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Onde a noite cai sobre antuérpia

há uma ventoinha no tecto soprando
um possível começo um hotel um homem
bebendo whisky no balcão do bar

o gelo roça no vidro do copo
o calor atrasa as pás da ventoinha
uma mulher lê uma carta junto à janela sentada
num esquecido cadeirão de vime

é meio-

dia ouve-se lá fora a claridade de um motor
de automóvel europeu fazendo a curva de uma rua inquieta
um pouco de cinema algum pó

tem o longínquo nome de Kikwit esta cidade
o nome do hotel não sei - Congo Belga anos cinquenta
a película retrata um tempo colonial

não conheço esta história
sei apenas que a mulher tem um vestido azul
que a carta foi tecida na distância de Antuérpia ao pôr do sol
junto ao porto por um homem que a já não quer

a mulher tem um cigarro ao fim dos dedos a cinza cai
a perna cruzada

o joelho branco apontada ao janelão
que dá para a rua

o homem no balcão é o dono do hotel
é português usa fato gravata impecável no pescoço suado
tem um livro dentro do bolso do casaco e espera alguém

olha a mulher sem olhar a mulher
dentro dela cai a noite sobre Antuérpia
relê sempre a primeira frase que diz

____esteve um dia lindo no teu sorriso

das histórias que desconheço gosto muito desta
um lóbi de hotel uma cidade chamada Kikwit nos anos cinquenta
um homem uma mulher ele impaciente em whisky ela
triste em tabaco

não se conhecem nem se vão conhecer
o homem tem um livro no bolso a mulher o coração partido

entre o bar e o cadeirão de vime há um verso impossível

depois alguém entra a porta abre fecha
nesse intervalo um ruído de vozes calor poeira e comércio
invadem a placitude do lugar

o homem pousa enfim o copo no tampo do balcão
a mulher nem repara (esteve um dia lindo no sorriso dela
há muito tempo)

o português dirige a maior simpatia à
personagem que acaba de entrar - é Jacques-Yves Costeau
o conhecido oceanógrafo francês

trocam cortesias
o gesto português convida-o a sentar-se
apontando uma das cadeiras
o livro sai do bolso e vai estender-se na mesinha onde
acabam por deter-se

Costeau aceita a caneta do português
abre na folha de rosto escreve o seu nome
debaixo do nome desenha um peixe

a mulher amachuca um pouco mais a carta
no gesto de a guardar na mala
levanta-se sai do hotel

consigo vê-la dobrando o edifício à direita
não sei para onde levou o começo de um choro
não sei onde leva aquela rua
desconheço toda a geografia da cidade africana

bem como o fim da história
apenas que Costeau subiu para um dos quartos
que o português sentado sorriu na direcção do tecto
com o livro encostado ao peito
desapertou um pouco a gravata
soube-lhe bem o inexistente sopro da ventoinha



Miguel-Manso
Contra a manhã burra
Mariposa Azual, 2009

Passagem de abdullah ibrahim

pela concha da orelha
pela membrana do tímpano
a melodia negra invade
o meu coração ímpio

não sei o nome da flor
que orna o cabelo dela
um distinto perfume flutua
no estio que o seu corpo exala

mas sejamos honestos isto não é
uma loa de al-Mu'tamid no séc. XI
em Silves num palácio de varandas
são talvez demasiadas cervejas

em copo de plástico
na Travessa da Espera



Miguel Manso
Quando Escreve Descalça-se
Livraria Trama, 2008

Lua, cerveja, alfama

João
vendo ao triste pastor
com enganos
ser-lhe negada a sua pastora
como se a não tivera merecida

diz-lhe:

rapaz
o Viagra veio dar verosimilhança a
O amor nos tempos de cólera mas
tens de fazer mais que bulir
outros sete anos



Miguel Manso
Quando Escreve Descalça-se
Livraria Trama, 2008

O fogo, a cidade

às vezes sobre
as palavras pesa um dia luminoso, a clara
imprecisão de um gesto
o corpo inclina-se para a água
do poema

a roupa estas mãos o torpor da casa
quando o silêncio a morna demorosa voz
se desfazem no ritmo entontecido
do mundo

caminho descalço sobre a página
olho uma outra vez
voltando-me para trás
o fogo, a cidade



Miguel Manso
Quando Escreve Descalça-se
Livraria Trama, 2008

Último cigarro

o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima insuficiência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia



Miguel-Manso
Contra a manhã burra
Edição do autor