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Cilada

Se for um singelíssimo poema
que seja de uma imagem só,
descanse de mil sóis, espelhos
que abrem a garganta ao grito
e o grito nunca abranda;
se encontrar a alma de uma palavra
seja ela lama ou glória,
que não arme a frágil lágrima,
deixa, calmo, o silêncio fundo
nos nervos dessa que canta;
se houver sentidos que cheguem
nos mundos, se houver infinitos
que valha a pena serem ditos,
avance um homem só,
dos que têm sangue no olhar
doce e vivem sempre em palácios
nas suas tendas, ao luar.
Condições para que te perdoe,
rudíssimo poema!



Manuel Fernando Gonçalves
Coração Independente
Assírio & Alvim

Quem não puder falar que se cale

( Wittgenstein)

Tu andas muito preocupada
com tudo. E o teu mundo encolhe,
reduz-te ao brilho, alarga-te no corpo
e, assim, o corpo não dança,
dramatiza os passos e a escura
roupa. Sabe, quem te conhece,
que os gestos medidos têm ânsias
de horizontes, os olhos tristes
se abrem de explosão e infinito,
as mãos em que sempre te despenhas
desenham paisagens inteiras, lugares
secretos entre a areia e o sol, cabos
seguros de amarração em cais interditos
ao vulgar e ao soez, à lisonja fácil,
à pequena traição que te confunde
a serenidade com a angústia.
Tantas vezes apetece aconselhar-te! -
não espreites o futuro pela nesga
entreaberta, coragem frágil
em que desenhas o porte delicado,
a mansa, exaltada razão
dos argumentos , a loucura determinada,
escondida entre passado e presente,
imediatamente ages, agora
correm-te as lágrimas
e sabes muito bem porquê: chorar
faz bem, os teus fantasmas são carinhosos,
o que há-de ser é que não sabes,
bem sabes que o primeiro cigarro te mata
e ao segundo
já quase decidiste exactamente
o que fazer.
Mas não é esta canção
uma de conselhos. Atrevida canção
se fosse o que os teus lábios
não pronunciam, beijo reflectido
nos espelhos para onde te desorganizas.
O teu currículo de espelhos!
Sabe quem te conhece que és só
tu se amas; quando hesitas
onde não há razão para duvidar,
atenta de minúcias e segredos
entre as tintas e as paredes da casa,
da grande casa universal
que percorres, ora em bicos de pés
ora assente e sólida nos saltos
que te fazem mais alta;
quando te sentas e lês com compostura,
ávida de saber o que queres
esquecer na primeira fonte fresca,
no primeiro avião para bem longe,
no trilho meio selvagem da serra
da tua estimação e logo se entende
a respiração ofegante, as horas
que levas a escolher os sapatos,
logo se entende o medo aparente
de que a matéria seja imprópria
para tão sólida construção de alma.
Tu andas muito preocupada,
com nada. Com tudo o que do universo
significa ser improvável a felicidade.



Manuel Fernando Gonçalves
Coração Independente
Assírio & Alvim

Infinitos

Morrer, sim, mas devagar,
Sentes o aflorar dos lábios,
uma alegria ali ao lado, gestos
que hesitam perante a figura.
O que fez com que ignorasses os gestos,
a agilidade dos dedos, quem
te retirou o carmim dos lábios?
Morrer, sim, mas com o grito
inesperado, as memórias da poeira
leve ao tacto dos pés. Eis o tempo.
Correm por aqui lágrimas sem pena.

Morrer, sim, se morte houver,
mas nunca mais! O tempo, águia,
onde é a fonte do tempo, o tempo
dos lábios húmidos da viagem?
E, perguntas também, do desejo?
Quantos hectares tem o desejo?
Quantas pressas, lá ao fundo,
onde correm novos rios calmos,
sedentos de distância?

A morte é como tudo. Viva.
Mostrem o ouro, a cor da carne,
o rosário das emoções. A morte
é uma grande herdade dirigida
por palavras. E se o infinito for demais,
que se partam as janelas, o evidente
sobressalto, a boca, o fogo, a incólume
serenidade dos astros. Também os frutos.
Lamento pelos sabores mais frescos.
Morre quem quer. Quem não pode pensar
a seara, a visita dos amigos, uma viagem,
os jardins abertos a extremos.
Morrer, não.

De nada te valeu rogar nem esperavas,
submissa, que não fosse dor
o que dor havia de ser;
que outros gestos te levassem
a desejos sem nome; que das tuas mãos
se espantasse o alívio dos nervos
e da ferida; que, dos teus olhos,
a contida ânsia merecesse direcção
e forma. Era essa a tua geometria
de paciência. E revolta.



Manuel Fernando Gonçalves

Coração Independente
Assírio & Alvim

Instalação

Quando falo da cidade ou penso
em ti é sempre do mesmo ângulo,
do lado do rio por onde fujo
quando me aborreces, quando me irrita
o lado mais comum da vida.
Não insistas que é a máquina
dos fumos o que arrasta o nevoeiro
até à saída dos baixios: bem vejo
que são os corsários a correr nos botes
cinzentos, doentes e efémeros
a acreditar que o sol se apagará
em gestos líquidos, arbitrários.
Corro e salto e fecho os olhos
até à outra margem. Também
há contentores da Maersk e da Aws
mas ficou longe o desenho dos mastros,
a força esguia das tainhas a salvo.
Ouço-te rir por pensares que brinco
e regresso pela ponte, cheio
de saudades. Vamos esconder-nos
para trás do Azimute?



Manuel Fernando Gonçalves
Coração Independente
Assírio & Alvim

Monte das palavras relacionadas

Queremos sempre ser
a excepção
e não parece mal
sentir as lágrimas, insistentes,
na máscara dos olhos:
está quase no fim
o ano internacional dos voluntários.
Só agora se corre às ruínas, por força
dos mortos - espelhos que já brilharam
em sítios de escombros.
Estamos, ainda, desprevenidos
de ser, em tudo, espelhos,
tristes vidros, desesperados
como se fôssemos nós
os amigos que partiram,
foram sentar-se
ao lado dos deuses
em que acreditaram.
Queremos sempre falar disso:
do medo instável da nossa força;
da decisão errada:
não é que se pense
em colapsos - colapsos são coisas
de jornal, da televisão ao fim da tarde;
da arrogância de sermos tão frágeis
e acertarmos sempre, mesmo se falamos
do futuro, do que ainda não quis acontecer.
Bem nos avisaram do uso das palavras!
Também!!!
Todos julgaram que pensar não dá
trabalho nenhum!
Que é só pensar e pronto!


Manuel Fernando Gonçalves
Coração Independente
Assírio & Alvim

Monólogo muito engraçado

Sendo assim, envio para o tempo
o que agora arde no traço dos olhos.
Bem entendes, ora entende lá!
que só na areia brilham tais esplendores
verdes e se o amor é de espelhos
então vá, explica se consegues segurar,
às quinze e quarenta e quatro, essa
explosão de infinito, essa partícula
de energia renitente, uma que persiste.
Se apenas vês sangue a diluir-se
na rama dos braços, sarcasmo
e gritos quando tremo de ser
eu, o sujeito discutível de todos
os versos, então proponho
à imagem que se torne difusa,
se requebre ao ritmo das pedras
atiradas à agua, com que ideia?
Rasgar um emblema na pele
dos choupos, o teu nome, algum grito
curioso à espera do eco do gaio,
na pele da ideia simples de juntar
a distância à velocidade e o desejo
e o arfar sobranceiro de quem sabe
olhar: retirar o poema das pedras
com que afugentas o monstro, recolhes
a água que sobra de um olhar turvo;
escrever o poema na água e deixar
que o sol cumpra a sua tarefa:
espasmos e caprichos de uma jornada
inteira de movimentos velozes,
delicados, vultos por cima da copa
das árvores, da alma dos pássaros:
como o que fazemos com o tempo,
pedra sincopada a rasgar os sobressaltos.



Manuel Fernando Gonçalves
Coração Independente
Assírio & Alvim

Na tua pele

Não quero estar na tua festa
de dor, aborrecem-me a forma
e as bebidas. Estou, calcula, preso
às árvores e à falésia. A luz
dos que sofrem não me chega:
nem sequer carros velozes
apontados ao abismo! Nem música
a preceito, como nos filmes
de peito suspenso e mulheres
sem precedente. Não quero
escolher a roupa, enrolar a pasta
dos deuses para me distrair,
queimar a paciência com palavras
que ninguém merece. É claro,
escrevo convictamente:
há palavras que não podem
ser levadas aos bailes: vivem,
sem alma, no meio das coisas
que não têm significado, exaltam
a incerteza dos espelhos,
cantam, firmes, mil e um
modos de dançar, não este enlace
de resultado sempre igual. Sufoco
na tua festa da alegria, muito
sofrível a camisa por fora,
o olhar brilhante a dar ares
de fresco e confiante. Esta é a saga
sempre igual dos diferentes: levantas
a mão para empurrar a ideia contra
um espelho cheio de memórias.
Não há água que não queira
correr em cascata, assídua
em patamares muito diferentes:
é outra a sede que guardas
no teu cantil de mágoas, maior
mistério quando entras, menos
casta a tua raiva de sabe-se
lá o quê, uma dança ridícula
se os olhos estão riscados,
a visão povoada de segredos:
entre a pedra e o pára-brisas
gelado, pele do que se passa
por dentro, nada.



Manuel Fernando Gonçalves
Coração Independente
Assírio & Alvim