Costumavas dizer
- Quando penso em ti, vejo-te com a cabeça pousada nos meus joelhos, a olhar para mim com olhos grandes.
É sobretudo agora, que já aqui não estás, que gosto de imaginar-me tal qual tu então me vias
- Com a cabeça pousada nos meus joelhos, quieto, enquanto passo a mão, devagar, pela escova mole dos teus cabelos.
Mas não posso já aninhar-me no teu colo e a verdade é que mesmo tu, tenho a certeza, não me recordas já assim.
Disseste
- O amor é para os parvos.
Quase sem sotaque e mantendo os olhos no refúgio da vidraça; sem sacudir um músculo, como se boca e lábios estivessem governados por uma vontade oculta.
- O amor é para os parvos.
repetiste, antes de te voltares para trás e deixares que as lágrimas rolassem grossas como as gotas de chuva lavando a poeira das paredes. Chorámos ambos, abraçados, para que não pudesses ver o meu rosto, nem eu o teu. O Verão extinguia-se lá fora e nós soubemos, em algum momento daquele nosso abraço, que não era só a estação que chegava ao fim. Talvez tu o soubesses já, mesmo antes de me dizeres que
- O amor é para os parvos.
Já o sabias, decerto. Eu devia sabê-lo também, ou não te tivesse eu dito tantas vezes que um dia me deixarias, que partirias por estar cansada de mim e dos meus silêncios, por não suportares mais esta minha forma de te dizer que é passageira a sinceridade dos meus sentimentos e demasiado benévola a imagem que de mim guardavas
- Com a cabeça pousada nos meus joelhos, a olhar para mim com olhos grandes.
Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Simplesmente tinha que acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu amo-te, tu amas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo de ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão - o amor é mesmo para os parvos. Para os que não sabem apaixonar-se e não têm tempo a perder com sofrimento. Para os que estão sempre de passagem e precisam de um lugar aonde encontrem, de vez em quando, um par de cuecas limpas, peúgas lavadas e três camisas engomadas. Um sítio do qual possam dizer: esta é a minha casa, esta é a minha mulher, esta é a minha escova de dentes e estes são os meus filhos, a herança que deixo ao mundo, a geração que lego à posteridade - jangada de Noé à deriva no lodo estagnado da vida.
O amor é para os parvos, disseste bem. Lembras-te? O amor é para os parvos e nós soubemos, ao menos naquele abraço, que não era aquela a nossa vida. Talvez não o soubéssemos ainda e apenas o intuíssemos. Fosse como fosse, sabêmo-lo agora - sei-o eu ao menos - e é por isso que te digo que foi melhor assim, ainda que tivesse no corpo uma vontade incontrolável de lamber as lágrimas que te percorriam a face; de te cingir os joelhos com ambos os braços e te pedir que ficasses. Terias ficado, eu sei. Ainda aqui estarias se me tivessem ocorrido as palavras certas - mas inevitável foi a única que me ocorreu. Teríamos as nossas escovas dos dentes, a gaveta com as minhas peúgas e as minhas cuecas e os nossos filhos. Talvez um sítio a que pudéssemos chamar lar. Isso tudo, enfim. É até possível que pudéssemos ter chegado a ser felizes ou, em alternativa, podíamos ter conseguido viver tão harmoniosamente que nos fosse permitido fazer de conta que éramos felizes. É tão fácil, há tanta gente que consegue e que chega a convencer-se de que é real a paz familiar que pacientemente arquitectaram; de que são sinceros os sorrisos, os beijos, os abraços. Fosse eu capaz de dizer as palavras, tivesse eu posto os meus olhos defronte dos teus para que tu pudesses ler - ao menos dessa vez - o que neles estava escrito e podia ser também nosso esse mundo de conveniência. Ter-nos-íamos magoado e feito de conta que não é nada. Ter-te-ia enganado e voltado a casa com o ar do costume, a máscara de cansaço e enfado que te havias de habituar a ter em vez do meu rosto.
Tudo isto, amor.
Manuel Jorge Marmelo
O Amor é para os Parvos
Campo das Letras, 2000
- Quando penso em ti, vejo-te com a cabeça pousada nos meus joelhos, a olhar para mim com olhos grandes.
É sobretudo agora, que já aqui não estás, que gosto de imaginar-me tal qual tu então me vias
- Com a cabeça pousada nos meus joelhos, quieto, enquanto passo a mão, devagar, pela escova mole dos teus cabelos.
Mas não posso já aninhar-me no teu colo e a verdade é que mesmo tu, tenho a certeza, não me recordas já assim.
Disseste
- O amor é para os parvos.
Quase sem sotaque e mantendo os olhos no refúgio da vidraça; sem sacudir um músculo, como se boca e lábios estivessem governados por uma vontade oculta.
- O amor é para os parvos.
repetiste, antes de te voltares para trás e deixares que as lágrimas rolassem grossas como as gotas de chuva lavando a poeira das paredes. Chorámos ambos, abraçados, para que não pudesses ver o meu rosto, nem eu o teu. O Verão extinguia-se lá fora e nós soubemos, em algum momento daquele nosso abraço, que não era só a estação que chegava ao fim. Talvez tu o soubesses já, mesmo antes de me dizeres que
- O amor é para os parvos.
Já o sabias, decerto. Eu devia sabê-lo também, ou não te tivesse eu dito tantas vezes que um dia me deixarias, que partirias por estar cansada de mim e dos meus silêncios, por não suportares mais esta minha forma de te dizer que é passageira a sinceridade dos meus sentimentos e demasiado benévola a imagem que de mim guardavas
- Com a cabeça pousada nos meus joelhos, a olhar para mim com olhos grandes.
Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Simplesmente tinha que acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu amo-te, tu amas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo de ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão - o amor é mesmo para os parvos. Para os que não sabem apaixonar-se e não têm tempo a perder com sofrimento. Para os que estão sempre de passagem e precisam de um lugar aonde encontrem, de vez em quando, um par de cuecas limpas, peúgas lavadas e três camisas engomadas. Um sítio do qual possam dizer: esta é a minha casa, esta é a minha mulher, esta é a minha escova de dentes e estes são os meus filhos, a herança que deixo ao mundo, a geração que lego à posteridade - jangada de Noé à deriva no lodo estagnado da vida.
O amor é para os parvos, disseste bem. Lembras-te? O amor é para os parvos e nós soubemos, ao menos naquele abraço, que não era aquela a nossa vida. Talvez não o soubéssemos ainda e apenas o intuíssemos. Fosse como fosse, sabêmo-lo agora - sei-o eu ao menos - e é por isso que te digo que foi melhor assim, ainda que tivesse no corpo uma vontade incontrolável de lamber as lágrimas que te percorriam a face; de te cingir os joelhos com ambos os braços e te pedir que ficasses. Terias ficado, eu sei. Ainda aqui estarias se me tivessem ocorrido as palavras certas - mas inevitável foi a única que me ocorreu. Teríamos as nossas escovas dos dentes, a gaveta com as minhas peúgas e as minhas cuecas e os nossos filhos. Talvez um sítio a que pudéssemos chamar lar. Isso tudo, enfim. É até possível que pudéssemos ter chegado a ser felizes ou, em alternativa, podíamos ter conseguido viver tão harmoniosamente que nos fosse permitido fazer de conta que éramos felizes. É tão fácil, há tanta gente que consegue e que chega a convencer-se de que é real a paz familiar que pacientemente arquitectaram; de que são sinceros os sorrisos, os beijos, os abraços. Fosse eu capaz de dizer as palavras, tivesse eu posto os meus olhos defronte dos teus para que tu pudesses ler - ao menos dessa vez - o que neles estava escrito e podia ser também nosso esse mundo de conveniência. Ter-nos-íamos magoado e feito de conta que não é nada. Ter-te-ia enganado e voltado a casa com o ar do costume, a máscara de cansaço e enfado que te havias de habituar a ter em vez do meu rosto.
Tudo isto, amor.
Manuel Jorge Marmelo
O Amor é para os Parvos
Campo das Letras, 2000