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falo do vosso amor codificado

Falo do vosso amor codificado
com expressões em público
A sinceridade é para vós irreparável
Por isso elegeis os gestos insinceros
que imperscrutados são iguais aos nossos
Às vezes um de nós fraqueja (Sois tão felizes!)
Pensamos então nele humildemente.


Sebastião Alba
A Noite Dividida
Assírio & Alvim, 1996

ficou-lhe uma desolação de tal modo

Ficou-lhe uma desolação de tal modo
jacente
que a rosa-dos-ventos
vinda pela duna abaixo
nem ele sabe donde
forma já com a sua vasa
o ângulo para a eternidade
duma roda do leme
naufragada

Ponham-lhe em torno dos braços
o vento imóvel
e digam que leva
com um baque
o desassossego ao coração do conforto
Ou dêem-lhe já agora
um ofício externo
que lhe encoste cada vez mais
o nome ao apelido
até à concreção enfim
da assinatura
Nada o demove

É alguém que duma parábola
vê da soleira
passar a voz do narrador.

Sebastião Alba
Noite Dividida
Assírio & Alvim

o espanto do menino

O espanto do menino
é o único ingrediente
do poema da sua infância
No jardim em que foi posto
faz com a urina e a terra
o mapa dum país
de que já no sexo a memória lhe dói
Acolherá sobre a língua
uma blasfémia privada.



Sebastião Alba
A Noite Dividida
Assírio & Alvim, 1996

dum grande poeta deu-se o nome

dum grande poeta deu-se o nome
a uma rua suburbana

nem tanto quis em vida

das «solidões lacustres»
que seu facho ainda alumia
dos nítidos e urbanos
dias ermos
escreveu e morreu

um dia
trocou o amor já anunciado das mulheres
e o tráfico das emoções nos espectáculos
pela paz indissolúvel

os demais resistiram
estão em bronza nas sessões camarárias
nos jardins de infância
nos largos das cidades marítimas

a ele deu-se uma rua suburbana
nem tanto era preciso

sua lisa fronte maldita
não se cobre da pátina das inscrições no mármore

de regresso a casa
com a lua mortíça ponderável nas nucas
fulge limpidamente
nas memórias mais graves
dos melhores de nós

Sebastião Alba
A Noite Dividida
Assírio & Alvim

os cardeais chegaram

Os cardeais chegaram
Já distintas
as cores do verão nas suas asas
pelas lufadas mais baixas sobem
a corrente verde do capim

Nidificarão a sua cidadela
lá onde os ventos da planura
acampem nas ramagens

E nem o bruxo golpe de vista
dos falcões
lhes lobrigará no colo titilado
os ovos moldáveis.


Sebastião Alba
A noite dividida
Assírio & Alvim, 1996

1941 - 1968/ sebastião alba

Há muito já que o último amigo
se foi pela escorada
abertura da terra
Há muito que a brisa
se deslaça e esquiva
no rebordo do traço
de duração entre datas

Um imperativo silêncio
desloca estes versos
Tão de súbito resumida
como evocar a amizade?
Seu nome de ilimitadas
sílabas desérticas?

Sebastião alba
A Noite Dividida
Assírio & Alvim

trecho da praia

Como por um ralo atrás da pupila,
vêem-se agir:
nada divide o caranguejo, dividindo
os lodos em seu sulco,
e também suas pinças se amotinam
à passagem, com sombra,
duma ave marinha...

E antes da chegada ascendente do mar,
ou que alguém module a voz
pela que da nuvem soou
no paraíso, amam-se na areia.
Enquanto do largo
o halo dum navio nocturno
se expande e irisa em seu redor.

Sebastião Alba
A noite dividida
Assírio & Alvim, 1996
Pai: quando falava do futuro
a que se referia - ao meu tempo?
Nunca, na ascensão em espiral
de qualquer culto,
dominámos um frouxo de tosse.
Abro o livro (o seu era L'espoir):
se o malogro das personagens não é certo,
por certo o é o do autor.
Bem sucedido, morrerá: fim.
E isso nenhum estilo o redime.
Sorrio congeminando
que o seu tinha uma encadernação durável.
Os meus filhos sorrirão doutra coisa.
Eis como o sorriso se propaga.

Sebastião Alba
A noite dividida
Assírio & Alvim, 1996

a pomba / sebastião alba

Pontos de vista
entrecruzam as balas
e nós ensaiamos a pomba
desenhando-a encurvando-lhe
o dorso antes do voo
largando-a no prisma puro
dos olhares da multidão
Logo uma estrela fugaz
se lhe cola ao bico
Rodopiará no céu entre colunas
colossais de cogumelos
e sóis que a inflectem
mas bem aninhada no oco
habitáculo de penas
com a chave em nossa mão.

Sebastião Alba
A noite dividida
Assírio & Alvim, 1996

como os outros

Como os outros discípulo da noite
frente ao seu quadro negro
que é exterior à música
dispo o reflexo Sou um
e baço

dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.

sebastião alba
A Noite Dividida,
Assírio & Alvim

o ritmo do presságio

A tinta das canetas
Reflui de antipatia
E impregnadas, assíduas
Cambam as borrachas
Não há fita de máquina
Que o uso não esmague
O vaivém não ameace
De dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
De pauses na cabeça
Vozes inarticuladas
Adensam, durante elas
Uma tempestade
Recôndita
E nubladas carregam-se
As suspensões
Encandeando em nós
O ritmo do presságio

sebastião alba
o ritmo do presságio
Edições 70