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Trabalho de Casa

O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.



Nuno Júdice
in Século de Ouro: Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Angelus Novus & Cotovia, 2003
Selecção de Margarida Braga Neves

Rotação

É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.



Nuno Júdice
Pedro, Lembrando Inês
Dom Quixote, 2001

Pedro, Lembrando Inês

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: "Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?" Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passamos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.



Nuno Júdice
Pedro, Lembrando Inês
Dom Quixote, 2001

Os ferozes habitantes do sono

Cai a tarde. Do fundo da alma
vem um barulho de aves em luta com o réptil.
Mas os seus bicos vorazes não encontram
a carne mole; o tronco petrificado rasteja,
procurando o abrigo do corpo,
e volto-me para a parede cuspindo terra
e sangue. Assim veio ter às minhas mãos
a carcassa destruída do animal. Restos duros
e viscosos que a podridão e o musgo devoram
já; e dois olhos inexplicavelmente abertos,
postos em mim até de manhã, ao acordar
com a luz na cara e este poema na cabeça.



Nuno Júdice

As Inumeráveis Águas
Assírio & Alvim, 1974

Aparição num dia de inverno

Um dia, lendo este poema, lembrar-te-ás:
o amor falou através dele. Ouvirás no seu ritmo
a voz que tantas vezes desejaste; reconhecerás
nos seus versos o corpo que encheu
a tua vida; tocarás em cada uma das suas palavras
os dedos que te ensinaram a medir os dias
pelas suas contas de ternura. E o tempo
entrará por ti como esse rio que alagou os campos
do inverno. Olharás à tua volta, vendo a desolação
de uma paisagem inundada. Algures, porém,
uma árvore antiga sobressai; e os seus ramos
verdes dar-te-ão a esperança de uma nova
primavera, em que voltes a ouvir a voz
que o poema te trouxe com os seus dedos
de música.



Nuno Júdice

Guia de mercado

Nos mercados da solidão, sobem
de preço os barris: mas podemos comprá-la
ao desbarato, ao sair de casa, sem conhecer
ninguém.

Nos centros comerciais, a melancolia
vende-se em sacos de plástico, que se acumulam
nos carrinhos das compras, e se arrumam
nos frigoríficos da alma.

Nas bolsas, sobem as cotações
do desespero; mas quem o quiser comprar,
encontra sempre um accionista compreensivo
para o oferecer a preço de saldo.

E quem quiser um amor de empréstimo,
só tem de esperar que os juros desçam, e
pô-lo a render no banco da esquina, onde
a vida é mais barata.



Nuno Júdice