quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A Criatividade de Pizzi, o Discernimento de William e a Vox Populi

Não há decerto muitos assuntos que mereçam tanta atenção, neste blogue, como a estupidez generalizada do adepto de futebol. Essa estupidez manifesta-se de muitos modos (em comentários em estádios de futebol, em comentários entre amigos, em comentários online), e grassa geralmente entre aqueles que não têm espírito crítico, que alinham as suas opiniões pelas da maioria e nem sequer se apercebem disso. É por isso natural que tais pessoas não percebam a qualidade de alguns dos melhores jogadores, do nosso campeonato ou de outro campeonato qualquer. Para tanto, basta que tais jogadores não façam aquilo que mais agrada às massas, ou que se distingam por qualidades que as massas, enoveladas na simplicidade da sua própria estupidez, não reconheçam como qualidades. Jogadores que não corram sempre a mil à hora, seja ou não preciso, que não disputem cada lance como se fosse um caso de vida ou morte, que não se livrem da bola assim que a recebem, que não joguem em função de um padrão de decisões previamente estabelecido, condizente com as expectativas mais básicas dos adeptos, mas unicamente em função das circunstâncias, que não passem só por passar nem driblem só por driblar, que não façam, em suma, sempre aquilo que as bancadas exigem, são jogadores que as massas tendem a desvalorizar. Jogadores que pensam antes de agir, que procuram soluções diferentes, muitas vezes distintas daquelas que os adeptos identificam, que se expõem mais ao erro, pelo grau de exigência que assumem na procura de tais soluções, que se caracterizam mais pela velocidade de raciocínio e pela imaginação do que pela velocidade de pernas e pela entrega física, são jogadores a quem os adeptos não reconhecem a devida utilidade. E não o reconhecem unicamente porque, ao seu lado, há sempre mais adeptos que não lhes reconhecem essa utilidade. A estupidez é uma doença contagiosa.

Dois bons exemplos dessa estupidez são as opiniões generalizadas acerca de Pizzi e de William. Ainda que haja muita gente que, hoje em dia, lhes aprecia as qualidades (mal seria, se assim não fosse!), há muitos que ou os consideram relativamente banais ou acham que podiam ser melhores, se juntassem a tais qualidades algumas imprescindíveis que lhes faltam. Acerca dos primeiros, posso apenas lembrar que, desde que feito em condições de segurança, o suicídio é gratuito. A estupidez é, na maior parte dos casos, uma doença incurável, e assim sempre poupariam os ouvidos às pessoas saudáveis. Pizzi é o principal responsável - se não mesmo o único - pela actual liderança do Benfica. Em quase todos os jogos, têm sido dele as acções mais invulgares, os lances de maior génio. Fora as bolas paradas, e a qualidade invididual que abunda no plantel encarnado, tem sido o português a inventar os espaços, a ligar os sectores e a desorganizar as defesas contrárias. Do ponto de vista colectivo, tem sido destacadamente o jogador mais determinante do campeonato. Ao contrário do resto da equipa, cujas acções colectivas são do mais vulgar que pode haver, tudo o que Pizzi faz é feito em função de um benefício colectivo qualquer. Com e sem bola, é sempre uma parte de um todo antes de ser um jogador entre tantos, e quase tudo o que decide fazer é conforme àquilo que, no momento em que o faz, deveria de facto ser feito. Quando falha um passe ou perde uma bola, não o falha ou a perde geralmente nem por distracção, nem por uma má decisão; falha-o ou perde-a, isso sim, porque não o compreendem, porque queriam a bola no pé quando ele vira perfeitamente que era no espaço que ela deveria entrar, porque o colega que lhe devia dar a opção de passe não lha deu e ele teve de optar por uma de maior risco, ou de perder tempo à procura de outra, etc.. Enquanto um jogador normal (deixem-me utilizar o exemplo do André Horta, porque é muito bom do ponto de vista técnico e bastante inteligente) aproveita a desmarcação de um colega para lhe endossar a bola, assim dando continuidade à jogada como propõem os livros, Pizzi endossa-a de modo a que o colega fique em condições de fazer algo com ela a seguir (e não a endossa se perceber que, apesar de ser possível endossá-la, não há vantagem em fazê-lo). Como um xadrezista proficiente, não decide apenas em função das circunstâncias daquele exacto momento. Pelo contrário, pensa sempre por antecipação. Enquanto os outros vêem o que está a acontecer, e executam em função disso, ele levanta a cabeça, vê o que está a acontecer e imagina rapidamente o que vai acontecer a seguir. Quando entrega a bola a um colega, já percebeu quais as opções de passe que o colega vai ter quando a bola lhe chegar, e quais as possibilidades de êxito que terá; quando dá uma linha de passe e solicita a bola, já sabe que opções de passe terá quando a bola lhe chegar, e quais as condições de êxito de cada uma dessas opções. O melhor exemplo que conheço para ilustrar esta virtude, tão difícil de observar, é o segundo golo da Alemanha contra a Inglaterra, no mundial de 2010, do qual falei na devida altura. A forma como Thomas Müller, no momento em que toca na bola, antecipa toda a jogada, é exactamente aquilo que vejo Pizzi fazer frequentemente. Chamemos a essa virtude, como lhe chamei aquando desse texto, "criatividade". É essa criatividade que está na base do primeiro golo do Benfica contra o Braga, esta semana.



A maioria das pessoas concederá a Pizzi, nesse lance, a excelência técnica do apontamento de calcanhar. Eu acho que a virtude do lance está toda no modo como o transmontano, ao ocupar aquele espaço, entre o central, o lateral e os dois médios bracarenses, antecipa o desequilíbrio que tornará possível a situação de golo. Quando Pizzi invade esse espaço, não o faz apenas porque o lateral precisava de um apoio em quem soltar a bola; fá-lo porque, imaginando Gonçalo Guedes a ganhar vantagem sobre o lateral bracarense (como se haveria de verificar), sabe que, recebendo ali o passe, o pode redireccionar de imediato para a esquerda, assim criando um desequilíbrio imediato junto à faixa. Pode não antecipar toda a jogada, não antever que o central do Braga, ao aproximar-se de si no momento em que a bola lhe é passada, fará com que Gonçalo Guedes fique com espaço para ganhar a linha de fundo, mas também não ocupa o espaço, como a maioria dos jogadores, em quem a criatividade não abunda, apenas para que a bola lhe seja endossada. Quando Gonçalo Guedes atrasa a bola para Grimaldo, Pizzi tem já várias ideias acerca do que poderá fazer à bola quando ela lhe chegar (dominar e esperar pelo apoio, devolver de primeira ao lateral, ou colocar em Guedes na linha, etc.), e quando o espanhol se enquadra, algumas fracções de segundo depois, o transmontano já percebeu que a melhor decisão, das três acima mencionadas, será de facto jogar de primeira para Gonçalo Guedes, que entretanto ganhou a frente ao lateral. Pizzi antecipou o lance na medida em que ocupou antecipadamente um espaço cuja mera ocupação, no momento em que receber a bola, será decisiva para que o desequilíbrio se concretize. Ainda que, no momento em que decide ocupá-lo, o desequilíbrio não fosse evidente (era preciso que Gonçalo Guedes ganhasse a frente ao lateral bracarense e criasse aquela superioridade numérica, o que ainda não acontecera), a decisão de ocupá-lo contempla esse desequilíbrio futuro. Claro que, se tal desequilíbrio não se proporcionasse, a decisão a tomar, no momento em que recebesse o passe, seria outra. Mas o que está em causa é a capacidade de imaginar o desequilíbrio antes de ele acontecer. A criatividade é, antes de qualquer outra coisa, essa capacidade imaginativa. Pizzi faz uma leitura perfeita das circunstâncias, imagina o que ainda não aconteceu, e mexe-se em função daquilo que imaginou. Se, instantes depois, acontecer exactamente aquilo que antecipou que aconteceria, está em posição privilegiada para definir a jogada como pensou possível defini-la. O futebol de Pizzi é pensado como o pensam os melhores. Equaciona todas as possibilidades, mas imagina também o que vai acontecer de seguida. Num colectivo que esteja melhor trabalhado, com mais jogadores capazes de pensar bem à sua volta, será sempre mais influente do que é numa equipa que, colectivamente, é apenas o que os jogadores quiserem que seja. Apesar de continuar sem ser chamado à selecção, e de continuar a motivar assobios vindos das bancadas - por razões que só os seus detractores saberão - é, de longe, o melhor jogador português a actuar em Portugal. Já o era, aliás, o ano passado.

O caso de William Carvalho é parecido com o de Pizzi, mas mais fácil de explicar. O estilo pachorrento com que se desloca, a aparente falta de agressividade com que encara os duelos defensivos e o aparente desprezo com que efectua cada uma das suas acções transmitem a ideia de que não se esforça tanto quanto podia. E isso é algo que os adeptos, que vão ao estádio ou ficam agarrados ao televisor para ver quem está em campo a suar as estopinhas, não podem admitir. O crime de lesa-Majestade de William Carvalho, portanto, é o de conseguir fazer tudo bem dando a impressão de que, se quisesse, podia fazer ainda melhor. Nada mais falso. William faz bem o que faz porque o faz daquela maneira. O estilo é uma consequência da sua maneira de pensar o jogo. A pachorra, a pouca agressividade e o desprezo são indissociáveis da qualidade que coloca em cada jogada. Se se deslocasse mais rápido, se procurasse vencer os duelos individuais impondo o físico, se soltasse mais cedo e com mais afinco, não seria o jogador criterioso que é, nem teria o discernimento, a ponderação e a calma que lhe permitem jogar como joga. Um jogador de futebol não é um conjunto de atributos, aos quais se podem somar novos atributos de modo a melhorá-lo pela acumulação de atributos. Se William se modificasse e melhorasse naquilo que as pessoas julgam que pode melhorar, perderia as qualidades (pelo menos em parte) que fazem dele o jogador que é agora. Quando se pensa na pouca intensidade com que parece jogar, deve-se pensar no quanto essa pouca intensidade é parte do que ele é actualmente. A sua melhor qualidade é, a meu ver, o saber perfeitamente que é um ponto de partida (e não um ponto de chegada) da construção ofensiva. Como ponto de partida dessa construção, tem por missão descobrir a melhor linha de passe e fazer avançar o processo ofensivo, tão bem quanto possível, para uma segunda fase de construção. O critério com que decide é absolutamente fabuloso, e a exploração dos apoios verticais do melhor que há no mundo. William está sempre de olhos postos nos colegas que lhe estão à frente, no médio que se esconde temporariamente atrás da linha de pressão, no avançado que desce para tocar, no extremo que vem explorar o espaço interior. O modo como se concentra nas opções de passe que tem perto de si, ignorando provisoriamente as opções mais distantes, é fundamental para que o jogo interior do Sporting seja tão bom. É isso que lhe permite encontrar soluções que não as mais simples e seguras, dando a ilusão de que o faz com simplicidade e segurança. Raramente joga comprido, pelo ar, porque sabe que lhe compete apenas dar início a um processo de construção necessariamente elaborado, porque sabe que não deve queimar etapas, porque sabe que um bom passe vertical, a queimar linhas de pressão, é bem mais útil a uma equipa que privilegia o futebol apoiado do que um passe a explorar a profundidade. Quando a bola sai dos seus pés, a equipa obtém sempre alguma vantagem territorial ou consegue sempre desorganizar provisoriamente o bloco defensivo opositor. Se William fosse mais agressivo sobre a bola ou mais rápido a tomar uma decisão, não seria tão bom a encontrar as linhas de passe que encontra. E o Sporting de Jesus não seria tão competente como é a penetrar nos blocos defensivos dos adversários, a jogar dentre desse bloco, e a criar espaços interiores por onde atacar. É isto que as pessoas não compreendem.