Não é escassa a discussão, um pouco por todo o lado, em torno de sistemas tácticos. Para muitos, o sistema táctico é apenas um pormenor, e o desempenho de uma equipa depende muito mais das dinâmicas a que ela obedece; para outros, pelo contrário, o sistema táctico é absolutamente determinante. Confesso que ambas as hipóteses me parecem redutoras. Como é evidente, o 433 de José Mota é muito diferente do 433 de Guardiola, embora o desenho táctico seja igual. Daí não se segue, todavia, que a essência do Barcelona de Guardiola não esteja intimamente ligada ao desenho do 433. Aquilo que estou a querer insinuar é que, sem esse desenho, nada daquilo seria assim, ou seja, que embora o desenho táctico não seja suficiente para que uma equipa tenha qualidade, é-lhe necessário.
Um 433 rígido não é bom só porque é um 433. Se há coisa que caracterizou o 433 de Guardiola foi a sua absoluta elasticidade. Os extremos não eram extremos. Raramente eram eles quem dava profundidade e raramente tinham movimentos verticais. Muitas vezes, eram até médios por vocação quem jogava na posição de extremo, precisamente por causa dos movimentos interiores. O avançado também não era avançado, e, se quisermos, os médios não eram médios. Do meio-campo para a frente, havendo referências para cobertura e apoios, havia uma elasticidade tal que a equipa não obedecia a padrões de comportamento convencionais. Por elasticidade não se deve entender, no entanto, liberdade. Os jogadores, não estando presos a posições rígidas, não tinham também liberdade para tudo e mais alguma coisa. Aquilo que tinham era liberdade para esticar o desenho, para lhe conferir elasticidade e imprevisibilidade. Se há coisa que Tito Vilanova flagrantemente decidiu não continuar foi essa elasticidade. Daí a sua recusa, por exemplo, em adoptar o 343 de Guardiola (um sistema ainda mais elástico que usou, até agora, apenas uma vez, se não estou em erro, durante 15 minutos, e que não retomou, apesar do sucesso que teve), e em jogar com médios na posição de extremos. O seu 433 é muitíssimo mais rígido do que era o de Guardiola, e ainda que os jogadores mantenham hábitos de apoios e coberturas semelhantes, a equipa funciona ligeiramente pior precisamente porque não parece existir vontade de forçar a sua elasticidade. Com Vilanova, Messi manteve a sua liberdade. Mas isso talvez apenas porque é Messi. Os extremos são mais extremos do que nunca (tanto ou mais do que na primeira época de Guardiola), e foi-lhes retirada a iniciativa de virem para dentro. A equipa é mais previsível por ser menos elástica, por fomentar menos as combinações interiores e por deixar menos a cargo dos laterais a profundidade de que precisa.
Um dos principais méritos de Guardiola foi precisamente ter conseguido, de ano para ano, aumentar o nível de elasticidade da equipa (culminando com aquele extraordinário 343), sem que se rompesse o seu tecido táctico. Nesse aspecto, superou amplamente dois dos seus mestres, Louis Van Gaal (sobretudo pelo seu 343 losango no Ajax) e Marcelo Bielsa, cujas equipas são, sem dúvida, das mais tacticamente elásticas da História do jogo. Outros há, mais conservadores, que preferem não arriscar tanta elasticidade, temendo rupturas em tal tecido. É o caso de Vilanova, que tem a sorte, porém, de ter herdado uma equipa com processos formidáveis. Um terceiro grupo de treinadores existe para quem a elasticidade parece ser importante, mas que não sabem de que modo a podem fomentar sem que arrisquem descompensações. São os casos, a meu ver, de Jorge Jesus e de Wenger. Se Wenger tem o problema de, pretendendo uma elasticidade acima de tudo horizontal, muito parecida com a do Barcelona, com as movimentações a serem essencialmente do exterior para o interior, e de dentro para fora, não perceber como é que tal ideia se deve suportar em termos de coberturas, apoios e compensações, Jesus tem o defeito de gostar de uma elasticidade de tipo diferente, mais vertical, de permutas entre jogadores de sectores diferentes, com movimentos essencialmente de trás para a frente, o que provoca uma vertigem difícil de controlar e buracos tácticos difíceis de preencher. Bielsa, por sua vez, é um misto dos dois, virtuoso como ambos, mas com os defeitos, não tão acentuados, é certo, e muitas vezes potenciados por alguma falta de qualidade individual dos seus jogadores, de ambos.
Ora, dificilmente Guardiola conseguiria a agilidade táctica que conseguiu se não a tivesse fundado num sistema táctico como o 433 (ou mais tarde como o 343). Em 442 clássico, por exemplo, jamais conseguiria o jogo entre linhas que conseguiu, jamais conseguiria a quantidade de apoios centrais que conseguiu, jamais conseguiria ter sempre os jogadores juntos uns dos outros e juntos do local onde a bola está. O 433 permite, por definição, maior elasticidade do que um 442 clássico, embora haja equipas mais elásticas em 442 clássico do que em 433. O problema não está, pois, apenas nas dinâmicas da equipa, mas também, e muito significativamente, no sistema táctico que se adopta. Se o sistema de Wenger fosse o 433 (e não o 4231), se calhar não teria metade dos problemas que tem. Se Mourinho preferisse jogar com Modric ao lado de Kaká ou Ozil, e não ao lado de Xabi Alonso, se calhar o seu Real daria o salto qualitativo de que precisava. Em sentido contrário, parece-me ser, por exemplo, a grande mais-valia de Vítor Pereira. A elasticidade táctica de uma equipa depende muito das ideias do treinador, daquilo que é pedido aos jogadores, das características dos jogadores, e das dinâmicas treinadas. Mas, no limite, sistemas tácticos diferentes permitem níveis de elasticidade diferentes. Na minha opinião, o 433 (com um só médio-defensivo) e o 442 losango são das tácticas cujo potencial de elasticidade é maior, embora nenhuma delas supere o 343 losango. A equipa que não jogue em nenhum destes sistemas poderá ter processos de jogo interessantes (como a de Jorge Jesus ou de Arséne Wenger), poderá estar optimamente mecanizada (como o Real Madrid de Mourinho), poderá até ser extraordinariamente competitiva (como o Atlético de Madrid de Simeone), mas dificilmente atingirá a excelência. A consequência mais relevante dessa caraceterística a que estou a chamar "elasticidade" é a imprevisibilidade da equipa. Como é óbvio, elasticidade a mais pode provocar, para além de imprevisibilidade, caos e desorganização, pelo que o truque é perceber de que modo, em que condições, e em que medidas, deve ser desejada. Alguns sabem-no. E nenhum desses joga em 4231 ou em 442 clássico.