Há tanta solidão nesse ouro.
A lua das noites não é a lua
do primeiro Adão. Os longos séculos
da vigília humana encheram-na
de antigo pranto. Olha para ela. É o teu espelho.
Jorge Luis Borges
La moneda de hierro
(1976)
Tradução A.M.
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Blake
Onde estará a rosa que te oferece
sem saber, na tua mão, íntimas dádivas?
Não está na cor, porque uma flor é cega,
nem na doce fragrância inesgotável,
nem no peso da pétala. Essas coisas
são só uns poucos e perdidos ecos.
A rosa verdadeira está bem longe.
Pode ser um pilar ou uma batalha
ou um firmamento de anjos ou um mundo
infinito, secreto e necessário,
ou o júbilo de um deus que não veremos
ou um planeta de prata noutro céu
ou um terrível arquétipo sem ter
a forma de uma rosa.
Jorge Luis Borges
in A cifra
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
sem saber, na tua mão, íntimas dádivas?
Não está na cor, porque uma flor é cega,
nem na doce fragrância inesgotável,
nem no peso da pétala. Essas coisas
são só uns poucos e perdidos ecos.
A rosa verdadeira está bem longe.
Pode ser um pilar ou uma batalha
ou um firmamento de anjos ou um mundo
infinito, secreto e necessário,
ou o júbilo de um deus que não veremos
ou um planeta de prata noutro céu
ou um terrível arquétipo sem ter
a forma de uma rosa.
Jorge Luis Borges
in A cifra
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
César
Eis tudo o que deixaram os punhais.
Eis esta pobre coisa, um morto austero
que se chamava César. Há crateras
abertas na sua carne plos metais.
Eis esta atroz, agora interrompida
máquina usada ontem para a glória,
para escrever e executar a história
e para a plena fruição da vida.
Eis aqui também o outro, esse prudente
imperador que os seus louros recusou,
que baixéis e batalhas comandou
e foi inveja e brio de tanta gente.
Eis aqui também o outro, esse vindouro
cuja sombra será o mundo todo.
Jorge Luis Borges
in Atlas
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Eis esta pobre coisa, um morto austero
que se chamava César. Há crateras
abertas na sua carne plos metais.
Eis esta atroz, agora interrompida
máquina usada ontem para a glória,
para escrever e executar a história
e para a plena fruição da vida.
Eis aqui também o outro, esse prudente
imperador que os seus louros recusou,
que baixéis e batalhas comandou
e foi inveja e brio de tanta gente.
Eis aqui também o outro, esse vindouro
cuja sombra será o mundo todo.
Jorge Luis Borges
in Atlas
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Beppo
O gato branco e solitário vê-se
nessa lúcida lua de algum espelho
e não pode saber que tal brancura
e esses nunca vistos olhos de ouro
são, afinal, a sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é apenas um sonho desse espelho?
Eu penso que esses gatos harmoniosos,
o do mais quente sangue e o de vidro,
são simulacros que concedem ao tempo
um arquétipo eterno. Assim afirma,
sombra também, Plotino nas Enéadas.
De que Adão anterior ao paraíso
e de que divindade indecifrável
somos nós, homens, um quebrado espelho?
Jorge Luis Borges
in A cifra
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
nessa lúcida lua de algum espelho
e não pode saber que tal brancura
e esses nunca vistos olhos de ouro
são, afinal, a sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é apenas um sonho desse espelho?
Eu penso que esses gatos harmoniosos,
o do mais quente sangue e o de vidro,
são simulacros que concedem ao tempo
um arquétipo eterno. Assim afirma,
sombra também, Plotino nas Enéadas.
De que Adão anterior ao paraíso
e de que divindade indecifrável
somos nós, homens, um quebrado espelho?
Jorge Luis Borges
in A cifra
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
A véspera
Milhares de grãos de areia mais pequena,
Rios que ignoram o repouso, neve
Mais delicada que uma sombra, leve
Sombra de qualquer folha, a tão serena
Orla do mar, a momentânea espuma,
Os antigos caminhos do bisonte
E da flecha fiel, um horizonte
E outro, os arrozais e essa bruma,
O cume, os tranquilos minerais,
O Orinoco, o intrincado jogo
Que urdem a terra, a água, o ar, o fogo,
As léguas de submissos animais,
Hão-de afastar da minha a tua mão,
Mas igualmente a noite, o dia vão...
Jorge Luis Borges
in A Moeda de Ferro
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Rios que ignoram o repouso, neve
Mais delicada que uma sombra, leve
Sombra de qualquer folha, a tão serena
Orla do mar, a momentânea espuma,
Os antigos caminhos do bisonte
E da flecha fiel, um horizonte
E outro, os arrozais e essa bruma,
O cume, os tranquilos minerais,
O Orinoco, o intrincado jogo
Que urdem a terra, a água, o ar, o fogo,
As léguas de submissos animais,
Hão-de afastar da minha a tua mão,
Mas igualmente a noite, o dia vão...
Jorge Luis Borges
in A Moeda de Ferro
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
De «Algumas Moedas»
Mateus 27:9
Caiu a moeda na vazia mão.
Não pude segurá-la, embora leve,
E deixei-a cair. Foi tudo em vão
E o outro disse: «Faltam vinte e nove.»
Um soldado de Oribe
Sob uma velha mão, o arco roça
De um modo transversal a firme corda.
Morreu um som. O homem não recorda
Que de outra vez já fez a mesma coisa.
Jorge Luis Borges
in A moeda de Ferro
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Caiu a moeda na vazia mão.
Não pude segurá-la, embora leve,
E deixei-a cair. Foi tudo em vão
E o outro disse: «Faltam vinte e nove.»
Um soldado de Oribe
Sob uma velha mão, o arco roça
De um modo transversal a firme corda.
Morreu um som. O homem não recorda
Que de outra vez já fez a mesma coisa.
Jorge Luis Borges
in A moeda de Ferro
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
O remorso
Cometi o pior desses pecados
Que podem cometer-se. Não fui sendo
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, despiedados.
Plos meus pais fui gerado para o jogo
Arriscado e tão belo que é a vida,
Para a terra e a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua vontade. A minha mente
Aplicou-se às simétricas porfias
Da arte, que entretece ninharias.
Valentia eu herdei. Não fui valente.
Não me abandona. Está sempre ao meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.
Jorge Luis Borges
in A Moeda de Ferro
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Que podem cometer-se. Não fui sendo
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, despiedados.
Plos meus pais fui gerado para o jogo
Arriscado e tão belo que é a vida,
Para a terra e a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua vontade. A minha mente
Aplicou-se às simétricas porfias
Da arte, que entretece ninharias.
Valentia eu herdei. Não fui valente.
Não me abandona. Está sempre ao meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.
Jorge Luis Borges
in A Moeda de Ferro
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Alhambra
Grata a voz da água
Estreitada por negras areias,
Grato à mão côncava
O mármore circular de uma coluna,
Gratos os finos labirintos da água
Por entre os limoeiros,
Grata a música da estrofe,
Grato o amor e grata a oração
Dirigida a um Deus que está sozinho,
Grato o jasmim.
Inútil o alfange
Perante as longas lanças dos inúmeros,
Inútil ser o melhor.
Grato sentir ou pressentir, rei doente,
Que as tuas doçuras são adeuses,
Que te será negada a chave,
Que a cruz dos infiéis apagará a lua,
Que a tarde que contemplas é a última.
Estreitada por negras areias,
Grato à mão côncava
O mármore circular de uma coluna,
Gratos os finos labirintos da água
Por entre os limoeiros,
Grata a música da estrofe,
Grato o amor e grata a oração
Dirigida a um Deus que está sozinho,
Grato o jasmim.
Inútil o alfange
Perante as longas lanças dos inúmeros,
Inútil ser o melhor.
Grato sentir ou pressentir, rei doente,
Que as tuas doçuras são adeuses,
Que te será negada a chave,
Que a cruz dos infiéis apagará a lua,
Que a tarde que contemplas é a última.
Granada, 1976
Jorge Luis Borges
in História da Noite
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
in História da Noite
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
O Espião
Na pública luz das batalhas
Outros darão a sua vida à pátria
E recorda-os o mármore.
Eu vagueei, obscuro, por cidades que odeio.
Dei-lhe outras coisas.
Abjurei da minha honra
Traí quem me julgou seu amigo,
Comprei consciência,
Abominei o nome da minha pátria
Resignei-me à infâmia.
Jorge Luis Borges
In A Rosa Profunda
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Outros darão a sua vida à pátria
E recorda-os o mármore.
Eu vagueei, obscuro, por cidades que odeio.
Dei-lhe outras coisas.
Abjurei da minha honra
Traí quem me julgou seu amigo,
Comprei consciência,
Abominei o nome da minha pátria
Resignei-me à infâmia.
Jorge Luis Borges
In A Rosa Profunda
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
De «Quinze Moedas»
Chove
Em que outrora, em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
Astérion
O ano cobrou-me o seu tributo de homens
E na cisterna há tanta água.
Em mim se juntam os caminhos de pedra.
De que posso queixar-me?
Nos fins de tarde
Pesa-me um pouco a cabeça de touro.
Um Poeta Menor
A meta é o esquecimento.
Eu cheguei antes.
Macbeth
Os nossos actos seguem o seu caminho
Que não conhece fim.
Matei o meu rei para que Shakespeare
Urdisse a sua tragédia.
Jorge Luis Borges
in A Rosa Profunda
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Em que outrora, em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
Astérion
O ano cobrou-me o seu tributo de homens
E na cisterna há tanta água.
Em mim se juntam os caminhos de pedra.
De que posso queixar-me?
Nos fins de tarde
Pesa-me um pouco a cabeça de touro.
Um Poeta Menor
A meta é o esquecimento.
Eu cheguei antes.
Macbeth
Os nossos actos seguem o seu caminho
Que não conhece fim.
Matei o meu rei para que Shakespeare
Urdisse a sua tragédia.
Jorge Luis Borges
in A Rosa Profunda
Obras Completas, vol. III
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Atacar Pessoas
Não gosto de atacar pessoas, especialmente agora - quando era jovem, sim, gostava muito, mas à medida que o tempo passa, uma pessoa apercebe-se de que isso não é bom. Quando as pessoas escrevem a favor ou contra qualquer coisa, isso ou dificilmente as ajuda ou as magoa. Acho que um homem pode ser ajudado, bem, o homem pode ser feito ou desfeito pela sua própria escrita, não por algo que os outros digam dele, portanto mesmo que uma pessoa se gabe muito e que as pessoas digam que ela é um génio - bem, ela há-de ser descoberta.
Jorge Luis Borges
Entrevistas da Paris Review
Selecção e Tradução de Carlos Vaz Marques
Tinta da China, 2009
daqui
Tríade
O alívio que César terá sentido na manhã de Farsália,
ao pensar: É hoje a batalha.
O alívio que terá sentido Carlos I ao ver a alva no postigo
e pensar: É hoje o dia do patíbulo, da coragem e do cutelo.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte,
quando a sorte nos livrar do triste costume de ser alguém
e do peso do universo.
Jorge Luis Borges
Los Conjurados
(1985)
Tradução A.M.
ao pensar: É hoje a batalha.
O alívio que terá sentido Carlos I ao ver a alva no postigo
e pensar: É hoje o dia do patíbulo, da coragem e do cutelo.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte,
quando a sorte nos livrar do triste costume de ser alguém
e do peso do universo.
Jorge Luis Borges
Los Conjurados
(1985)
Tradução A.M.
O Cúmplice
Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.
Jorge Luis Borges
Poesia
Companhia das Letras, 2009
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.
Jorge Luis Borges
Poesia
Companhia das Letras, 2009
As unhas
De dia, dóceis meias as afagam e sapatos de couro cravejados as fortificam, mas os dedos do meu pé não querem saber disso. Não lhes interessa outra coisa senão emitir unhas: lâminas córneas, semitransparentes e elásticas, para se defenderem de quem? Brutos e desconfiados como só eles são, não deixam um segundo de preparar esse ténue armamento. Recusam o universo e o êxtase para continuar elaborando sem fim umas vãs pontas, que cerceiam e voltam a cercear os bruscos tesourões de Solingen. Nos noventa dias crepusculares de clausura pré-natal estabeleceram esta única indústria. Quando eu estiver depositado na Recoleta, numa caixa de cor cinzenta provida de flores secas e talismãs, continuarão o seu obstinado trabalho, até que as modere a corrupção. Elas, e a barba na minha cara.
Jorge Luís Borges
O Fazedor
Difel, 1982
Tradução de Miguel Tamen
O Aleph
«God, 1 could be bounded in a nutshell and count myself a King of infinite space.»
Hamlet, II, 2.
«But they will teach us that Eternity is the Standing still of the Present Time, a Nuncstans (as the Schools call it); which neither they, nor any else understand, no more than they would a Hic-stans for an Infinite greatnesse of Place.»
Leviatã, IV, 46
Hamlet, II, 2.
«But they will teach us that Eternity is the Standing still of the Present Time, a Nuncstans (as the Schools call it); which neither they, nor any else understand, no more than they would a Hic-stans for an Infinite greatnesse of Place.»
Leviatã, IV, 46
Na ardente manhã de Fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Praça da Constituição tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o facto doeu-me, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, algumas vezes, a minha vã devoção a exasperara; morta, podia consagrar-me à sua memória, sem esperança, mas também sem humilhação. Lembrei-me de que a 30 de Abril era o seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da Rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo direito, era um acto cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias dos seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, a cores; Beatriz, com máscara, no Carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia do seu casamento com Roberto Alessandri; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês oferecido por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e a três quartos, sorrindo, com a mão no queixo... Não seria obrigado, como outras vezes, a justificar a minha presença com módicas ofertas de livros — livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que se mantinham intactos.
Beatriz Viterbo morreu em 1929; desde então não deixei passar um 30 de Abril sem voltar a sua casa. Eu costumava chegar às sete e um quarto e ficar uns vinte e cinco minutos; cada ano aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial favoreceu-me: tiveram que me convidar para jantar. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente; em 1934, apareci, já passando das oito, com um alfajor santafecino; com toda a naturalidade, fiquei para jantar. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais confidências de Carlos Argentino Daneri.
Beatriz era alta, frágil, ligeiramente curvada; havia no seu andar (se for tolerável o oximoro) uma graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, grande, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca sem leitores dos arrabaldes do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o esse italiano e a copiosa gesticulação italiana sobrevivem nele. A sua actividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. É abundante em inúteis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses sofreu a obsessão de Paul Fort, menos pela suas baladas que pela ideia de uma glória irrepreensível. «É o príncipe dos poetas da França», repetia com fatuidade. «É inútil tentares atacá-lo; nunca o atingirás, nem com a mais venenosa das tuas setas.»
No dia 30 de Abril de 1941, permiti-me juntar ao alfajor uma garrafa de conhaque nacional. Carlos Argentino provou-o, julgou-o interessante e pôs-se, depois de alguns copos, a fazer uma defesa do homem moderno.
— Evoco-o — disse com uma animação um tanto inexplicável — no seu gabinete de estudo, como se disséssemos na torre albarrã de uma cidade, provido de telefones, de telégrafo, de fonógrafos, de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de horários, de prontuários, de boletins...
Observou que, para um homem assim dotado, o acto de viajar era inútil; o nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora, convergiam sobre o moderno Maomé.
Tão ineptas me pareceram essas ideias, tão pomposa e tão extensa a sua exposição, que as relacionei logo com a literatura; perguntei-lhe porque não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o fizera: esses conceitos, e outros não menos novos, figuravam no Canto Augural, Canto Prologal ou simplesmente Canto Prólogo de um poema em que trabalhava há muitos anos, sem propaganda, sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema intitulava-se A Terra; tratava-se de uma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca digressão e a galharda apóstrofe.
Pedi que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:
Vi, como o grego, as cidades dos homens,
Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;
Não corrijo os factos, não falseio os nomes,
Mas o voyage que narro, é... autour de ma chambre.
— Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante — opinou. — O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do académico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, sector considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didáctica), não sem renovar um processo cujo antepassado está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro — barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma — consta de dois hemistíquios gémeos; o quarto, francamente bilingue, assegura-me o apoio incondicional de todos os espíritos sensíveis aos desenfadados convites da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisseia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo uma vez mais que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!
Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram a sua aprovação e seu profuso comentário. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Na sua redacção tinham colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse trabalho posterior modificava a obra para ele, mas não para os outros. A dicção de Daneri era extravagante; a sua lentidão métrica, salvo raras vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.
Uma só vez na vida tive a ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do Polyolbion, essa epopeia topográfica na qual Michael Drayton registou a fauna, a flora, a hidrografia, a orografia, a história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável, mas limitado, é menos entediante que a vasta empresa congénere de Carlos Argentino. Este propunha-se versificar toda a redondez do planeta; em 1941 já tinha consumido alguns hectares do estado de Queensland, mais de um quilómetro do curso do Obi, um gasómetro a norte de Vera-cruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a quinta de Mariana Cambaceres de Alvear na Rua Onze de Setembro, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do acreditado aquário de Brighton. Leu-me certas passagens laboriosas da zona australiana do seu poema; esses longos e informes alexandrinos careciam da relativa agitação do prefácio. Copio uma estrofe:
Sepan. A manderecha del poste rutinario
(Viniendo, claro está, desde el Nornoroeste)
Se aburre una osamenta — ¿Color? Blanquiceleste —
Que da al corral de ovejas catadura de osario.
— Duas audácias — gritou, exultante — libertadas, ouço-te resmungar, para o sucesso! Admito, admito. Uma, o epíteto «rutinario», que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as Geórgicas nem o nosso já laureado Don Segundo se atreveram jamais a denunciar assim, ao vivo. Outra, o enérgico prosaísmo «se aburre una osamenta», que o melindroso quererá excomungar com horror, mas que o crítico de gosto viril apreciará mais que a própria vida. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo hemistíquio trava animadíssima conversação com o leitor; antecipa-se à sua viva curiosidade, põe-lhe uma pergunta na boca e satisfá-la... logo a seguir. E que me dizes desse achado, «blanquiceleste»? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é elemento importantíssimo da paisagem australiana. Sem essa evocação ficariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o leitor ver-se-ia compelido a fechar o volume, com a alma profundamente ferida de incurável e negra melancolia.
Por volta da meia-noite despedi-me.
Dois domingos depois, Daneri chamou-me pelo telefone, penso que pela primeira vez na vida. Propôs que nos reuníssemos às quatro, «para tomar leite juntos, no salão-bar próximo que o progressismo de Zunino e de Zungri — os proprietários da minha casa, estarás lembrado — inaugura na esquina; confeitaria que te importará conhecer». Aceitei, mais com resignação que com entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o «salão-bar», inexoravelmente moderno, era apenas um pouco menos atroz que as minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público mencionava as quantias gastas sem regatear por Zunino e por Zungri. Carlos Argentino fingiu assombrar-se com não sei que primores da instalação da luz (que já conhecia, sem dúvida) e disse-me com certa severidade:
— Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local se compara aos mais sofisticados de Flores.
Releu, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado princípio de ostentação verbal; onde antes escrevera «azulado», agora abundava em «azulino», «azulenco» e até mesmo «azulillo». A palavra «lechoso» não era bastante feia para ele; na impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia «lactario», «lacticinoso», «lactescente», «lechal»... Insultou os críticos com amargura; depois, mais benigno, comparou-os a essas pessoas «que não dispõem de metais preciosos nem tão-pouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um tesouro». Acto contínuo, censurou a prologomanía, «da qual já se fez mofa no donairoso prefácio do Quixote, o Príncipe dos Engenhos». Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha o prólogo vistoso, a ajuda firmada pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava publicar os cantos iniciais do seu poema. Compreendi então o singular convite telefónico: o homem ia pedir-me que prefaciasse o seu aranzel. O meu temor era infundado: Carlos Argentino observou, com admiração rancorosa, que não julgava errar de epíteto ao qualificar de sólido o prestígio logrado em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras que, se eu me empenhasse, iria prefaciar com beleza o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu tinha de me fazer porta-voz de dois méritos incontestáveis: a perfeição formal e o rigor científico, «porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias, não tolera um só detalhe que não confirme a severa verdade». Acrescentou que Beatriz sempre se tinha divertido com Álvaro.
Assenti, assenti profusamente. Esclareci, para maior verosimilhança, que não falaria com Álvaro na segunda-feira, mas na quinta: na pequena ceia que costuma coroar todas as reuniões do Clube de Escritores. (Não existem tais ceias, mas é irrefutável que as reuniões são às quintas-feiras, facto que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dava à frase certa realidade.) Disse, entre adivinhatório e sagaz, que, antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso plano da obra. Despedimo-nos; ao passar pela Rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda a imparcialidade o futuro que me restava: a) falar com Álvaro e dizer-lhe que o primo direito de Beatriz (esse eufemismo explicativo permitir-meia mencioná-la) elaborara um poema que parecia estender até o infinito as possibilidades da cacofonia e do caos; b) não falar com Álvaro. Previ, com lucidez, que acabaria por optar por b.
A partir da primeira hora de sexta-feira começou a importunar-me pelo telefone. Indignava-me que este instrumento, que noutros dias reproduzira a voz irrecuperável de Beatriz, pudesse rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse enganado Carlos Argentino Daneri. Felizmente, nada aconteceu — salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me tinha imposto uma delicada missão e depois me esquecia.
O telefone perdeu os seus terrores, mas, em fins de Outubro, Carlos Argentino falou comigo. Estava agitadíssimo; não identifiquei a sua voz, a princípio. Com tristeza e com raiva, murmurou que aqueles já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampilar a sua desmedida confeitaria, iam demolir a casa.
— A casa dos meus pais, a minha casa, a velha casa enraizada da Rua Garay! — repetiu, talvez esquecendo o pesar na melodia.
Não me foi muito difícil compartilhar da aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem
do tempo; além disso, tratava-se de uma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis esclarecer esse delicadíssimo aspecto; o meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e Zungri persistissem naquele propósito absurdo, o Dr. Zunni, seu advogado, os processaria ipso facto por perdas e danos e obrigá-los-ia ao pagamento de cem mil nacionales.
O nome de Zunni impressionou-me; o seu escritório, em Caseros y Tacuarí, é de uma seriedade proverbial. Perguntei se ele já se tinha encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe naquela mesma tarde. Vacilou e, com essa voz calma, impessoal, à qual costumamos recorrer para confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema a casa lhe era indispensável, pois num ângulo da cave havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contêm todos os pontos.
- Está na cave debaixo da sala de jantar — explicou, com a voz aligeirada pela angústia. — É meu, é meu; descobri-o na infância, antes da idade escolar. A escada da cave é inclinada, os meus tios tinham-me proibido de descer, mas alguém me disse que havia um mundo na cave. Referia-se, soube-o depois, a um baú, mas eu pensei que havia um mundo. Desci secretamente, tropecei na escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
- O Aleph? — perguntei.
- Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos. A ninguém revelei a minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me despojarão, não, mil vezes não. De código em punho, o doutor Zunni provará que é inalienável o meu Aleph.
Procurei raciocinar.
- Mas não é muito escura a cave?
- A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da Terra estão no Aleph, ali estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.
- Irei vê-lo imediatamente.
Desliguei, antes que ele pudesse proibir-me. Basta o conhecimento de um facto para se perceber no acto uma série de traços confirmativos, antes insuspeitados; espantou-me não ter compreendido até esse momento que Carlos Argentino era um louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repeti-lo) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distracções, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez exigissem uma explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade; no fundo, sempre nos havíamos detestado.
Na Rua Garay, a criada disse-me que tivesse a bondade de esperar. O menino estava na cave, revelando fotografias. Junto ao jarrão sem flores, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrónico) o grande retrato de Beatriz, em cores pesadas. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse:
- Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges.
Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não podia pensar em mais nada senão na perda do Aleph.
- Um copinho do falso conhaque — ordenou — e mergulharás na cave. Já sabes, é indispensável o decúbito dorsal. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu encostas-te no chão de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da tal escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Se algum rato te meter medo, não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmos dos alquimistas e cabalistas, o nosso concreto amigo proverbial, o multum in parvo!
Já na sala de jantar, acrescentou:
- É claro que, se não o vires, a tua incapacidade não invalida o meu testemunho... Desce; muito em breve poderás estabelecer um diálogo com todas as imagens de Beatriz.
Desci com rapidez, farto das suas palavras sem substância. A cave, pouco mais larga que a escada, tinha muito de poço. Com uma olhadela, procurei o baú de que me falara Carlos Argentino. Alguns caixotes com garrafas e alguns sacos de lona escureciam um canto. Carlos pegou num saco, dobrou-o e ajeitou-o num lugar preciso.
— A almofada é humilde — explicou —, mas se a levanto um só centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refastela esse corpanzil no chão e conta dezanove degraus.
Cumpri as suas ridículas exigências; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; embora houvesse uma fresta que depois distingui, a escuridão pareceu-me total. Subitamente, compreendi o meu perigo: deixara-me enterrar por um louco, depois de tomar veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam o seu íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender o seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um vago mal-estar, que tratei de atribuir à rigidez, e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.
Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alano de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é em vão que rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria contaminada de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cores, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um quebrado labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes existira uma árvore, vi numa quinta de Adrogué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o facto das letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando bilhetes-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra fez-me tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Alpeh a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjecturai cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima.
- Ficarás tonto por bisbilhotar assim onde não és chamado — disse uma voz enfadonha e alegre. — Mesmo que queimes o juízo, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, hem, Borges!
Os pés de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar:
- Formidável. Sim, formidável.
A indiferença da minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:
- Viste tudo bem, a cores?
Nesse instante, concebi a minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino Daneri a hospitalidade da sua cave e instei com ele para aproveitar a demolição da casa e afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém — creia-me, a ninguém! — perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.
Na rua, nas escadarias da Praça da Constituição, no metro, pareceram-me familiares todas as faces. Tive medo de que não restasse uma só coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que jamais me abandonasse a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insónia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.
Post-sriptum do primeiro de Março de 1943. Seis meses após a demolição do prédio da Rua Garay, a Editorial Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do descomunal poema e lançou no mercado uma selecção de «trechos argentinos». Vale a pena repetir o ocorrido; Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prémio Nacional de Literatura. O primeiro foi dado ao Dr. Aita; o terceiro, ao Dr. Mario Bonfanti; incrivelmente, a minha obra Los naipes del tahúr não conseguiu um único voto. Mais uma vez, triunfaram a incompreensão e a inveja! Há já muito tempo que não consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. A sua pena afortunada (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do Dr. Acevedo Díaz.
Quero acrescentar duas observações: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre o seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. A sua aplicação ao círculo da minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou leu-o, aplicado a outro ponto para onde convergem todos os pontos, em algum dos inúmeros textos que lhe revelou o Aleph da sua casa? Por incrível que pareça, acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, acredito que o Aleph da Rua Garay era um falso Aleph.
Dou as minhas razões. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em Julho de 1942, Pedro Henríquez Ureña descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedónia. No seu cristal reflectia-se o universo inteiro. Burton menciona outros artifícios semelhantes — o sétuplo cálice de Kai Josrú, o espelho que Tárique Ibne Ziade encontrou numa torre (As Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samósata pode examinar na Lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satíricon de Capela atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlim «redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro» (The Faerie Queene, III, 2, 19) — e acrescenta estas curiosas palavras: «Mas os anteriores (além do defeito de não existirem) são meros instrumentos de óptica. Os fiéis que acorrem à mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram ouvir, ao fim de pouco tempo, o seu atarefado rumor... A mesquita data do século vil; as colunas procedem de outros templos de religiões pré-islâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: «Nas repúblicas fundadas por nómadas, é indispensável o concurso de forasteiros para tudo o que seja alvenaria.»
Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Tê-lo-ei visto quando vi todas as coisas e esqueci-o? A nossa mente é porosa para o esquecimento; eu próprio começo a falsear, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.
Jorge Luís Borges
O Aleph
Editorial Estampa, 1988
Biblioteca de Babel
«By this art you may contemplate
the variation of the 23 letters...»
The Anatomy of Melancholy, part 2, sect. II, mem. IV
the variation of the 23 letters...»
The Anatomy of Melancholy, part 2, sect. II, mem. IV
O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altura, que é a dos pisos, mal excede a de uni bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer as necessidades fecais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e se eleva a perder de vista. No saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico e Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença: «A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.»
A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor negra. Também há letras na lombada de cada livro; estas letras não indicam nem representam o que dirão as páginas. Sei que esta incongruência já chegou a parecer misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar das suas trágicas projecções, é talvez o facto capital da história) vou rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Desta verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dotação de estantes, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que existe entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trémulos que a minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: «O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco». Foi esta observação que permitiu, há trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura tinha ainda decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que o meu pai viu num hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava apenas das letras M C V perversamente repetidas da primeira linha até à última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a penúltima página diz «Oh tempo as tuas pirâmides.» Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e de incoerências. (Sei de uma bárbara região cujos bibliotecários repudiam o vão e supersticioso costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas afirmam que essa aplicação é casual e que os livros em si nada significam. Esta opinião, como veremos, não é totalmente falaciosa.)
Durante muito tempo julgou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bastante diferente da que falamos agora; é verdade que poucas milhas à direita a língua é dialectal e que noventa pisos mais acima é incompreensível. Tudo isto, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por mais dialectal ou rudimentar que seja. Houve quem insinuasse que cada letra podia ter influência sobre a seguinte e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas esta vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente, aceitou-se esta conjectura, embora não no sentido em que a formularam os seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior deu com um livro tão confuso como os outros, mas que tinha quase duas folhas de linhas homogéneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros disseram-lhe que era iídiche. Em menos de um século conseguiu-se estabelecer o idioma: um dialecto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Estes exemplos permitiram que um bibliotecário de génio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por muito diferentes que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também acrescentou um facto que todos os viajantes têm confirmado: «Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos.» Destas premissas incontroversas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número, embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Beda pode ter escrito (e não escreveu) sobre a mitologia dos Saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Reabilitações: livros de apologia e de profecia, que para sempre reabilitavam os actos de todos os homens do universo e guardavam arcanos prodigiosos para o seu porvir. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e lançaram-se pelas escadas acima, impelidos pelo vão propósito de encontrar a sua Reabilitação. Estes peregrinos brigavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, atiravam os livros enganadores para o fundo dos túneis, morriam defenestrados pelos homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Reabilitações existem (eu vi duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas porventura não imaginárias), mas os pesquisadores não se lembravam que a possibilidade de um homem achar a sua, ou alguma pérfida variação da sua, se pode computar à volta do zero.
Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que estes graves mistérios possam explicar-se por palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca deve ter produzido o idioma inaudito que se requer, bem como os vocabulários e gramáticas desse idioma. Há já quatro séculos que os homens não dão descanso aos hexágonos... Há pesquisadores oficiais, inquiridores. Vi-os no desempenho da sua função: chegam sempre esgotados; falam de um escadote sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; algumas vezes, pegam no livro mais próximo e folheiam-no, em busca de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desaforada esperança, como é natural, sucedeu-se uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira nalgum hexágono continha livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construírem, por meio de um improvável dom do acaso, esses livros canónicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que longamente se ocultavam nas latrinas, com uns discos de metal num covilhete proibido, e fracamente imitavam a divina desordem.
Outros, pelo contrário, acreditaram que a prioridade era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com tédio um volume e condenavam estantes inteiras: ao seu furor higiénico e ascético deve-se a insensata perda de milhões de livros. O seu nome é execrado, mas quem deplora os «tesouros» que o seu frenesi destruiu descura dois factos notórios. Um: a Biblioteca é de tal forma enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas pelo terror que esses fanáticos provocaram. Impelia-os o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; omnipotentes, ilustrados e mágicos.
Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho inverosímil que nalguma estante do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem — um só que seja, há milhares de anos! — o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e até a humilde e pura coerência) é uma quase milagrosa excepção. Falam (eu sei-o) da «Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de se transformarem noutros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira». Estas palavras que não só denunciam a desordem, mas também a exemplificam, provam de maneira notória o seu péssimo gosto e a sua desesperada ignorância. Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variações que permitem os vinte e cinco sinais ortográficos, mas não um único disparate absoluto. Não vale a pena observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se intitula Trono penteado, e outro A cãibra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas propostas, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são susceptíveis de uma justificação criptográfica ou alegórica; essa justificação é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar uns caracteres
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que a divina Biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos — e também a sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas, o símbolo biblioteca admite a correcta definição ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou outra coisa qualquer, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que compreendes a minha linguagem?)
A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam barbaramente as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter mencionado os suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não intercalei este adjectivo por um hábito retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Quem o julga limitado, postula que em lugares longínquos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar — o que é absurdo. Quem o imagina sem limites, esquece que os tem o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direcção, verificaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). A minha solidão alegra-se com esta elegante esperança.
Mar da Prata, 1941
Jorge Luis Borges
Ficções
Editorial Teorema, 2003
Tradução de José Colaço Barreiros
Ficções
Editorial Teorema, 2003
Tradução de José Colaço Barreiros
História da Noite
Sempre ao longo das suas gerações
os homens foram construindo a noite.
Ao princípio era só cegueira e sono
e espinhos que laceram o pé nu
e receio dos lobos.
Nunca saberemos quem forjou a palavra
para o intervalo de sombra
que divide os dois crepúsculos;
nunca saberemos em que século foi sinal
do espaço das estrelas.
Outros engendraram o mito.
Fizeram-na mãe das Parcas tranquilas
que tecem o destino
e sacrificavam-lhe as ovelhas negras
e o galo que adivinha o seu fim.
Doze casas lhe deram os Caldeus;
inifinitos mundos, o Pórtico.
Hexâmetros latinos a moldaram
e o terror de Pascal.
Luis de Léon viu nela a pátria
da sua alma estremecida.
Agora sentimo-la inesgotável
como um vinho velho
e ninguém pode contemplá-la sem vertigens
e o tempo carregou-a de eternidade.
E pensarmos que não existiria
sem esses frágeis instrumentos, os olhos.
os homens foram construindo a noite.
Ao princípio era só cegueira e sono
e espinhos que laceram o pé nu
e receio dos lobos.
Nunca saberemos quem forjou a palavra
para o intervalo de sombra
que divide os dois crepúsculos;
nunca saberemos em que século foi sinal
do espaço das estrelas.
Outros engendraram o mito.
Fizeram-na mãe das Parcas tranquilas
que tecem o destino
e sacrificavam-lhe as ovelhas negras
e o galo que adivinha o seu fim.
Doze casas lhe deram os Caldeus;
inifinitos mundos, o Pórtico.
Hexâmetros latinos a moldaram
e o terror de Pascal.
Luis de Léon viu nela a pátria
da sua alma estremecida.
Agora sentimo-la inesgotável
como um vinho velho
e ninguém pode contemplá-la sem vertigens
e o tempo carregou-a de eternidade.
E pensarmos que não existiria
sem esses frágeis instrumentos, os olhos.
Jorge Luis Borges
Obras Completas
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Duas formas de insónia
O que é a insónia?
A pergunta é retórica; sei demasiado bem a resposta.
É temer e contar na alta noite as duras badaladas fatais, é experimentar com magia inútil uma respiração regular; é o peso de um corpo que bruscamente muda de lado, é estreitar as pálpebras, é um estado parecido com a febre e que decerto não é a vigília, é recitar fragmentos de parágrafos lidos há muitos anos, é saber-se culpado de velar enquanto os outros dormem, é querer fundir-se no sono, é o horror de ser e de continuar a ser, é a alba duvidosa.
O que é a longevidade?
É o horror de existir num corpo humano cujas faculdades declinam, é uma insónia que se mede por décadas e não com agulhas de aço, é o peso de mares e de pirâmides, de antigas bibliotecas e dinastias, das auroras vistas por Adão, é não ignorar que estou condenado à minha carne, à minha detestada voz, ao meu nome, a uma rotina de lembranças, ao castelhano, que não sei manejar, à nostalgia do latim, que não sei, a querer fundir-me na morte e a não poder fundir-me na morte, a ser e a continuar a ser.
A pergunta é retórica; sei demasiado bem a resposta.
É temer e contar na alta noite as duras badaladas fatais, é experimentar com magia inútil uma respiração regular; é o peso de um corpo que bruscamente muda de lado, é estreitar as pálpebras, é um estado parecido com a febre e que decerto não é a vigília, é recitar fragmentos de parágrafos lidos há muitos anos, é saber-se culpado de velar enquanto os outros dormem, é querer fundir-se no sono, é o horror de ser e de continuar a ser, é a alba duvidosa.
O que é a longevidade?
É o horror de existir num corpo humano cujas faculdades declinam, é uma insónia que se mede por décadas e não com agulhas de aço, é o peso de mares e de pirâmides, de antigas bibliotecas e dinastias, das auroras vistas por Adão, é não ignorar que estou condenado à minha carne, à minha detestada voz, ao meu nome, a uma rotina de lembranças, ao castelhano, que não sei manejar, à nostalgia do latim, que não sei, a querer fundir-me na morte e a não poder fundir-me na morte, a ser e a continuar a ser.
Jorge Luis Borges
Obras Completas
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
O Cativo
Em Junín ou em Tapalquén contam a história. Um miúdo desapareceu depois de um ataque dos índios; disse-se que o tinham raptado. Os seus pais procuraram-no inutilmente; passados anos, um soldado que vinha de terra adentro falou-lhes de um índio de olhos celestes que bem podia ser seu filho. Deram por fim com ele (a crónica perdeu as circunstâncias e não quero inventar o que não sei) e pensaram reconhecê-lo. O homem, trabalhado pelo deserto e pela vida bárbara, já não sabia ouvir as palavras da língua natal, mas deixou-se conduzir, indiferente e dócil, até casa. Aí se deteve, talvez porque os outros se detiveram. Olhou a porta, como se não a compreendesse. De repente, baixou a cabeça, gritou, atravessou correndo o saguão e os dois pátios largos e enfiou-se pela cozinha. Sem vacilar, mergulhou o braço no enegrecido sino e tirou o canivete de cabo de chifre que ali tinha escondido em criança. Os olhos brilharam-lhe de alegria e os pais choraram porque tinham encontrado o filho.
Talvez a esta recordação se tivessem seguido outras, mas o índio não podia viver entre paredes e um dia foi à procura do seu deserto. Gostaria de saber o que terá sentido naquele instante de vertigem em que o passado e o presente se confundiram; gostaria de saber se o filho perdido renasceu e morreu naquele êxtase ou se conseguiu reconhecer, como uma criatura ou um cão, os pais e a casa.
Talvez a esta recordação se tivessem seguido outras, mas o índio não podia viver entre paredes e um dia foi à procura do seu deserto. Gostaria de saber o que terá sentido naquele instante de vertigem em que o passado e o presente se confundiram; gostaria de saber se o filho perdido renasceu e morreu naquele êxtase ou se conseguiu reconhecer, como uma criatura ou um cão, os pais e a casa.
Jorge Luis Borges
O Fazedor
Difel, 1982
Tradução de Miguel Tamen
Adão é a tua cinza
A espada morrerá como o racimo.
Não é mais frágil o cristal que a rocha.
As coisas são o seu porvir de pó.
O ferro é ferugem. A voz, o eco.
Adão, o jovem pai, é a tua cinza.
O último jardim será o primeiro.
O rouxinol e Píndaro são vozes.
A aurora é o reflexo do ocaso.
O micénio, a máscara de ouro.
O alto muro, a degradada ruína.
Urquiza, o que deixam os punhais.
O rosto que se olha agora ao espelho
Não é o de ontem. A noite gastou-o.
Modela-nos o tempo delicado.
Que sorte ser a água invulnerável
Que corre na parábola de Heraclito
Ou o intrincado fogo, mas agora,
Neste dia tão longo que não passa,
Sinto-me duradouro e desvalido.
Não é mais frágil o cristal que a rocha.
As coisas são o seu porvir de pó.
O ferro é ferugem. A voz, o eco.
Adão, o jovem pai, é a tua cinza.
O último jardim será o primeiro.
O rouxinol e Píndaro são vozes.
A aurora é o reflexo do ocaso.
O micénio, a máscara de ouro.
O alto muro, a degradada ruína.
Urquiza, o que deixam os punhais.
O rosto que se olha agora ao espelho
Não é o de ontem. A noite gastou-o.
Modela-nos o tempo delicado.
Que sorte ser a água invulnerável
Que corre na parábola de Heraclito
Ou o intrincado fogo, mas agora,
Neste dia tão longo que não passa,
Sinto-me duradouro e desvalido.
Jorge Luís Borges
Obras Completas
Editorial Teorema, 1998
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
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