Foi um tempo branco, repetidamente lavado nas próprias mãos
Desviando a transparência do rosto para a noite
Um tempo branco muito diferente da verdade
Muito diferente das estrelas que se apagam
Foi um tempo muito branco
Mais doloroso do que os olhos sempre abertos no escuro
Inimaginável quando pus de fora a cabeça, as mãos
— tendo deposto o que trazia nelas —
O corpo todo
E saí como um paralítico depois do milagre
Na forma de quem grita por socorro
Foi um tempo branco porque era mudo
E não havia nenhuma palavra que pudesse apagá-lo
Um tempo tão manso como um lobo que não morde
Um tempo tão branco
Tão raso
Saí como um coxo que caminha sobre o tempo tão liso
Tão branco
Que pensei que era um muro aquele tempo estar ali
E bati contra ele como uma badalada que demora
E era branco, um som que nunca ouvi
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
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Sunam (2 Rs 4, 8-37)
O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.
Tens a memória e sobre o banco à tarde
A mulher. Vamos construir - disse - um quarto no terraço
Quatro paredes de tijolo e uma lâmina ao centro
Uma cadeira, uma mesa. A bilha
Ficará connosco e beberá aqui.
O absurdo pode sempre visitar-te quando estiveres no campo
E o teu filho te disser: a minha cabeça
Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a foice.
O absurdo pode sempre parar à tua porta
Com o teu filho sobre o jumento pardo
Pode sempre visitar-te no rosto da mulher
- Era meio-dia sobre os meus joelhos -
E chamarás. Abrirás em cada dia
Uma nova entrada por onde possa visitar-te
Sentar-se aí ao teu lado. Onde costumas envelhecer.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.
Tens a memória e sobre o banco à tarde
A mulher. Vamos construir - disse - um quarto no terraço
Quatro paredes de tijolo e uma lâmina ao centro
Uma cadeira, uma mesa. A bilha
Ficará connosco e beberá aqui.
O absurdo pode sempre visitar-te quando estiveres no campo
E o teu filho te disser: a minha cabeça
Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a foice.
O absurdo pode sempre parar à tua porta
Com o teu filho sobre o jumento pardo
Pode sempre visitar-te no rosto da mulher
- Era meio-dia sobre os meus joelhos -
E chamarás. Abrirás em cada dia
Uma nova entrada por onde possa visitar-te
Sentar-se aí ao teu lado. Onde costumas envelhecer.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Lamentações (Lam 1)
Que solitária está a cidade
Enviuvou a mais povoada
Das nações
Está de luto a que foi mãe
E em trabalhos forçados
Passa a noite a dobar a sua noite
À luz do pequeno brilho da lembrança
Não há a consolá-la nenhum dos seus amantes
Cresce o silêncio nos degraus da entrada
E encontra inimigos quando estende a mão
Foi levada para fora das muralhas
Foi levada para terra estéril. Foi humilhada
E posta ao serviço das escravas.
Dorme ao relento e sem repouso
Tomada de aflição
Perseguida até ao fim
Das suas forças
Mesmo no sono é cercada.
Está mais perdida do que numa encruzilhada
E venda os olhos porque qualquer luz
Ou a mínima palavra (ou a noite)
Lhe ferem os olhos rompidos de saudade
E nem os mendigos nas estradas
Têm um coração tão só
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Enviuvou a mais povoada
Das nações
Está de luto a que foi mãe
E em trabalhos forçados
Passa a noite a dobar a sua noite
À luz do pequeno brilho da lembrança
Não há a consolá-la nenhum dos seus amantes
Cresce o silêncio nos degraus da entrada
E encontra inimigos quando estende a mão
Foi levada para fora das muralhas
Foi levada para terra estéril. Foi humilhada
E posta ao serviço das escravas.
Dorme ao relento e sem repouso
Tomada de aflição
Perseguida até ao fim
Das suas forças
Mesmo no sono é cercada.
Está mais perdida do que numa encruzilhada
E venda os olhos porque qualquer luz
Ou a mínima palavra (ou a noite)
Lhe ferem os olhos rompidos de saudade
E nem os mendigos nas estradas
Têm um coração tão só
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Do Livro das Meditações 2
Portanto farei uma escada no coração.
E pelos degraus subirei da minha casa
Até bater com o pensamento no altíssimo.
Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto
Sempre atento como a águia quando fixa o sol
Sem pestanejar.
Farei portanto a escada no deserto para fixar
A luz.
Da minha casa subirei sem palavras
Em silêncio, portanto, pisando o coração.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
E pelos degraus subirei da minha casa
Até bater com o pensamento no altíssimo.
Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto
Sempre atento como a águia quando fixa o sol
Sem pestanejar.
Farei portanto a escada no deserto para fixar
A luz.
Da minha casa subirei sem palavras
Em silêncio, portanto, pisando o coração.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Não fui margem sem outra margem onde ligar os braços
Mas fui o tempo solto para entrançar os meus cabelos
E o movimento dos teus pés descalços
Não fui a solidão inteira nem reclusa
Para o único repouso entre o silêncio
Nem fui a flor exausta defendendo-se
De toda a mão que a quis despetalar
Não fui a casa que a si mesma se abrigou
Nem a morada que nunca se acolheu
Mas o tempo a pedir que me deixasse
Naquilo que não fui vim encontrar-me
E sempre que te vi recomecei
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Mas fui o tempo solto para entrançar os meus cabelos
E o movimento dos teus pés descalços
Não fui a solidão inteira nem reclusa
Para o único repouso entre o silêncio
Nem fui a flor exausta defendendo-se
De toda a mão que a quis despetalar
Não fui a casa que a si mesma se abrigou
Nem a morada que nunca se acolheu
Mas o tempo a pedir que me deixasse
Naquilo que não fui vim encontrar-me
E sempre que te vi recomecei
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2003
Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2009
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições, 2009
Do livro do êxodo
O deserto alongava-se até à idade
De uma geração
Nós éramos a única planta das areias
A partida contínua e adiada. Quantos
E quantos passos não estivemos descalços
Procurando nos pés gretados a nesga
Para o regresso
As crianças perguntavam o que era a nata e o leite
Perguntavam se as mães eram semelhantes aos favos
As mulheres calculavam em pensamento
A altura que teriam os filhos entre as árvores
Quando chegassem à terra distante do mel
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
De uma geração
Nós éramos a única planta das areias
A partida contínua e adiada. Quantos
E quantos passos não estivemos descalços
Procurando nos pés gretados a nesga
Para o regresso
As crianças perguntavam o que era a nata e o leite
Perguntavam se as mães eram semelhantes aos favos
As mulheres calculavam em pensamento
A altura que teriam os filhos entre as árvores
Quando chegassem à terra distante do mel
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
De veres o meu lugar. De me veres só
Apagando a luz do quarto cada noite
No escuro a respirar como um clarão.
De me veres do lado exterior
Muro, fenda no muro e sem força
Para esperar.
De te hospedares em mim. De descobrires
A posição da árvore fixa no crescimento
Da árvore que agora sou circulando com dificuldade
Do fruto cortado
Para ocupar as mãos.
De o veres empunhado como arma
Para afastar o medo.
De veres a casa. De estares à minha beira e no quarto ao lado
Vazio, no vazio búzio
De ocupares o vazio para o libertar.
De veres a pedra branca dos meus olhos
Seixo dos rins
Pedra polida de tanto rebentar
Primavera de si mesma.
De anunciares em silêncio
O nada que salva a minha mão perdida
Remo à superfície teimando contra
O peso da âncora de fechar os olhos
E inclinar
O corpo afogado.
De perdoares. Por ter-me apagado tão longe de te ser luz
De te ser lâmpada horas e horas, à noite
E no Inverno.
Da transparência que engana
A presença do mundo
Da obediência, da aceitação, do enjoo.
De poderes abrir a vida como quem abre a casa
Da casa que tu salvas com um sinal de sangue.
De poderes arrastar a mesa para o centro da cozinha.
De seres para ordenar colinas
Campo cultivado
Encosta e declive da minha vida cobrindo-se de erva.
De seres a bênção, o alimento e abundância
E vasto
Administrador de água em redor dos pés
Dos calcanhares, dos tornozelos
Mendigo, servo, milionário no milagre.
De acordares da espera
Da doença, arbusto que minga sem raiz
Da tua mão - a tua mão pode curar-me -
Pequeno movimento
De o seres às minhas redes
Bunho e bulir
Das folhas na paisagem.
Da casa na paisagem. Estou por terra e vejo já do alto
Com a saliva a saber-me
Ao bolor do chão.
De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse -
Apodrecendo a cadeira um odor da terra - como a tempestade -
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Apagando a luz do quarto cada noite
No escuro a respirar como um clarão.
De me veres do lado exterior
Muro, fenda no muro e sem força
Para esperar.
De te hospedares em mim. De descobrires
A posição da árvore fixa no crescimento
Da árvore que agora sou circulando com dificuldade
Do fruto cortado
Para ocupar as mãos.
De o veres empunhado como arma
Para afastar o medo.
De veres a casa. De estares à minha beira e no quarto ao lado
Vazio, no vazio búzio
De ocupares o vazio para o libertar.
De veres a pedra branca dos meus olhos
Seixo dos rins
Pedra polida de tanto rebentar
Primavera de si mesma.
De anunciares em silêncio
O nada que salva a minha mão perdida
Remo à superfície teimando contra
O peso da âncora de fechar os olhos
E inclinar
O corpo afogado.
De perdoares. Por ter-me apagado tão longe de te ser luz
De te ser lâmpada horas e horas, à noite
E no Inverno.
Da transparência que engana
A presença do mundo
Da obediência, da aceitação, do enjoo.
De poderes abrir a vida como quem abre a casa
Da casa que tu salvas com um sinal de sangue.
De poderes arrastar a mesa para o centro da cozinha.
De seres para ordenar colinas
Campo cultivado
Encosta e declive da minha vida cobrindo-se de erva.
De seres a bênção, o alimento e abundância
E vasto
Administrador de água em redor dos pés
Dos calcanhares, dos tornozelos
Mendigo, servo, milionário no milagre.
De acordares da espera
Da doença, arbusto que minga sem raiz
Da tua mão - a tua mão pode curar-me -
Pequeno movimento
De o seres às minhas redes
Bunho e bulir
Das folhas na paisagem.
Da casa na paisagem. Estou por terra e vejo já do alto
Com a saliva a saber-me
Ao bolor do chão.
De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse -
Apodrecendo a cadeira um odor da terra - como a tempestade -
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
2
Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia
Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio
A minha casa - ela própria dava flor
Ela riscava nas folhas
Ela era grande mesmo quando a magnólia não crescia
Esta magnólia não é como a dela uma magnólia pronunciada
É uma magnólia de verdade a todo o redor - maior
E mais bonita do que a palavra.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio
A minha casa - ela própria dava flor
Ela riscava nas folhas
Ela era grande mesmo quando a magnólia não crescia
Esta magnólia não é como a dela uma magnólia pronunciada
É uma magnólia de verdade a todo o redor - maior
E mais bonita do que a palavra.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar
Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro
Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável
É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo
Sei que não posso chamá-la das margens
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar
Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro
Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável
É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo
Sei que não posso chamá-la das margens
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de túneis e noites
Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes como pirilampos
___________________________________________[transformados
Borboletas rápidas - há esta imagem respirando
Pensativamente entro na viagem visível de uma intuição premeditada:
Que diferença faz à posição do meu corpo a rotação da terra? Vivo
Num único lugar
Às vezes ando descalço por uma linha encerrada
No corpo
Encostado ao ferro arrefecido pelas estações que passam. Pouca terra
Lhe é dada para poder germinar. Dentro da terra
Ou de uma veia cortada.
Faço às vezes o trajecto inverso do sangue
Medito encostado às pulsações mais amadas. Pouca terra me foi dada
Para calar sempre. E amo
Anónimo a luz transitória. O pulso interno de uma luz intermitente
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes como pirilampos
___________________________________________[transformados
Borboletas rápidas - há esta imagem respirando
Pensativamente entro na viagem visível de uma intuição premeditada:
Que diferença faz à posição do meu corpo a rotação da terra? Vivo
Num único lugar
Às vezes ando descalço por uma linha encerrada
No corpo
Encostado ao ferro arrefecido pelas estações que passam. Pouca terra
Lhe é dada para poder germinar. Dentro da terra
Ou de uma veia cortada.
Faço às vezes o trajecto inverso do sangue
Medito encostado às pulsações mais amadas. Pouca terra me foi dada
Para calar sempre. E amo
Anónimo a luz transitória. O pulso interno de uma luz intermitente
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Daniel Faria
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Daniel Augusto da Cunha Faria,
nasceu em Baltar a 10 de Abril de 1971.
nasceu em Baltar a 10 de Abril de 1971.
_______________________________________________________
No Jardim-de-infância Glória Leão iniciou a sua vida escolar. Frequentou o ensino primário na Escola de Feira nº 2 (Calvário) (1977/81) e o ciclo preparatório na escola, ao tempo, Preparatória de Baltar (agora EB 2/3) (1981/83)
Após os primeiros encontros no pré-seminário (1982-83), entrou para o Seminários do Bom Pastor (1983-86), de Vilar (1986-89) e Maior (1989-94), tendo entre 1983-86, como os colegas do mesmo ano do seminário, frequentado a Escola Secundária Rodrigues de Freitas.
Entrou logo depois para o Curso de Teologia na Universidade Católica. Entre 1994 e 1998 licenciou-se em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, apresentando em 1996, ao mesmo tempo que frequentava Letras, a Tese de Licenciatura em Teologia, intitulada A Meditação da Paixão na poesia de Frei Agostinho da Cruz, mais tarde editada com o título: A vida e conversão de Frei Agostinho, entre a aprendizagem e o ensino da Cruz.
Decidiu então optar pela vida monástica, sendo Postulante, no ano de 1997-98, no Mosteiro Beneditino de S. Bento da Vitória, e noviço, no ano seguinte, no Mosteiro de Singeverga.
Muito cedo se revelou invulgarmente inteligente e sossegado. Nunca desdisse essa imagem precoce de menino com os olhos muito claros, a partir das primeiras letras passou a dedicar todo seu tempo à leitura, sobretudo, à escrita.
A família relembra-o quase sempre a escrever.
Desde a primeira catequese manifestou o desejo de ser sacerdote.
A par da sua vida académica desenvolveu todo um trabalho de serviço à comunidade, nomeadamente nas Paróquias do Marquês, no Porto e na do Marco de Canaveses.
Cultivou a amizade com a doação pródiga de quem não conhece limites. Com o tempo desdobrado em muitos afazeres, nunca mostrou ter pressa.
Fez desenhos, colagens, mobiles, encadernação e encenação. Dirigiu no Seminário Maior o Círculo de Leitura (s) (1989/93); ganhou vários prémios literários e escolares, colaborou em diferentes revistas.
- Prémio Eng.ª Nuno Meireles (1990 – Uma cidade com muralha)
- Prémio Sebastião Salgado – (1991)
- Prémio D. António Ferreira Gomes (1992)
- Prémio Fundação Manuel Leão (1998 - Explicação da Árvores e de Outros Animais)
- Prémio Teixeira de Pascoaes – (2004 – Poesia)
_______________________________________________________
A sua obra literária e já publicada em alguns casos com reedições:
1991 - Uma cidade com Muralha
1992 – Oxálida
1993 – A Casa dos Ceifeiros
1998 – Explicação da Árvores e de Outros Animais (Prémio Fundação Manuel Leão)
1988 – Homens que são como Lugares mal Situados
1999 – A vida e conversão de Frei Agostinho; entre a aprendizagem e o ensino da Cruz
2000 – Dos Líquidos
2000 – Legenda para uma casa habitada
Em 2003 a Quasi Edições editou num só volume todos os livros de Poesia: “Poesia – Daniel Faria”
Muitos dos seus poemas integram antologias de poesia, nomeadamente:
- A Poesia está na rua – 25º Aniversário do 25 de Abril. Organização de Francisco Duarte Mangas. INATEL/Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto – 1999)
- Encontros de Talábriga – 1º Encontro Internacional de Poesia de Aveiro. Coordenação de Egipto Gonçalves e Rosa Alice Branco, Aveiro. Fundação João Jacinto de Magalhães, 1999.
- O Futuro em Anos-Luz – 100 anos, 100 poetas, 100 poemas. Selecção e organização de valter hugo mãe. Porto 2001.Quasi Edições 2001.
- Anos 90 e Agora – Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização de Jorge Reis – Sá. Famalicão. Quasi Edições 2001.
- Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Organização de Fernando Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa. Angelus Novos e Cotovia. 2002.
- Há no mundo inteiro, uma quando muito, rua difícil de encontrar – Metáfora Viagem: palavras de poeta. Organização de Ana Castro e Jorge Roque, Lisboa. IPBL. Dia Mundial da Poesia, 2003.
- A Alma não é Pequena – 100 poemas portugueses para SMS. Selecção e organização de valter hugo mãe. Famalicão. Centro Atlântico 2003.
No quadro do lançamento da Anthologie de la jeune poésie portugaise, editada pela Maison de la Poésie Rhône-Alpes, o Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões na Universidade Lumiére Lyon 2 realizou no dia 23 de Abril de 2004 um encontro com os poetas Isabel Cristina Pires e Fernando Pinto do Amaral. Além de Daniel Faria, Francisco José Viegas, José Luís Peixoto e Pedro Mexia, são alguns dos nomes que constam desta antologia e cujos poemas foram traduzidos para Francês.
Para além de ter colaborado em diversas revistas, tais como:
- Limiar – Revista de Poesia, Porto, nº 11. 1999
- Hablar/Falar de Poesia – Badajoz/Lisboa, nº. 4, 2000.
- Cadernos – Centro Catecumenal Igreja do Porto, Porto. Ano I, nº 1, 2000
- Folhas Caídas – Porto, Biblioteca Municipal Almeida Garret, Setembro 2003, Semanas 1-4.
- Apeadeiro – Revista de Atitudes Literárias. Famalicão, n.ºs 4 / 5, 2004.
- PRIMEIRA@PROVA – Revista electrónica de Línguas e Literaturas da Faculdade de Letras do Porto.
- Sara Fazib – Revista electrónica
_______________________________________________________
Considerado por alguns como um Poeta Maior da Língua Portuguesa e o maior poeta místico português do século XX para outros, que o colocam na linha de S. João da Cruz e de Santa Teresa do Menino Jesus onde foi buscar referências bem como em alguns Poetas Portugueses como Herberto Hélder; Sophia, Pessoa e Eugénio de Andrade entre muitos outros, mas é sobretudo da Bíblia que lhe vem a maior parte dessas referências.
A sua Tese de Licenciatura em Teologia – A vida e conversão de Frei Agostinho; entre a aprendizagem e o ensino da Cruz – Editada pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica, está esgotada.
A Câmara Municipal de Penafiel, em Maio de 2004, instituiu um prémio de Poesia com o seu nome destinado a jovens poetas até aos 35 anos.
A 9 de Junho de 1999, na sequência de uma queda doméstica, deixou de respirar.
Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes das visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito nos olhos cobertos
Por escamas
Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas
Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver
Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado
E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre como Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes das visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito nos olhos cobertos
Por escamas
Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas
Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver
Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado
E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre como Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
3
Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.
Daniel Faria
Dos Líquidos
Quasi Edições, 2003
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.
Daniel Faria
Dos Líquidos
Quasi Edições, 2003
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Ando um pouco acima do chão
Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo
Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito
Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco acima da palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo
Ando ligeiro acima do que digo
E verto sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema
Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio de incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-se devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo
Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito
Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco acima da palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo
Ando ligeiro acima do que digo
E verto sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema
Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio de incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-se devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições
Quando eu era uma criança de muletas
Estudei o alicerce de coisas paradas
Observei as coisas que se moviam
No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico
Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio coração.
Estudei um peregrino e outro e outro. Estavam parados
Contemplavam os passos percorridos
No perímetro da meditação.
Anotei que os alicerces do movimento são líquidos
Constantes.
Primeiro líquido: a água, nas coisas altas as nuvens
E penso também nos rios. Segundo líquido: a saliva
Que curou os cegos. Terceiro líquido: o ar porque me lembro
Do relâmpago, da velocidade das coisas que caem. O sétimo líquido:
O sangue do cordeiro.
Quando eu era uma criança parada
Quando não andava numa cadeira de rodas a empurrar o corpo com as mãos
Estudei o movimento dos líquidos
Segui o derrame da semente ao morrer
Caminhasse eu porém e seguiria
O fio de água no olhar de quem amei.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Estudei o alicerce de coisas paradas
Observei as coisas que se moviam
No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico
Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio coração.
Estudei um peregrino e outro e outro. Estavam parados
Contemplavam os passos percorridos
No perímetro da meditação.
Anotei que os alicerces do movimento são líquidos
Constantes.
Primeiro líquido: a água, nas coisas altas as nuvens
E penso também nos rios. Segundo líquido: a saliva
Que curou os cegos. Terceiro líquido: o ar porque me lembro
Do relâmpago, da velocidade das coisas que caem. O sétimo líquido:
O sangue do cordeiro.
Quando eu era uma criança parada
Quando não andava numa cadeira de rodas a empurrar o corpo com as mãos
Estudei o movimento dos líquidos
Segui o derrame da semente ao morrer
Caminhasse eu porém e seguiria
O fio de água no olhar de quem amei.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
fol. 16
Na impossibilidade da amizade ter um fim,
continuar a amar é dizer adeus.
Daniel Faria
O Livro do Joaquim
Quasi Edições
continuar a amar é dizer adeus.
Daniel Faria
O Livro do Joaquim
Quasi Edições
fol. 10 2.
Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade, isto é, onde a presença do outro de tão inteira já não pode ser medida. Sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz, porque aí sem cessar se regressa e avista. É como o movimento de quem caminha num espaço alto e estreito: é preciso separar os braços e desunir as mãos, para que possa alcançar-se o equilíbrio.
Daniel Faria
O Livro do Joaquim
Quasi Edições
Para encontrar o golpe no sono
1
Acordei com as narinas a sangrar perfume
Como um santo quando acaba de morrer
E debrucei-me para dentro
Para encontrar o golpe no sono.
Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros
Que quebrava vasilhas de barro.
Disse-lhe: bebe do meu sangue.
Ela rasgou-me as veias com cacos
E deu de beber aos pássaros.
2
Acordei também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos seus vestidos
E disse: para que lhes espetas a agulhas no coração
Ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo.
3
Ela pôs-me o dedal sobre os olhos
Um vaso pequenino com que me ministrou o sono
Apagou em mim os instintos da caça.
Estou ferido nas narinas e nos pulmões,
Digo-lhe: sufoco.
Ela ordenou que os pássaros batessem as asas
E fez circular o ar.
4
Acordei dentro do poço
Do ar
E soube que podia respirar dentro da água
Porque a mulher estava cercada de peixes.
Disse-lhe: porque quebras aquários contra os joelhos?
Ela mastigava e não me respondeu,
Estendeu a mão e deu-me um vidro a provar
5
Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar:
A mulher era uma ilha de todos os lados
Na sua força de um redemoinho parado
6
Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca,
Espetou-me um anzol na língua e puxou-me
As palavras
Foi então que pensei que ia morrer
Afogado.
7
Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo
Com a boca cheia de búzios em forma de palavras.
Soube que era possível respirar dentro das palavras
Porque vi a mulher pôr as mãos sobre os ouvidos.
Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear.
8
E eu disse à mulher: destece-me
Até que alguma coisa me pense para dentro
Como se alguém me chamasse
Como se badalasse um sino ao redor
Dentro de mim.
A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio — disse —
Dos teus novelos.
9
Assemelhei-me a um xilofone de silêncio
A um estrondo muito forte que só se ouvia bem em silêncio.
Gritei: então canta!
Ela pegou a minha tristeza e começou a dobar.
10
Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço
E disse: é agora que vou descer.
Acordei no meio da descida e pensei:
Ah, quem dera a mulher lançasse a sua trança
A prumo.
11
A mulher lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão
Para me guardares
12
A mulher guardou-me no útero
E eu vi quanta morte existe ao redor de quem nasce.
Perguntei à mulher: porque estás de luto?
Ela abriu o regaço e vi como nas fotografias do holocausto
Exatamente como nas manhãs depois dos terremotos
Cadáveres e cadáveres de peixes e pássaros
13
Acordei com os olhos comidos como um corpo depois de sepultado
E gritei para fora do poço: existe alguém desse lado?
Eu estava no fundo, eu estava morto e vi
Que os peixes e os pássaros
Ressuscitavam.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições
Acordei com as narinas a sangrar perfume
Como um santo quando acaba de morrer
E debrucei-me para dentro
Para encontrar o golpe no sono.
Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros
Que quebrava vasilhas de barro.
Disse-lhe: bebe do meu sangue.
Ela rasgou-me as veias com cacos
E deu de beber aos pássaros.
2
Acordei também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos seus vestidos
E disse: para que lhes espetas a agulhas no coração
Ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo.
3
Ela pôs-me o dedal sobre os olhos
Um vaso pequenino com que me ministrou o sono
Apagou em mim os instintos da caça.
Estou ferido nas narinas e nos pulmões,
Digo-lhe: sufoco.
Ela ordenou que os pássaros batessem as asas
E fez circular o ar.
4
Acordei dentro do poço
Do ar
E soube que podia respirar dentro da água
Porque a mulher estava cercada de peixes.
Disse-lhe: porque quebras aquários contra os joelhos?
Ela mastigava e não me respondeu,
Estendeu a mão e deu-me um vidro a provar
5
Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar:
A mulher era uma ilha de todos os lados
Na sua força de um redemoinho parado
6
Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca,
Espetou-me um anzol na língua e puxou-me
As palavras
Foi então que pensei que ia morrer
Afogado.
7
Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo
Com a boca cheia de búzios em forma de palavras.
Soube que era possível respirar dentro das palavras
Porque vi a mulher pôr as mãos sobre os ouvidos.
Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear.
8
E eu disse à mulher: destece-me
Até que alguma coisa me pense para dentro
Como se alguém me chamasse
Como se badalasse um sino ao redor
Dentro de mim.
A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio — disse —
Dos teus novelos.
9
Assemelhei-me a um xilofone de silêncio
A um estrondo muito forte que só se ouvia bem em silêncio.
Gritei: então canta!
Ela pegou a minha tristeza e começou a dobar.
10
Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço
E disse: é agora que vou descer.
Acordei no meio da descida e pensei:
Ah, quem dera a mulher lançasse a sua trança
A prumo.
11
A mulher lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão
Para me guardares
12
A mulher guardou-me no útero
E eu vi quanta morte existe ao redor de quem nasce.
Perguntei à mulher: porque estás de luto?
Ela abriu o regaço e vi como nas fotografias do holocausto
Exatamente como nas manhãs depois dos terremotos
Cadáveres e cadáveres de peixes e pássaros
13
Acordei com os olhos comidos como um corpo depois de sepultado
E gritei para fora do poço: existe alguém desse lado?
Eu estava no fundo, eu estava morto e vi
Que os peixes e os pássaros
Ressuscitavam.
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