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a cintura é a parte mais importante

a cintura é a parte mais importante
do corpo de uma mulher,
o pequeno arco em que gira
todo o seu movimento.

para baixo e para cima fica a desordem
que as rotações imprimem:
imagens fugitivas, desfocadas,
de costelas, seios,
braços, ombros e cabelos;
ou virilhas, nádegas,
pernas múltiplas, como
na dança, sob a retina fotográfica.

formam-se assim linhas circulares,
pura luz,
mas com uma trajectória, que cria
o espaço e o tempo.

quem quisesse porém encontrar
um eixo vertical imóvel, ou seja,
possuir ilusoriamente a mulher,
teria de a pontuar no olhar, no meio
dos lábios, no umbigo,
no ponto mais sensível do clítoris,
na junção dos pés.

esta é a ciência antiga do tacto
- o que fixa o fluido,
e crucifica a carne
à eternidade do conceito.


Vítor Oliveira Jorge
Pequeno Livro de Aforismos
Seguido de Algumas Alumiações
Porto, 2005

às vezes

para a susana

às vezes
estou num ponto da casa,
e sei, e sinto,
que tu estás algures
noutro ponto
da mesma casa.

e sinto, e penso:
demos mais um passo
para a vida eterna.
cada um de nós deu mais
um passo
em direcção à sua morte.

e perdemos mais este momento
em que podíamos ter falado,
ou entretecido bocas
e olhares.

tomámos, em diferentes
sítios da casa,
diferentes caminhos;
iniciámos trajectos
discordantes
em direcção ao nosso
desaparecimento
na noite do espaço/tempo.

quando nos despedirmos,
que diremos?
até onde, até quando?

será possível termos
partilhado tanto,
e partir assim sem aviso,
como se nos tivesse sido roubada
toda a história anterior?

por isso, peço:
quando estiveres para morrer
noutro ponto da casa,
por favor diz primeiro.

combina comigo,
para eu ir morrer lá também.


Vítor Oliveira Jorge
Pequeno Livro de Aforismos
Seguido de Algumas Alumiações
Porto, 2005

hora 20 a mulher detém a arte

a mulher detém a arte
da metamorfose.

o que na natureza
leva anos ou séculos,
nela é a fracção de segundo
de uma pose.

por isso encostamos
o ouvido ao seu orifício
de búzio,
tentando escutar os sons
do começo do mundo.

o marulhar das águas
que desceram até ao fundo
das grutas,

e de lá esperam,
nas suas atentas
pupilas azuis,
pelo sinal da reermersão.


Vítor Oliveira Jorge
Livro de Horas, Iluminado, Obliquamente
Poemas, Porto 2005