Ainda sobre a ideia, sustentada em alguns dos últimos textos, de que o clima em que este mundial se jogou prejudicou não só o espectáculo em geral mas também, em particular, as equipas que fazem da organização táctica e da tomada de decisão os seus principais trunfos, expressa o Filipe Vieira de Sá,
no seu último texto, uma opinião que, além de me parecer conforme à opinião de muita gente, e por isso interessante de contradizer aqui, implica a crença de que o futebol é uma coisa que, a meu ver, não é ou não devia ser. Embora o Filipe aceite a ideia de que as condições climatéricas ajudam a explicar o que se passou no mundial, discorda do "pressuposto de que não estavam reunidas as condições para se jogar futebol", pois o futebol, na sua opinião, "é um jogo global, não pertence apenas à meia-estação europeia, e por esse mundo fora há várias equipas que jogam nas condições encontradas em certos estádios deste mundial". A implicação deste argumento não pode ser outra que não a de que os factores externos, na opinião do Filipe, fazem parte do jogo. Fica por saber, porém, se todos os factores externos ou se apenas alguns. Por exemplo, se o futebol é um jogo global e não se deve procurar organizar as principais competições internacionais apenas em sítios onde as condições climatéricas forem parecidas com as que se verificam a maior parte do ano no continente europeu, é aceitável jogar futebol, por exemplo, no Polo Norte? Poderia ridicularizar esta posição ainda mais, mas parece-me que não valerá a pena. Em vez disso, era importante que as pessoas tentassem responder a algumas questões. Por que será que os campeonatos, na Europa, são organizados para começar quando o Verão já está a terminar e para acabar antes de ele começar? Por que será que param alguns na altura em que o Inverno é mais rigoroso? Não será porque condições extremas de calor e frio prejudicam necessariamente o espectáculo? Por que é que não se joga quando o campo está alagado? Ou por que é que não se joga em pelados? Alguns clubes agradeceriam, certamente. E o nível de competitividade seria, garantidamente, superior.
Parece-me, claro, pelo menos para mim, que há condições mais propícias à prática do futebol do que outras e que a tendência tem sido, ao longo dos anos, a de tentar uniformizar essas condições. O tamanho dos campos, o tamanho do corte da relva, a qualidade dos relvados, as bolas com que se joga, o calendário anual das competições - tudo isto é hoje em dia mais uniforme do que foi no passado. Em benefício do espectáculo e da justiça desportiva, entendeu-se há muito tempo que era importante mitigar a relevância dos factores externos tanto quanto possível. Em nome da diversidade, o Filipe discorda desta ideia. A ele e às muitas pessoas que, como ele, acham que as características do futebol de cada país devem ser preservadas a todo o custo, não interessa nem a qualidade do espectáculo nem essa coisa estranha a que estou a chamar "justiça". Tenho muitas dificuldades em perceber o que é que considera entusiasmante no futebol quem pensa assim. Pessoalmente, tenho pouquíssimo interesse em ver jogos da segunda liga. Da mesma maneira, não encontro quaisquer razões estéticas para apreciar um desenho de uma criança. Se quero ver futebol, tento ver as melhores equipas e os melhores jogadores; se quero ver pintura, vou ao Prado ou ao Louvre. Achar que é mais importante preservar a diversidade de estilos e de características do que atenuar a injustiça que consiste em jogar futebol quando os factores externos são mais decisivos do que a competência das equipas é não gostar de futebol; é gostar de cultura. Eu acho bonito que se goste de cultura, e também acho bonito que se queira preservá-la. Mas preservem-na em museus, em livros de História, ou na memória colectiva.
Num jogo que consiste essencialmente em pôr frente a frente duas forças, parece-me lógico, além de justo, que os melhores a jogá-lo sejam aqueles que forem capazes de derrotar as forças adversárias unicamente por serem mais fortes do que elas. Parece-me ser o pressuposto, aliás, do próprio conceito de jogo. Num jogo de tabuleiro como o xadrez, por exemplo, os factores externos não têm praticamente peso nenhum. Em xadrez, ganha quem é melhor. Em futebol, não só não é assim como é ingénuo pensar que algum dia possa vir a sê-lo. É um jogo diferente, em que os factores externos (a sorte, o clima, os árbitros, etc.) terão sempre alguma importância. Mas isso não invalida que eles não devam ser reduzidos ao máximo. Claro que devem. Não faz sequer sentido entender o futebol como jogo se não se aceitar isto. Em desportos de pavilhão, por exemplo, o factor externo do clima não tem qualquer importância. Enquanto jogos, o basquetebol, o andebol, o voleibol e outros que tais são sem dúvida desportos mais justos. No ténis, pelo menos em alguns torneios, a simples presença dos primeiros pingos de chuva é suficiente para interromper um desafio. É verdade que essas interrupções têm por principal motivação o espectáculo e a preservação da integridade física dos atletas, mas é fácil de perceber que, por exemplo, jogar à chuva em terra batida não é jogar em terra batida. Da mesma maneira que, estando a chover em Roland Garros, um especialista em terra batida perde a vantagem que tem para um adversário que não o seja, também as equipas de futebol mais competentes perdem a vantagem que têm para as outras, se não estiverem reunidas as condições suficientes para que possam pôr em prática essa competência.
Temperaturas extremas, velocidades do vento muito elevadas, níveis de humidade altos, nevoeiros cerrados, chuvas intensas e níveis de oxigénio reduzido, em altitude, são algumas das condições atmosféricas que condicionam a qualidade dos jogos e diminuem as diferenças entre as boas e as más equipas. Tal como o ciclismo é um desporto de Verão, pelas razões que facilmente se entendem, o futebol é um desporto de Inverno porque o espectáculo é necessariamente melhor no Inverno. Ninguém, estando de perfeita saúde, contesta isto. Condições externas invulgares na Europa não tornam apenas o jogo diverso; tornam-no pior. Tornam-no pior porque, nessas condições, as melhores equipas deixam de ser capazes de fazer uso dos argumentos pelos quais são as melhores equipas. Níveis de humidade muito altos e temperaturas demasiado altas, as principais características que, a meu ver, prejudicaram a qualidade do campeonato do mundo e algumas das melhores equipas que lá estiveram, tendem a provocar um desgaste, a curto, médio e longo prazo, que é incompatível com a melhor prática do jogo. O que é que interessa que essas sejam as condições em que se joga normalmente em muitas partes do globo? Que os factores externos tenham um peso mais relevante em alguns lugares da América do Sul do que têm na maior parte dos países europeus e que, por isso, o futebol que se joga nesses lugares tenha menos qualidade e seja menos justo do que o futebol que se joga na Europa é razão suficiente para afirmar que o futebol em alguns lugares da América do Sul é menos interessante (entendendo que o interesse do jogo depende intrinsecamente da sua qualidade e da justiça a que se presta) do que o futebol que se joga na Europa. É por este motivo, essencialmente, que me parece que as grandes competições deviam evitar ao máximo a sujeição a essas condições. No Brasil, talvez bastasse abdicar de duas ou três das regiões em que se jogou e escolher melhor as horas do dia. Além disso, talvez também não fosse má ideia estender a competição por mais duas semanas, espaçando assim mais os jogos que cada equipa disputa e permitindo-lhes uma melhor recuperação de jogo para jogo. Se assim tivesse sido, não haveria com certeza tantas surpresas e tantas anormalidades, o que, para muita gente, é um defeito. Mas as poucas que houvesse seriam muito mais motivadas pelo mérito ou pelo demérito das equipas. Quem quer que goste de futebol, e que goste pelas razões certas, tem de preferir um campeonato assim.