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«Mas Jimmie escolheu sem hesitar o caminho de cima: embriagado pela alegria da fuga, saltou para a falésia; as carapaças secas dos lagartos estalavam com um som seco por baixo dos seus pés, ele sentia-se agora soberano e nem sequer se admirava por os seixos aguçados da parede rochosa não o magoarem; os lagartos fugiam enquanto ele se aproximava, batendo duramente na pedra com as caudas compridas.
Por que fugia ele? Pois bem, por que se foge? Jimmie Baaz era perseguido por uma recordação dolorosa da qual fugia sem descanso. Acossado até ao topo de grandes escadas, sonhara com a libertação no último degrau, mas, no seu sonho, a escada caía lastimavelmente e o pântano viscoso voltava sempre a fechá-lo nos seus braços. Noutros sonhos, afastava-se a correr por uma rua muito comprida, mas como nas feiras, os passeios rolavam em sentido contrário e reconduziam-no invariavelmente ao ponto de partida. Forçava o corpo num salto gigante para se arrancar ao pulso de ferro da rua, mas esta não o largava. Lamentável embrulho emaranhado nos fios vermelhos do seu próprio medo, despertava coberto de suor frio e precisava de horas para voltar a endireitar os membros contorcidos. Depois, os músculos ficavam a doer-lhe por muito tempo, os golpes que desferia eram mudos e incompletos, e sobretudo o seu braço esquerdo ressaltava sem forças quase antes de atingir o alvo. Com medo de ser amarrado pelo seu sonho, na véspera dos desafios importantes, tomava injecções fortes que o faziam mergulhar instantaneamente até ao fundo da inconsciência. Mas desembaraçado por um momento do sonho, o seu perseguidor acossava-o mais cruelmente ainda; bastava que certo tipo de homens o acotovelasse na rua para isso acordar nele uma estranha angústia; os cheiros de certas ruas faziam-no sentir-se mal, e quando avançava pelas grandes avenidas onde indivíduos apressados deixavam cartões de visita nos seus célebres punhos, se se cruzasse com um veículo desagradável ou com um cão solitário que corresse a tremer ao seu encontro, o chão fugia-lhe debaixo dos pés e ele caía de novo num poço profundo.»


Stig Dagerman
A ilha dos condenados
Antígona, 1990
Tradução de Miguel Serras Pereira
«Desde quando é que se tornou digno de louvor o facto de alguém possuir uma natureza de escravo? Depois de todos os símbolos do poder terem desaparecido, já não tinhas qualquer razão para obedecer, mas continuaste a fazê-lo. Que força misteriosa te impelia a obedecer às ordens de pessoas tão desgraçadas como tu, tão nuas e miseráveis como tu? Eras demasiado cobarde para tentares fazer como os outros, para experimentares dizer uma vez que fosse ao capitão: vai buscar lenha, preciso de me aquecer à fogueira. Não, tinhas descoberto uma outra solução; enquanto estavas ainda saciado, calculavas friamente que chegaria a hora em que a tua fome seria maior do que a dos outros todos. E então pensavas: em breve ficarei faminto, tornar-me-ei selvagem e sem escrúpulos, revoltar-me-ei, não abertamente, mas de modo dissimulado, contra estes terroristas. Com a cabeça fria, fazias projectos sobre a maneira como utilizarias a tua embriaguez, e é isso que é desprezível. Para que serve o desejo de revolta se re recusas a revoltar-te quando estás saciado?»


Stig Dagerman
A ilha dos condenados
Antígona, 1990
Tradução de Miguel Serras Pereira
  Não possuo filosofia em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, um luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar-me a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte da temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe um consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior    dos seus limites. 
  Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal da liberdade é o facto de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.
  Dir-se-á que preciso de ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus actos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objectivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-se livre.


Stig Dagerman
A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer
Fenda, 2004
Versão de Paula Castro & José Daniel Ribeiro
Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento, que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma.
Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo.
As suas possibilidades só são ilimitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender.Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.
Na verdade nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de
uma criança, o frio gume da beleza- nada disso tem horas ou minutos.
Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.
Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos : o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável, nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana- força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos.
Evidentemente que o faz - mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem, senão viver? Faz máquinas? Escreve livros?
Faça o que fizer, poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa.
Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação.
Importa é saber-se um fim autónomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.



Stig Dagerman
A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer
Fenda, 2004