«Mas Jimmie escolheu sem hesitar o caminho de cima: embriagado pela alegria da fuga, saltou para a falésia; as carapaças secas dos lagartos estalavam com um som seco por baixo dos seus pés, ele sentia-se agora soberano e nem sequer se admirava por os seixos aguçados da parede rochosa não o magoarem; os lagartos fugiam enquanto ele se aproximava, batendo duramente na pedra com as caudas compridas.
Por que fugia ele? Pois bem, por que se foge? Jimmie Baaz era perseguido por uma recordação dolorosa da qual fugia sem descanso. Acossado até ao topo de grandes escadas, sonhara com a libertação no último degrau, mas, no seu sonho, a escada caía lastimavelmente e o pântano viscoso voltava sempre a fechá-lo nos seus braços. Noutros sonhos, afastava-se a correr por uma rua muito comprida, mas como nas feiras, os passeios rolavam em sentido contrário e reconduziam-no invariavelmente ao ponto de partida. Forçava o corpo num salto gigante para se arrancar ao pulso de ferro da rua, mas esta não o largava. Lamentável embrulho emaranhado nos fios vermelhos do seu próprio medo, despertava coberto de suor frio e precisava de horas para voltar a endireitar os membros contorcidos. Depois, os músculos ficavam a doer-lhe por muito tempo, os golpes que desferia eram mudos e incompletos, e sobretudo o seu braço esquerdo ressaltava sem forças quase antes de atingir o alvo. Com medo de ser amarrado pelo seu sonho, na véspera dos desafios importantes, tomava injecções fortes que o faziam mergulhar instantaneamente até ao fundo da inconsciência. Mas desembaraçado por um momento do sonho, o seu perseguidor acossava-o mais cruelmente ainda; bastava que certo tipo de homens o acotovelasse na rua para isso acordar nele uma estranha angústia; os cheiros de certas ruas faziam-no sentir-se mal, e quando avançava pelas grandes avenidas onde indivíduos apressados deixavam cartões de visita nos seus célebres punhos, se se cruzasse com um veículo desagradável ou com um cão solitário que corresse a tremer ao seu encontro, o chão fugia-lhe debaixo dos pés e ele caía de novo num poço profundo.»
Stig Dagerman
A ilha dos condenados
Antígona, 1990
Tradução de Miguel Serras Pereira