As hortênsias estendidas num outro tempo decoram a estância
mais acima do meu corpo.
Senti o grito dos faisões encurralados nos ramos de agosto.
Um animal invisível rói as madeiras que também estão para lá dos
meus olhos
e assim se aumenta a serenidade e prevalece o cheiro da mostarda
que foi derramada pela minha mãe.
Eu convalesço em lençóis limpos que me preservam dos insectos
e os cristais da minha infância são causa da imposição de uma
luz que os antecede em muitos dias desde que existiu a soleni-
dade e a pureza.
Neste espaço reuni-me com a tua doçura, a que traíste diante dos
meus olhos.
Agora és obsequioso e pacífico como o óleo que se reserva para os
agonizantes;
agora conténs-me com as tuas mãos e descobres-me todos os ges-
tos do teu rosto:
tantas vezes puseste a boca sobre as feridas, tantas te desdisseste
como uma lebre tenebrosa...
Assediado por enxofre que não podias suportar nos alimentos,
tantas me recebeste no teu olhar e me participaste uma escrita de
carmins abrasados,
tantas te desplumaste na minha existência...! Foi uma época da-
nificada.
Tu invocavas o chamariz e fazias com que as árvores se inclinas-
sem sobre nós nas tardes imóveis enquanto a polícia escrevia
os nossos nomes.
Noutros dias cantavas possuído pelo álcool, que transbordava
azul sobre as mesas gastas pela lixívia.
Uma senda de tojo conduzia até à tua casa onde era sempre inver-
no. Ah como sentia os teus dentes e quanto tempo te escutava,
como esperava o teu desaparecimento amando-te!
Não me deixaste outro sinal que o teu rosto celebrado pelo pranto
das mulheres.
Perante a tua beleza inclinava-se a serenidade, viúva tua desde há
muito tempo, viúva expulsa dos teus lençóis.
Isto foi quando, atraído pelo acónito, penetraste nas suas câmaras;
isto foi quando começou o esquecimento.
Tu distribuías a nostalgia de quanto é honrável e concertado com
a pulsação dos ovos.
Não quiseste ser louvado por isso mas sim pelo rancor, tua cida-
dania naquele tempo.
A cinza das tuas unhas refugiava-se nas escrituras e naqueles tem-
plos cujas madeiras estão marcadas a golpe de faca e com a
gordura dos animais torturados.
Tu, mais autêntico que eu porque me excedias em vigilância,
conduzias-me aos lugares onde é possível saborear o verdete e o aço.
Durante um instante visitou-me um crepúsculo cuja profundidade
não me pertence.
Regressei. Regressei até onde os pais são cuidadosos e perseguidos
nos seus ossos,
mas não é este o armistício que eu comprei sobrevivendo-te.
Repito que agora és obsequioso e que me acompanhas ao espaço
onde as hortênsias são persistentes.
Mais adiante, nos desvãos, sinto um bramido de pombas: é um
país nupcial. Conheces tu a virtude das pombas pelos seus ex-
crementos?
Naquele e neste tempo te recebo e só assim, olhando-me no teu
rosto, aquele que se manifesta através de uma membrana in-
corruptível,
não no furor que predicavam os teus dentes, embora me amasses
dentro de minha mãe.
Naquele e neste tempo te recebo e o meu desejo é alimentar-me
com a tua metálica bondade mas também dos aromas que te so-
brevivem.
Senta-te no meio das ruínas, senta-te com doçura no meio ou à
beira das ruínas.
São nossas única propriedade e eu começo a distinguir algumas semen-
tes e láudano e certos coágulos obedientes ao exercício da luz.
Desta paixão, dos provérbios posteriores à tua vertigem, do ani-
mal que chora e a sua piedade está sobre nós,
tu deduzirias lacre e colocá-lo-ias nos meus olhos, ou quiçá lima-
duras de níquel e outras matérias intoleráveis.
No entanto tu amavas a sumptuosidade das bandeiras no azul, por
cima das tabernas.
Sabes o que é o esquecimento? que encontraste tu na reserva do
esquecimento?
Todos os ensinamentos se extinguiram como um carbureto no
fundo das galerias inacabadas;
todos os ensinamentos menos a palpitação do bosque e alguns ves-
tígios teus nas minhas mãos.
O rio desce ainda e eu não sinto nada agora a não ser o cheiro da
água.
Os teus filhos e as minhas filhas submergem-se no rio e os que nao
esqueceram não se aproximam nunca porque seriam recebidos
e talvez entrassem nos seus corpos e morreriam.
Pensaste na paciência, pensaste na paciência semelhante a ónix, na
paciência escavando tumbas no som, abandonando teias aos ven-
tos que um dia chegarão, que chegarão depois das expulsões?
A cidade não está limpa; nos baldios há irritação e o cornelho e o
centeio coabitam e cresce um alimento que será comida dos
nossos filhos.
Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome tu não me dirás.
Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome não tocará os
teus lábios.
Cruzei a minha infância e países de morfina e largos bosques nos
quais descansei e grandes asas passaram sobre os meus olhos.
Nos lugares a que eu acudo ao entardecer há frutos muito espessos
dos quais faço colheita e os meus dedos são abrasados pelos
pirilampos porém eu faço colheita e demoro-me a acudir a ou-
tros lugares, às alcovas onde minha mãe envelhece para lá da
minha velhice.
E as palavras, febre debaixo das tégulas, grumos retrocedendo, fel
que enlouquecia debaixo do disfarce do sonho,
o que são, o que fazem em mim quando se extingui já a verdade?
Da verdade nada ficou mais que uma fetidez de notários,
uma lêndea lasciva, lágrimas, urinóis
e a liturgia da traição.
As hortênsias entendidas noutro tempo decoram a estância mais
acima do meu corpo.
Que lugar é este, que lugar é este? como estás ainda no meu co-
ração?
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
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A minha amizade está sobre ti como uma mãe sobre o seu pequeno
__que sonha com facas.
Não te porei outra venda senão a que está desfiada à volta do meu
__corpo, não te porei outro óleo senão o que descansa dentro dos
__meus olhos.
Certamente é uma história horrível o silêncio mas há uma saúde
__que sucede ao desespero.
Recorda-te da paz nos comércios abandonados, recorda-te da do-
__çura nos quartos onde se corrompia o esquecimento. Ninguém
__tinha razão nem esperança, que podíamos fazer?
Agora passam andorinhões pelo nogueiral e o seu som treme sobre
__mim.
Tu, longe, dormes entre alarido, filho meu, tu que costumavas en-
__louquecer os professores e as mulheres que se deslizavam para
__debaixo dos teus dedos.
Podes vir repartir os alimentos e as mentiras diante do meu rosto.
__Por que queimas a tua língua nos vazios escavados na pedra-
__pomes, por que te abres às sementes implacáveis, às linhaças
__adventícias?
Podes cantar nas minhas mãos mas desdizes-te em cima da tua
__beleza.
Farias muito melhor aproximando-te.
O incrédulo habita um mundo de preces. Há resplendor diante dos
__seus olhos, os que estiveram feridos pela indignação.
É mais simples proceder de um país sumptuoso, de uma memória
__coberta de espelhos - cada espelho com sua vertigem, cada
__espelho com sua profundidade cheia de frutos - porém, de
__qualquer forma, desconfia daquelas mãos cuja brancura pode
__ser beijada.
É mais simples despertar de um tempo cuja beleza não existiu ain-
__da que se estendesse como um crepúsculo.
Aproxima-te de quem se aquece com os excrementos da justiça. A
__nossa honra consiste em não ter razão,
a minha paz em envergonhar-me da esperança.
Cada dia tem o seu metal, cada delinquência a sua misericórdia;
__o arco suicida é conduzido pelo movimento da terra. Não
__me é possível decidir sobre a duração da tempestade, nem tão-
__pouco o desejo para lá dos meus olhos.
Todas estas palavras devem entrar no teu coração e, peço-te:
não ponhas lombrigas dentro da minha alma.
A minha memória é maldita e amarela como um rio sumido desde
__há muitos anos.
A minha memória é maldita. Mais adiante, antes da memória, um
__país sem retorno, acaso sem existência:
erva muito alta e doce, sesta na densidade: aquele mel sobre as
__pálpebras.
Era a exsudação e penetrava no tempo. Os insectos fecundavam-
__se sem cessar e a serenidade possuía-nos. Porém, aquele tempo
__não existiu: sucedeu na imobilidade como a música antes da
sua divisão.
A minha memória é maldita e amarela como o resíduo indestrutí-
__vel do fel.
Eu estendia membranas sobre os gritos da inutilidade. Esta foi a
__minha justiça, porém o que resta da minha alma?
Não me procures na justiça. Não encontrarás o meu corpo em
__igrejas nem em profecias insuportáveis como os moscardos na
__língua dos animais muito doentes.
A minha amizade está sobre ti e tu não estás debaixo da minha
__amizade. Não sou eu o despojado: a tua beleza é tenaz mas o
__meu cansaço é mais profundo que a tua beleza.
Nos estábulos onde me envolve a escuridão eu recebo a morte e
__conversamos até me lamber docemente os lábios.
Não é a tua virtude mas a minha; não é a tua acidez aquela que de-
__tém os perseguidores; não são os teus gritos na extremidade,
mas o meu coração e a sua vergonha, o meu coração
e o sorriso dos torturados.
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
__que sonha com facas.
Não te porei outra venda senão a que está desfiada à volta do meu
__corpo, não te porei outro óleo senão o que descansa dentro dos
__meus olhos.
Certamente é uma história horrível o silêncio mas há uma saúde
__que sucede ao desespero.
Recorda-te da paz nos comércios abandonados, recorda-te da do-
__çura nos quartos onde se corrompia o esquecimento. Ninguém
__tinha razão nem esperança, que podíamos fazer?
Agora passam andorinhões pelo nogueiral e o seu som treme sobre
__mim.
Tu, longe, dormes entre alarido, filho meu, tu que costumavas en-
__louquecer os professores e as mulheres que se deslizavam para
__debaixo dos teus dedos.
Podes vir repartir os alimentos e as mentiras diante do meu rosto.
__Por que queimas a tua língua nos vazios escavados na pedra-
__pomes, por que te abres às sementes implacáveis, às linhaças
__adventícias?
Podes cantar nas minhas mãos mas desdizes-te em cima da tua
__beleza.
Farias muito melhor aproximando-te.
O incrédulo habita um mundo de preces. Há resplendor diante dos
__seus olhos, os que estiveram feridos pela indignação.
É mais simples proceder de um país sumptuoso, de uma memória
__coberta de espelhos - cada espelho com sua vertigem, cada
__espelho com sua profundidade cheia de frutos - porém, de
__qualquer forma, desconfia daquelas mãos cuja brancura pode
__ser beijada.
É mais simples despertar de um tempo cuja beleza não existiu ain-
__da que se estendesse como um crepúsculo.
Aproxima-te de quem se aquece com os excrementos da justiça. A
__nossa honra consiste em não ter razão,
a minha paz em envergonhar-me da esperança.
Cada dia tem o seu metal, cada delinquência a sua misericórdia;
__o arco suicida é conduzido pelo movimento da terra. Não
__me é possível decidir sobre a duração da tempestade, nem tão-
__pouco o desejo para lá dos meus olhos.
Todas estas palavras devem entrar no teu coração e, peço-te:
não ponhas lombrigas dentro da minha alma.
A minha memória é maldita e amarela como um rio sumido desde
__há muitos anos.
A minha memória é maldita. Mais adiante, antes da memória, um
__país sem retorno, acaso sem existência:
erva muito alta e doce, sesta na densidade: aquele mel sobre as
__pálpebras.
Era a exsudação e penetrava no tempo. Os insectos fecundavam-
__se sem cessar e a serenidade possuía-nos. Porém, aquele tempo
__não existiu: sucedeu na imobilidade como a música antes da
sua divisão.
A minha memória é maldita e amarela como o resíduo indestrutí-
__vel do fel.
Eu estendia membranas sobre os gritos da inutilidade. Esta foi a
__minha justiça, porém o que resta da minha alma?
Não me procures na justiça. Não encontrarás o meu corpo em
__igrejas nem em profecias insuportáveis como os moscardos na
__língua dos animais muito doentes.
A minha amizade está sobre ti e tu não estás debaixo da minha
__amizade. Não sou eu o despojado: a tua beleza é tenaz mas o
__meu cansaço é mais profundo que a tua beleza.
Nos estábulos onde me envolve a escuridão eu recebo a morte e
__conversamos até me lamber docemente os lábios.
Não é a tua virtude mas a minha; não é a tua acidez aquela que de-
__tém os perseguidores; não são os teus gritos na extremidade,
mas o meu coração e a sua vergonha, o meu coração
e o sorriso dos torturados.
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
Ainda
Recordo o frio do amanhecer, os círculos dos insectos sobre as
taças imóveis, a possibilidade de um abismo pleno de luz sob as
janelas abertas para ventilação da doença, o cheiro triste
da soda cáustica.
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos ímanes e dos
ventos, pássaros a voar entre a ira e a luz..
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e esquecimento.
Nem medo nem esperança tenho. De um hotel exterior ao destino, vejo
uma praia negra e, ao longe, as pálpebras enormes de uma cidade cuja
dor não me importa.
Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos tubos da morte.
Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.
És sábio e cobarde, estás ferido nas mulheres húmidas, teu
pensamento é apenas lembrança da ira.
Vês as rosas temíveis.
Ah caminhante, ah confusão de pálpebras.
Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi minha vida.
Volto a casa atravessando o Inverno: olvido e luz nas roupas
molhadas. Os espelhos vazios e nos pratos cega a solidão.
Ah a pureza dos cutelos abandonados.
Amei as perdas todas.
Ainda retumba no jardim invisível o rouxinol.
Antonio Gamoneda
Libro del Frio
Tradução A.M.
taças imóveis, a possibilidade de um abismo pleno de luz sob as
janelas abertas para ventilação da doença, o cheiro triste
da soda cáustica.
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos ímanes e dos
ventos, pássaros a voar entre a ira e a luz..
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e esquecimento.
Nem medo nem esperança tenho. De um hotel exterior ao destino, vejo
uma praia negra e, ao longe, as pálpebras enormes de uma cidade cuja
dor não me importa.
Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos tubos da morte.
Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.
És sábio e cobarde, estás ferido nas mulheres húmidas, teu
pensamento é apenas lembrança da ira.
Vês as rosas temíveis.
Ah caminhante, ah confusão de pálpebras.
Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi minha vida.
Volto a casa atravessando o Inverno: olvido e luz nas roupas
molhadas. Os espelhos vazios e nos pratos cega a solidão.
Ah a pureza dos cutelos abandonados.
Amei as perdas todas.
Ainda retumba no jardim invisível o rouxinol.
Antonio Gamoneda
Libro del Frio
Tradução A.M.
Amor
A minha maneira de amar-te é simples:
aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo
Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos
E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração
Antonio Gamoneda
Tradução A.M.
aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo
Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos
E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração
Antonio Gamoneda
Tradução A.M.
O óxido pousou sobre a minha língua como o sabor de um desa-
parecimento.
O esquecimento entrou na minha língua e não tive outra conduta
a não ser o esquecimento,
e não aceitei outro valor a não ser a impossibilidade.
Como um barco calcificado num país do qual se retirou o mar,
escutei a rendição dos meus ossos depositando-se no descanso;
escutei a fuga dos insectos e a retracção da sombra ao ingressar no
que restava de mim;
escutei até que a verdade deixou de existir no espaço
e no meu espírito,
e não pude resistir à perfeição do silêncio.
Não creio nas invocações mas as invocações crêem em mim:
vieram outra vez como líquenes inevitáveis.
A fermentação do verão introduz-se no meu coração e as minhas
mãos deslizam cansadas na lentidão.
Vêm rostos sem projectar sombra, sem fazer estalar a simplicidade
do ar;
sem ossatura ou trânsito, como se consistissem unicamente
no conteúdo dos meus olhos, na unidade das minhas palavras,
na espessura dos meus ouvidos.
São obedientes e eu sinto a sua reunião como uma saúde que se
refugia a escuridão.
É uma amizade dentro de mim mesmo,
é um estame urdido por mãos que são suaves no interior dos dias.
Agora é verão e abasteço-me de alcatrões e espinhos e lápis iniciados
e as sentenças sobem às cânulas dos meus ouvidos.
Saí do quarto obstinado.
Posso encontrar leite em frutos abandonados e ouvir chorar num
hospital vazio.
A prosperidade da minha língua revela-se naquilo que foi esqueci-
do durante muito tempo e no entanto visitado pelas águas.
Este é um ano de cansaço. Verdadeiramente é um ano muito velho.
Este é o ano da necessidade.
Durante quinhentas semanas estive ausente dos meus desígnios,
depositado em nódulos e silencioso até à maldição.
Enquanto isso a tortura pactuou com as palavras.
Agora um rosto sorri e o seu sorriso deposita-se sobre os meus
lábios,
e a advertência da sua música explica todas as perdas e acom-
panha-me.
Fala de mim como uma vibração de pássaros que tivessem desapa-
recido e regressassem;
Fala de mim com lábios que todavia correspondem à doçura de
umas pálpebras.
Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
mercúrio,
vou estender os meus braços e penetrar na erva,
vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
para que me convoques na humidade das tuas axilas.
Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,
como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,
até submergirem o meu corpo em águas que não palpitam,
até cobrirem o meu rosto com pomadas da majestade.
Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
meus ossos;
é mais belo e antigo: alentar sobre o vinagre até o tornar azul,
adiantar um faca e retirá-la húmida de um exsudação que
dignifica o esgrimista.
Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
na negação.
Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
cilio mas amo o que ficou de nós.
Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
sitantes. Há formigas debaixo das chagas.
Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
fuga das espécies que nos abandonaram.
Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.
Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
mas excitante e doce na povoação como o é o sumo guardado
em vasilhas muito escuras.
Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
ácidos no meu corpo.
Que verdade existe no ventre das pombas?
A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?
A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?
Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?
Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
pergunta:
para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
esquinas imóveis,
as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?
Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?
Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.
A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
não devem ser abertos.
Sujo, sujo é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
um animal resplandecente.
Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
cerne?
Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,
com tudo o que treme e é amarelo debaixo da noite.
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
parecimento.
O esquecimento entrou na minha língua e não tive outra conduta
a não ser o esquecimento,
e não aceitei outro valor a não ser a impossibilidade.
Como um barco calcificado num país do qual se retirou o mar,
escutei a rendição dos meus ossos depositando-se no descanso;
escutei a fuga dos insectos e a retracção da sombra ao ingressar no
que restava de mim;
escutei até que a verdade deixou de existir no espaço
e no meu espírito,
e não pude resistir à perfeição do silêncio.
Não creio nas invocações mas as invocações crêem em mim:
vieram outra vez como líquenes inevitáveis.
A fermentação do verão introduz-se no meu coração e as minhas
mãos deslizam cansadas na lentidão.
Vêm rostos sem projectar sombra, sem fazer estalar a simplicidade
do ar;
sem ossatura ou trânsito, como se consistissem unicamente
no conteúdo dos meus olhos, na unidade das minhas palavras,
na espessura dos meus ouvidos.
São obedientes e eu sinto a sua reunião como uma saúde que se
refugia a escuridão.
É uma amizade dentro de mim mesmo,
é um estame urdido por mãos que são suaves no interior dos dias.
Agora é verão e abasteço-me de alcatrões e espinhos e lápis iniciados
e as sentenças sobem às cânulas dos meus ouvidos.
Saí do quarto obstinado.
Posso encontrar leite em frutos abandonados e ouvir chorar num
hospital vazio.
A prosperidade da minha língua revela-se naquilo que foi esqueci-
do durante muito tempo e no entanto visitado pelas águas.
Este é um ano de cansaço. Verdadeiramente é um ano muito velho.
Este é o ano da necessidade.
Durante quinhentas semanas estive ausente dos meus desígnios,
depositado em nódulos e silencioso até à maldição.
Enquanto isso a tortura pactuou com as palavras.
Agora um rosto sorri e o seu sorriso deposita-se sobre os meus
lábios,
e a advertência da sua música explica todas as perdas e acom-
panha-me.
Fala de mim como uma vibração de pássaros que tivessem desapa-
recido e regressassem;
Fala de mim com lábios que todavia correspondem à doçura de
umas pálpebras.
Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
mercúrio,
vou estender os meus braços e penetrar na erva,
vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
para que me convoques na humidade das tuas axilas.
Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,
como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,
até submergirem o meu corpo em águas que não palpitam,
até cobrirem o meu rosto com pomadas da majestade.
Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
meus ossos;
é mais belo e antigo: alentar sobre o vinagre até o tornar azul,
adiantar um faca e retirá-la húmida de um exsudação que
dignifica o esgrimista.
Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
na negação.
Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
cilio mas amo o que ficou de nós.
Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
sitantes. Há formigas debaixo das chagas.
Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
fuga das espécies que nos abandonaram.
Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.
Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
mas excitante e doce na povoação como o é o sumo guardado
em vasilhas muito escuras.
Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
ácidos no meu corpo.
Que verdade existe no ventre das pombas?
A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?
A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?
Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?
Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
pergunta:
para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
esquinas imóveis,
as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?
Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?
Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.
A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
não devem ser abertos.
Sujo, sujo é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
um animal resplandecente.
Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
cerne?
Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,
com tudo o que treme e é amarelo debaixo da noite.
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
A natureza dos corpos
A natureza dos corpos é fingir a existência e este conhecimento é o
fim de um espírito rodeado de galinhas ávidas.
Lê nas lâminas de vidro: os argumentos do prazer e os capítulos
da destruição atravessados por um só olhar. Quem fala nesta
transparência?
Só é legível o livro do incerto.
O amolador que possui nas suas cânulas uma só nota, clara como
uma serpente, criadora da infância num espaço de homens vi-
giados, não é mais feliz que a sua própria música destinada ao
inverno.
Assim era o rosto da tua mãe.
A nossa paixão é trivial: um ensinamento atribuído aos pássaros
sobre a neve, aos volumes cuja visão é a forma mais perfeita
da tristeza.
E a convicção cresce unicamente no paladar de homens aptos para
a administração da morte, homens cujas canadas estão cheias
de líquidos mais decisivos que a dor.
Mas, os incrédulos, privados de conduta, que igreja luz nos nossos
gemidos?
Há indícios em narrações impecáveis: o vendedor de figos da ín-
dia cuja pobreza está debaixo da luz e que sorria perto da faca
e a limpeza do seu acto era uma lâmpada incrível, uma pro-
va especial da inexistência coroada de gritos na celebração do
mercado.
Ou, nos jardins do verão, o muro quieto na impossibilidade, exter-
no a uma espessura de linhas invisíveis, uma espessura dotada
de melancolia.
Ou, mais ainda, no teu casaco abandonado e entreaberto, ou seja,
numa forma que descreve o teu desaparecimento.
Esta perplexidade é a consciência. O medo faz de pastor, porém
não sabes mais de ti do que um animal absorto sobre a água.
A contradição está na minha alma como os dentes na boca que
fala de misericórdia.
A confusão está na minha alma e penso em rios ao deslizar a mi-
nha língua pelas mulheres que se apiedam dos meus ácidos. A
minha saúde é lasciva diante dessas grandes janelas.
Estes enxames... E a brancura das tuas costas, caminhante cego
que vais à minha frente, ou, nessas taças polidas pela vertigem,
o alimento azul, o preparado para a hora da morte.
Longos assobios chegam dos pátios. Eu escuto até à hora mais tar-
dia e o mundo é vazio e a beleza dos adultérios ferve no fundo
dos copos de noite.
Assim é a véspera de um dia. O leite anuncia a manhã.
Quem entrou nos meus ouvidos?
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
fim de um espírito rodeado de galinhas ávidas.
Lê nas lâminas de vidro: os argumentos do prazer e os capítulos
da destruição atravessados por um só olhar. Quem fala nesta
transparência?
Só é legível o livro do incerto.
O amolador que possui nas suas cânulas uma só nota, clara como
uma serpente, criadora da infância num espaço de homens vi-
giados, não é mais feliz que a sua própria música destinada ao
inverno.
Assim era o rosto da tua mãe.
A nossa paixão é trivial: um ensinamento atribuído aos pássaros
sobre a neve, aos volumes cuja visão é a forma mais perfeita
da tristeza.
E a convicção cresce unicamente no paladar de homens aptos para
a administração da morte, homens cujas canadas estão cheias
de líquidos mais decisivos que a dor.
Mas, os incrédulos, privados de conduta, que igreja luz nos nossos
gemidos?
Há indícios em narrações impecáveis: o vendedor de figos da ín-
dia cuja pobreza está debaixo da luz e que sorria perto da faca
e a limpeza do seu acto era uma lâmpada incrível, uma pro-
va especial da inexistência coroada de gritos na celebração do
mercado.
Ou, nos jardins do verão, o muro quieto na impossibilidade, exter-
no a uma espessura de linhas invisíveis, uma espessura dotada
de melancolia.
Ou, mais ainda, no teu casaco abandonado e entreaberto, ou seja,
numa forma que descreve o teu desaparecimento.
Esta perplexidade é a consciência. O medo faz de pastor, porém
não sabes mais de ti do que um animal absorto sobre a água.
A contradição está na minha alma como os dentes na boca que
fala de misericórdia.
A confusão está na minha alma e penso em rios ao deslizar a mi-
nha língua pelas mulheres que se apiedam dos meus ácidos. A
minha saúde é lasciva diante dessas grandes janelas.
Estes enxames... E a brancura das tuas costas, caminhante cego
que vais à minha frente, ou, nessas taças polidas pela vertigem,
o alimento azul, o preparado para a hora da morte.
Longos assobios chegam dos pátios. Eu escuto até à hora mais tar-
dia e o mundo é vazio e a beleza dos adultérios ferve no fundo
dos copos de noite.
Assim é a véspera de um dia. O leite anuncia a manhã.
Quem entrou nos meus ouvidos?
Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato
Para além da sombra
Vejo a sombra na substância rubra do crepúsculo.
Fecho os olhos e
ardem os limites.
Há luz dentro da sombra, corre
a centelha debaixo das suas asas imóveis.
São mortais as medulas
ocultas na luz.
Atrás da obscuridade estão os rostos que me abandonaram
Eu vi a sua pele trabalhada por relâmpagos. Agora
já só vejo, no instante amarelo,
o esplendor das suas longínquas pálpebras.
Pus água e cinábrio no meu coração e nas minhas veias
e vi a morte para além da púrpura.
Agora os meus olhos vêem no passado: grandes flores imóveis, mães
atormentadas nos seus filhos, líquenes fertilizados pela tristeza.
Já não há mais que rostos invisíveis.
Cansei-me inutilmente
nas recordações e nas sombras.
Uma pomba imóvel
nas suas artérias e nos seus ossos.
Aguarda já a agonia natural envolta
em pétalas de sombra.
Talvez o silêncio dure para além de si mesmo e a existência seja só
um grito negro, um alarido diante da eternidade.
O erro pesa nas nossas pálpebras.
Antonio Gamoneda
Ardem as perdas
Quasi Edições, 2004
Tradução de José Bento
Fecho os olhos e
ardem os limites.
Há luz dentro da sombra, corre
a centelha debaixo das suas asas imóveis.
São mortais as medulas
ocultas na luz.
Atrás da obscuridade estão os rostos que me abandonaram
Eu vi a sua pele trabalhada por relâmpagos. Agora
já só vejo, no instante amarelo,
o esplendor das suas longínquas pálpebras.
Pus água e cinábrio no meu coração e nas minhas veias
e vi a morte para além da púrpura.
Agora os meus olhos vêem no passado: grandes flores imóveis, mães
atormentadas nos seus filhos, líquenes fertilizados pela tristeza.
Já não há mais que rostos invisíveis.
Cansei-me inutilmente
nas recordações e nas sombras.
Uma pomba imóvel
nas suas artérias e nos seus ossos.
Aguarda já a agonia natural envolta
em pétalas de sombra.
Talvez o silêncio dure para além de si mesmo e a existência seja só
um grito negro, um alarido diante da eternidade.
O erro pesa nas nossas pálpebras.
Antonio Gamoneda
Ardem as perdas
Quasi Edições, 2004
Tradução de José Bento
6
Amei as desaparições e agora o último rosto saiu de
mim.
Atravessei as cortinas brancas:
já há somente luz dentro de meus olhos.
Antonio Gamoneda
Livro do Frio
Assírio & Alvim, 1998
Tradução de José Bento
mim.
Atravessei as cortinas brancas:
já há somente luz dentro de meus olhos.
Antonio Gamoneda
Livro do Frio
Assírio & Alvim, 1998
Tradução de José Bento
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