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Duas gotas de suor

I

Há alguém no mundo, não sei onde,
ou antes sei, mas prefiro esquecê-lo,
que me despe só com um olhar
e me sonha vestida de princesa.
Alguém com quem não posso resistir
a arder debaixo do duche.
Alguém com quem se torna inevitável
suar dentro de um iglu.

II

Choro quando não estás, suo contigo.
O suor e as lágrimas são iguais,
tenazes e salgados,
como o mar dos meus sonhos e o oceano
abissal dos meus pesadelos.
Não quero pedir demasiado, mas gostava
de suar um pouco mais e chorar menos.


Amalia Bautista
Estoy Ausente
Pre-Textos, 2004

Versão A.T.

Que fazes aqui?

Julgava que te tinha dito adeus,
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.



Amalia Bautista
Cuéntamelo Outra Vez
Trípticos Espanhóis Vol. III

Relógio D'Água, 2004
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

Em Dieta

Deitei-me sem jantar, naquela noite
sonhei que te comia o coração.
Suponho que seria pela fome.
Enquanto devorava aquela fruta
- era doce e amarga ao mesmo tempo -
tu beijavas-me com os lábios frios,
mais frios e pálidos que nunca.
Suponho que seria pela morte.



Amalia Bautista
Trípticos Espanhois-3º
Relógio D’Água, 2004
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

Ofélia e Percival

Deveriam ter-se conhecido
em algum ponto morto da história,
nesse país de sonho, navegando
pela mente de Deus ou num poema.
Ela, cheia de flores e pela água,
ela própria uma flor extravagante
cujo aroma desterra a sensatez.
Ele contempla absorto sobre o branco
impoluto da neve como caem
as pétalas vermelhas de outra flor.



Amalia Bautista
Trípticos Espanhois-3º
Relógio D’Água, 2004
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

Enigma

No primeiro dia que saí contigo
disseste que o teu trabalho era estranho.
Mais nada. Todavia, eu sentia
a pele a rasgar-se como trapos
de cada vez que me tocavas com a mão.
E os teus olhos pareciam-me punhais
a fazer-me doer os meus.
Daí para a frente foi sempre a mesma coisa:
tu orgulhavas-te da tua arte,
mais subtil e directo em cada dia
e eu nunca percebia nada.
Mas agora sei. Já conheço o teu ofício:
Atirador de facas. A mais certeira
atiraste-ma ao coração.


Amalia Bautista
Tradução A.M.

Negra bílis

Há meses que vivo rodeada
por uma substância negra e pegajosa
que invadiu a minha casa. As paredes,
o chão, as janelas e os móveis,
a comida, os livros e a roupa,
o teclado do computador, as plantas,
o telefone… Está tudo impregnado
com este pez escuro, o mesmo que respiro
e que me mata pouco a pouco.
Dizem que os venturosos e os néscios
chamam melancolia a esta porcaria
que apodrece o coração e asfixia a alma.



Amalia Bautista
Estoy Ausente
Pre-Textos, 2004
Trad. A.T.

Hospital de incuráveis

Podes vir ver-me quando quiseres,
sabes onde estou. Meus companheiros
são muitos, mas eu sinto-me só.
Há um inválido que nunca pôde
atirar-se à piscina milagrosa.
Há um pobre leproso com o corpo
numa chaga enorme sempre aberta.
Há um que tem peste. E um tuberculoso.
E um outro com febres. E outro ainda
que nunca curou os olhos cegos com fel.
E eu, mais incurável que todos
depois que me arrancaste o coração
e o puseste à venda na feira.



Amalia Bautista
Tradução A.M.

Vamos fazer limpeza, mas geral

Vamos fazer limpeza, mas geral
e vamos deitar fora as coisas todas
que não nos servem para nada, essas
coisas que não usamos já e essas
que nada fazem mais que apanhar pó,
as que evitamos encontrar porquanto
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos fazem mal, enchem espaço
ou não quisemos nunca ter por perto.
vamos fazer limpeza, mas geral,
talvez melhor ainda uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos,
que fiquem onde sempre têm estado;
vamos embora só nós, vida minha,
para voltar a acumular de novo.
Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca
e ficarmos em paz com essa imagem
do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.



Amalia Bautista
Trípticos Espanhois-3º
Relógio D’Água, 2004
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

As sevadilhas

Vi-as crescer no meio das valetas,
nas divisórias das auto-estradas,
em privados jardins, e luxuosos,
e em redor de blocos de tijolo
em subúrbios tão tristes como o homem.
Espanta-me que sejam tão bonitas,
que se adaptem tão bem a qualquer meio,
precisem de tão poucas atenções.
Espanta-me que sejam venenosas.



Amalia Bautista
Trípticos Espanhois-3º
Relógio D’Água, 2004
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães