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O hóspede

Muito antes do anoitecer
chega a tua casa alguém que saudou a escuridão.
Muito antes do amanhecer
ele acorda
e atiça, antes de se ir embora, um sonho,
um sono onde ressoam passos:
tu ouve-lo medir as distâncias
e atiras a tua alma para lá.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

De escuridão em escuridão

Abriste os olhos - vejo a minha escuridão viver.
Vejo-a até ao fundo:
também aí é minha e vive.

Poderá isso transpor? E transpondo acordar?
De quem é a luz que se atrela aos meus passos
para encontrar um barqueiro?



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Salmo

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-de-céu,
a corola vermelha
de purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Tu eras

Tu eras a minha morte:
a ti podia agarrar-te
enquanto tudo me fugia.

Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Carregado de brilhos

Carregado de brilhos, entre
os escavarelhos do céu,
na montanha.

A morte
que me ficaste a dever, eu
carrego-a
até ao fim.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

O mundo que iremos gaguejar de cor

O mundo que iremos gaguejar de cor,
e em que eu hei-de ter estado
como hóspede, um nome
arrancado a suor do muro
que uma chaga lambendo vai subindo.

Tu com a fisga de trevas,
tu com a pedra:

Passou a noite,
eu brilho atrás de mim mesmo.
Puxa-me para baixo,
leva-nos
a sério.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Orvalho

Orvalho. E eu deitado contigo, tu, no lixo,
uma lua lamacenta
atirou-nos com a resposta,

nós separámo-nos aos bocados
e voltámos a esmigalhar-nos juntos:

O Senhor partiu o pão,
o pão partiu o Senhor.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Diante do teu rosto tardio

Diante do teu rosto tardio,
so-
litário entre
noites que também me transformam,
algo se imobilizou
que já outrora estivera connosco, in-
tocado por pensamentos.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Sois desfiados

Sóis desfiados
sobre o deserto cinzento-negro.
Um pensamento alto-
-como-árvore
capta o tom da luz: ainda
há canções para cantar do outro lado
dos homens.

Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

In Memoriam Paul Eluard

Depõe no túmulo do morto as palavras
que ele pronunciou para viver.
Deita-lhe a cabeça entre elas,
fá-lo sentir
as falas da nostalgia,
as facas.

Depõe sobre as pálpebras do morto a palavra
que ele recusa àquele
que o tratava por tu,
a palavra
que viu passar por ela o sangue do seu coração,
quando uma mão, despida como a sua,
atou aquele que o tratava por tu
às árvores do futuro.

Depõe-lhe esta palavra sobre as pálpebras:
talvez
surja nos seus olhos, ainda azuis,
um outro, mais estranho, tom de azul,
e aquele que o tratava por tu
sonhe com ele: Nós.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Flor

A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.

Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do verão:
flor.

Flor - uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca de água.

Crescimento.
Folha a folha acrescenta
as paredes do coração.

Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.



Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

De todas as feridas

Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
Só uma vez no Outono a pedra reverdece - foi ontem;
foi quando o sal nas ruas era tão vermelho,
tão vermelho que se pensaria que era chegada a hora
a que se acena com os véus da meia-noite:
o tempo-de-tulipas dessa hora
em que o desejo enche o copo de toda a gente,
o berço e o caixão de toda a gente,
as pegadas de toda a gente -
a hora que liberta do gelo o teu olhar,
te faz arregaçar a tua sombra
e arranca aos sinos o seu silêncio quando danças.

Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
foi ontem
e jaz no sangue com nós dois



Paul Celan
A Morte É Uma Flor
Livros Cotovia, 1998
Segue
o que pelas mãos te passou
o caminho das tuas mãos, segue
o caminho da noite, o do destino.

Mas: uma linha, uma vez
soprada sobre uma folha, sobre
a mesa ontem afogada -:

Durante,
durante a noite, durante a noite, os dias,
os dias
tornam-se
brancos.

Aquele que andou sobre as mãos que
escreveram isto: aquele
que leu a escrita das urtigas, o in-
compreendido, só ele
compreende também os outros.



Paul Celan
A Morte é Uma Flor
Livros Cotovia, 1998
Tradução de João Barrento
Sem brilho, levado
todo para dentro, o olhar:

A sombra
dupla que um dia fui
divide-se
em duas, erguem-se
as alas da noite - agora vai,
palavra que estiveste tempo de mais no mundo, rola,
sai -

Com os olhos de uma criança, com
os olhos da sua mãe
encontro eu a minha segunda
a minha primeira
janela



Paul Celan

A morte é uma flor
Livros Cotovia, 1998
Tradução de João Barrento

Sete rosas mais tarde

Reunido está o que vimos,
para despedida de ti e de mim:
o mar, que nos lançava noites para a terra,
a areia, que as atravessou connosco,
a urze vermelho-ferrugem além
onde o mundo nos aconteceu.


Paul Celan
Sete Rosas Mais Tarde
Livros Cotovia, 2006
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno