A força de um grupo depende de muitas coisas, das quais a confiança no treinador é apenas uma parte. E um bom treinador, a esse respeito, tratará sempre de fazer com que os seus jogadores desenvolvam mais a confiança em si próprios e uns nos outros do que propriamente na figura a que têm de obedecer.

A segunda premissa é mais importante, para o argumento contra Cardozo, e é também - parece-me - mais consensual. Em primeiro lugar, por que carga de água é que as acções de um jogador modificam necessariamente a opinião ou as crenças de outros jogadores? Será que os vários episódios de indisciplina de Mario Balotelli em Inglaterra alguma vez fizeram com que os restantes jogadores do City mudassem de opinião acerca das competências de Roberto Mancini? Para o mal ou para o bem, Mancini continuou a ser Mancini, depois de cada um desses episódios. E, mais ainda, continuaria a ser o mesmo de sempre, perdoando-o, como acabou invariavelmente por perdoar, não obstante os castigos que lhe aplicava, ou não o perdoando. É preciso muito mais do que um acto isolado de um único jogador para mudar a opinião acerca de um treinador. Em segundo lugar, é contestar uma decisão de alguém, ainda que de forma veemente, uma forma de pôr em causa a confiança que outras pessoas depositam nesse alguém? Sendo franco, se fosse treinador gostaria que os meus jogadores contestassem boa parte das minhas decisões. Não por causa daquela treta de que o inconformismo é sinal de empenho e vontade de ajudar. A razão é outra e reside no facto de acreditar que o sucesso de uma relação entre um superior e um subordinado depende mais do respeito dos subordinados pelas ideias do superior do que pelo respeito da sua posição superior. Embora vivamos em democracia há praticamente quatro décadas, o espírito democrático, em Portugal, continua a ser praticamente nulo, e poucos haverá que concordarão com esta perspectiva. Do meu ponto de vista, contudo, a verdadeira confiança conquista-se com diálogo, com justificações de acções, com persuasão. Conquistando-se dessa forma, não se perde só porque alguém decide contestar uma decisão.
Para ser bruto, há vestígios de um certo saudosismo fascista em todos aqueles que se indignaram contra o que fez Cardozo. Mas há também, parece-me, uma absoluta incompreensão acerca do que é ser um jogador de futebol, incompreensão esta, aliás, absolutamente idêntica àquela que se regista quando alguém diz que um jogador comete uma imprudência quando, sabendo que pode ser admoestado, tira a camisola para festejar um golo ou protesta uma decisão do árbitro, ou ainda idêntica àquela que ocorre quando se condena um jogador por protestar por ter sido substituído ou por o treinador não o utilizar. Durante os 90 minutos, não se é a mesma pessoa, nem fisiologicamente, nem emocionalmente; há adrenalina envolvida; há empenho, ambições, vaidades em causa. De resto, desentendimentos destes ocorrem com muita frequência, numa equipa de futebol, e não deveriam, por isso, ter importância suficiente para motivar tanta celeuma. Que tenha acontecido em público é apenas uma contingência dos tempos que correm, uma vez que cada vez menos coisas escapam às objectivas e aos jornalistas, e não deve ter maior gravidade por isso. O mais importante deveria ser a equipa; não a alegada desautorização do seu líder. É engraçado, por fim, que a primeira obra literária da História da Cultura Ocidental contenha já a evidência de que afastar de um grupo quem se insubordina só porque se insubordina pode não ser o melhor para o grupo. Se aquele que se insubordina faz realmente falta ao grupo, como Aquiles fazia aos Aqueus, pode até ser a pior a decisão possível. Aliás, não é nada claro, na Ilíada, que a confiança dos Aqueus em Agamémnon, o líder deles, fosse superior à confiança deles em Aquiles, o melhor dos guerreiros entre eles. Aos Aqueus, a insubordinação de Aquiles perante Agamémnon (uma insubordinação pública, diga-se), por pouco não lhes custava a guerra e a glória. Mas, 2800 anos depois, parece que continuamos sem aprender a lição de Homero; continuamos a preferir o "respeitinho, que é bonito", a disciplina, a boa educação, a serventia; continuamos a achar que coisas tão triviais como uma contestação pública de um chefe se devem configurar como ofensas de extrema gravidade. Os gregos, pelo menos os gregos homéricos, estavam a borrifar-se para bagatelas deste género. Pelo menos neste aspecto, eram francamente mais espertos do que os homens de hoje. A única coisa indispensável a um herói era a arete, a virtude ou a excelência, algo que, aplicado ao caso futebolístico que motivou a comparação, se traduziria no seguinte: a única coisa indispensável num jogador de futebol é o talento. O resto é conversa fiada. E gente a quem falta talvez um pouco de Grécia.