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Noite no Inferno

Engoli uma notável poção de veneno.
- Três vezes seja bendita esta riquíssima ideia! – As entranhas ardem-me. A violência da peçonha galvaniza-me os membros, desfigura-me, atira-me por terra. Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a pena capital. Vede como as chamas cobrem tudo! Ardo bastante bem. Aplica-te Demónio!
Estava eu a sonhar com uma conversão à ventura e ao bem, a salvação. Poderei descrever tal visão? O ar do inferno não suporta hinos! Eram milhões de criaturas amáveis, um suave conluio espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, que sei eu?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! – Se a danação é eterna! Um homem que quer mutilar-se está danado e bem danado, não é assim? Imaginar o inferno é ser inferno. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo do meu baptismo. Ó família minha, fizestes o meu infortúnio e fizestes o vosso. Coitadinho do inocente – O inferno não pode engolir os pagãos. – É ainda a vida! Mais tarde, as delícias da danação irão muito mais fundo. Um crime, depressa, que a lei humana me precipite no vácuo.



Jean-Arthur Rimbaud

Iluminações, Uma Cerveja no Inferno
Assírio & Alvim, 2001
Tradução de Mário Cesariny

Manhã de Embriaguez

Ó meu Bem! Ó meu Belo! Fanfarra atroz em que já não tropeço! Cavalete feérico! Hurrá pela obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Isto começou com risos de criança, em risos de criança há-de acabar. Este veneno vai ficar em todas as nossas veias, mesmo quando, regressada a fanfarra, formos devolvidos à antiga inharmonia. Ó nós agora tão digno destas torturas, cumpramos fielmente a jura sobre-humana feita ao nosso corpo à nossa almas gerados: esta promessa, esta demência! A elegância, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, banir as honestidades tirânicas, afim de que pudéssemos nosso puríssimo amor. Isto começou com uma certa náusea e isto acaba - não podendo assenhorar-se já de tal eternidade - isto acaba por uma debandada de perfumes.
Risos de crianças, discreção de escravos, austeridade das virgens, horror destas caras e destes objectos, sagrados sejais pela recordação desta vigília. Isto começou com toda a grosseria, eis que isto acaba em anjos de fogo e neve.
Breve vigília de embriaguez, santa!, quanto mais não seja pela máscara que nos deste! Afirmamos-te, método! Não esquecemos que exaltaste outrora todas as nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos ASSASSINOS.



Jean-Arthur Rimbaud

Iluminações, Uma Cerveja no Inferno
Assírio & Alvim, 2001
Tradução de Mário Cesariny

Realeza

Uma bela manhã, num povo de gente adorável, um homem e uma
mulher soberbos gritavam na praça pública: «Amigos, quero que ela seja
rainha!» « Quero ser rainha!» Ela ria e tremia. Ele falava de revelação, de
prova terminada. Desfaleciam nos braços um do outro.
E efectivamente foram reis, por toda uma manhã, quando os véus
carminados se ergueram sobre as casas, e por toda uma tarde, para os
lados dos jardins de palmeiras.



Jean-Arthur Rimbaud
Iluminações - Uma Cerveja no Inferno
Assírio & Alvim, 2007
Tradução de Mário Cesariny