No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.
Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
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Laranja cor de sangue
Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.
Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.
Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.
É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.
Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.
Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.
É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Álgebra no início da noite
A louca prosseguia desenhando Xs
Com um pau de giz escolar
Nas costas de pares inadvertidos,
De mãos dadas rumo a casa.
Era inverno. Já escurecera.
Não se conseguia ver-lhe a cara,
Embuçada como estava e furtiva
Como se fosse levada pelo vento, com asas de corvo.
O giz ter-lhe-ia sido dado por uma criança.
Tentava-se descobri-la na multidão,
Esperando que fosse muito séria, muito pálida
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Com um pau de giz escolar
Nas costas de pares inadvertidos,
De mãos dadas rumo a casa.
Era inverno. Já escurecera.
Não se conseguia ver-lhe a cara,
Embuçada como estava e furtiva
Como se fosse levada pelo vento, com asas de corvo.
O giz ter-lhe-ia sido dado por uma criança.
Tentava-se descobri-la na multidão,
Esperando que fosse muito séria, muito pálida
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Numa rua lateral
Se há pequenas lojas
Com nomes ilegíveis
Não te aproximes delas
Nem espreites pelas janelas.
Mantém-te onde o céu pode ser visto
No seu esplendor crepuscular sem nuvens
Sobre os prédios escuros,
Escuros mesmo na noite mais escura.
Se alguém te segue,
E coxeia, e tem um relógio
que leva ao ouvido e sorri,
Foge dele e do seu relógio.
Há uma avenida larga, bem iluminada
por perto. Milhares saíram
Só para te ver, embora
Finjam que és invisível
quando surges na claridade
Desde essa rua lateral escura,
Com a face tão polida
Que parece empoada para uma festa.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Com nomes ilegíveis
Não te aproximes delas
Nem espreites pelas janelas.
Mantém-te onde o céu pode ser visto
No seu esplendor crepuscular sem nuvens
Sobre os prédios escuros,
Escuros mesmo na noite mais escura.
Se alguém te segue,
E coxeia, e tem um relógio
que leva ao ouvido e sorri,
Foge dele e do seu relógio.
Há uma avenida larga, bem iluminada
por perto. Milhares saíram
Só para te ver, embora
Finjam que és invisível
quando surges na claridade
Desde essa rua lateral escura,
Com a face tão polida
Que parece empoada para uma festa.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
O filho mais velho
A noite ainda te assusta.
Sabes que é interminável
E de dimensões desmesuradas, inimagináveis.
« É porque a sua insónia é constante »,
Leste nalgum místico.
Será o bico do Seu compasso escolar
Que te fere o coração?
Algures estarão os amantes deitados
Debaixo dos ciprestes sombrios,
Tremendo de felicidade,
Mas aqui só a tua barba de muitos dias
E uma mariposa nocturna tiritando
Debaixo da mãos que apertas contra o peito.
Filho mais velho, Prometeu
De um fogo tão frio que não consegues nomear
Pelo qual te condenaram a um tempo largo
Com o terror dessa mariposa nocturna por companhia.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Sabes que é interminável
E de dimensões desmesuradas, inimagináveis.
« É porque a sua insónia é constante »,
Leste nalgum místico.
Será o bico do Seu compasso escolar
Que te fere o coração?
Algures estarão os amantes deitados
Debaixo dos ciprestes sombrios,
Tremendo de felicidade,
Mas aqui só a tua barba de muitos dias
E uma mariposa nocturna tiritando
Debaixo da mãos que apertas contra o peito.
Filho mais velho, Prometeu
De um fogo tão frio que não consegues nomear
Pelo qual te condenaram a um tempo largo
Com o terror dessa mariposa nocturna por companhia.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Invenção do nada
Não reparei
enquanto aqui escrevia
que nada resta do mundo
excepto a minha mesa e a cadeira.
E por isso disse:
(por que raio, para abusar da paciência)
É esta a taberna
sem um copo, vinho ou criado
onde sou o bêbado que há muito esperam?
A cor de nada é azul.
Eu bato-lhe com a mão esquerda e a mão desaparece.
Então porque estou tão sossegado
e tão feliz?
Eu subo para a mesa
(a cadeira já desapareceu)
eu canto pelo gargalo
de uma garrafa de cerveja vazia.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
enquanto aqui escrevia
que nada resta do mundo
excepto a minha mesa e a cadeira.
E por isso disse:
(por que raio, para abusar da paciência)
É esta a taberna
sem um copo, vinho ou criado
onde sou o bêbado que há muito esperam?
A cor de nada é azul.
Eu bato-lhe com a mão esquerda e a mão desaparece.
Então porque estou tão sossegado
e tão feliz?
Eu subo para a mesa
(a cadeira já desapareceu)
eu canto pelo gargalo
de uma garrafa de cerveja vazia.
Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira
Errata
Onde diz neve leiam
marcas dos dentes de uma virgem
Onde diz faca leiam
atravessaste os meus ossos
como uma sirene de polícia
Onde diz mesa leiam cavalo
Onde diz cavalo leiam o meu fardo de emigrante
As maçãs devem permanecer maçãs
Cada vez que aparecer chapéu
pensem em Isaac Newton
lendo o Velho Testamento
Eliminem todos os pontos
são cicatrizes deixadas pelas palavras
que não consegui escrever
Ponham um dedo sobre cada nascer do sol
para que ele não vos cegue
Aquela maldita formiga ainda mexe
Será que vai sobrar tempo
para corrigir todos os erros
mãos que disparam armas de contrabando
florestas consumidas como charutos
aquela garrafa de cerveja o meu maior erro
a palavra que deixei ficar escrita
quando devia ter gritado
por ela
Charles Simic
marcas dos dentes de uma virgem
Onde diz faca leiam
atravessaste os meus ossos
como uma sirene de polícia
Onde diz mesa leiam cavalo
Onde diz cavalo leiam o meu fardo de emigrante
As maçãs devem permanecer maçãs
Cada vez que aparecer chapéu
pensem em Isaac Newton
lendo o Velho Testamento
Eliminem todos os pontos
são cicatrizes deixadas pelas palavras
que não consegui escrever
Ponham um dedo sobre cada nascer do sol
para que ele não vos cegue
Aquela maldita formiga ainda mexe
Será que vai sobrar tempo
para corrigir todos os erros
mãos que disparam armas de contrabando
florestas consumidas como charutos
aquela garrafa de cerveja o meu maior erro
a palavra que deixei ficar escrita
quando devia ter gritado
por ela
Charles Simic
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