1. Um jogo, mesmo um que acaba tão desnivelado, tem história. E a história deste não se resume a dizer que a equipa que ganhou esmagou a outra. E não se resume a isso porque é falso. A Espanha foi claramente superior durante toda a primeira parte, podia ter praticamente acabado com o jogo no lance imediatamente anterior ao lance do empate holandês, e só quem for muito estúpido (como parece que é quase toda a gente que tem falado do jogo) é que pode achar que o resultado final diz alguma coisa acerca da verdadeira qualidade das duas equipas.
2. É especialmente embaraçoso verificar todos os elogios que se têm feito à equipa holandesa, por contraste a tudo o que se tem dito dos espanhóis, se nos lembrarmos de que os holandeses não marcaram um único golo em que se possa dizer que tenham tido, de facto, algum mérito (falo de mérito colectivo). Os 5 golos holandeses resultam integralmente de erros individuais: três de Sergio Ramos, um de Casillas e um do árbitro. É verdade que, às vezes, os erros são provocados pelo adversário, e é verdade que, às vezes, uma boa jogada pode preceder esse erro. Não foi, de todo, o caso. Os primeiros dois golos são cruzamentos do meio-campo, com Sergio Ramos a dormir, encostado a Jordi Alba quando devia estar a fechar no meio, a 5/6 metros de Piqué, no máximo; o terceiro é um lance de bola parada; o quarto nem vale a pena dizer nada; e mesmo o quinto, cuja transição os comentadores de serviço tanto gabaram, só é possível porque Sergio Ramos, além de estar mal colocado de início, não faz falta quando pode e perde em velocidade. De resto, dizer que um lance de contra-ataque que consiste num único passe representa uma transição notável, enfim, é chamar estúpido a quem percebe alguma coisa do assunto.
3. A comunicação social é composta - perdoe-se o latim - por uma cambada de energúmenos. É verdade que Casillas facilitou na final da Liga dos Campeões, e é verdade que facilitou ontem. Mas quando salvou o Real Madrid em Dortmund, só para dar um de muitos exemplos, onde estavam os que agora dizem, de peito feito e contentes por serem portuguesinhos, que José Mourinho é que sabia, quando o decidiu afastar da equipa? De resto, falar de Casillas num jogo em que Sergio Ramos foi o melhor em campo pelos holandeses faz-me alguma confusão. Casillas falhou no quarto golo, quando toda a equipa (e ele próprio, porque foi o principal injustiçado no lance do terceiro golo) estava completamente desnorteada, e a falha dele foi de natureza técnica, o que é muito mais perdoável que outro tipo de falhas.
4. Sergio Ramos falhou porque não sabe o que é defender à zona, uma linha defensiva ou, em suma, uma equipa de futebol. Veja-se onde anda Sergio Ramos antes de Daley Blind fazer o passe, em qualquer um dos lances dos dois primeiros golos, e percebe-se tudo o que há para perceber acerca desses golos. Piqué está onde deve estar, dado que o lance decorre junto a uma linha. Sergio Ramos está onde, na melhor das hipóteses, deveria estar o lateral do lado oposto. Ter no eixo da defesa quem cometa erros tão grosseiros como estes dois é meio caminho andado para criar a ilusão de que se tem uma equipa fraca.
5. O que disse a respeito das goleadas impostas pelo Bayern de Munique o ano passado ao Barcelona, assim como o que disse a respeito da goleada imposta pelo Real Madrid este ano ao Bayern de Munique, vale para falar deste jogo. Em muitos casos, uma goleada não representa nem a verdadeira diferença entre as duas equipas nem a verdadeira diferença entre o que elas fizeram ao longo dos 90 minutos. Explica-se, essencialmente, falando de motivação e concentração. Alguém, no seu perfeito juízo, diria ao intervalo que o resultado justo era uma goleada a favor dos holandeses? Alguém diria, sequer, que os holandeses mereciam estar empatados? Por que raio é que, durante os primeiros 45 minutos, os comentadores se fartaram de elogiar a Espanha e de tecer considerações acerca da eventual vitória dos espanhóis, e terminaram o jogo a falar em escândalo? Que raio de estupidez é esta que consiste em dizer exactamente o contrário do que se dissera 45 minutos antes e, ainda assim, se achar que se está a formular um discurso coerente? Como é que se pode chegar ao final de uma partida em que se disseram coisas tão contraditórias e afirmar que o resultado final é perfeitamente ilustrativo do que se passou nos 90 minutos? Está tudo doido? O resultado desnivelado, como qualquer resultado, não espelha nada do que se passou nos 90 minutos. Explica-se por um ou dois detalhes, que mudaram inteiramente as coordenadas da partida. Silva falha o 2-0 e Van Persie empata no lance seguinte, quando a Holanda nada fizera para isso; a abrir a segunda parte, sem mérito algum, uma vez mais, Robben aparece em posição privilegiada e faz o 2-1. Quando os espanhóis começam a reagir, sofrem o terceiro, num lance ilegal. Ainda conseguem reagir, chegando mesmo a criar algumas situações, mas o desnorte apoderara-se deles, e Casillas oferece o quarto. Em poucos minutos, tinham passado de uma situação de vantagem para uma situação inesperada. Para além da desmotivação e do desnorte, cria-se naturalmente uma sensação de impotência que conduz à apatia. Dizer o que quer que seja a propósito do real valor destas duas equipas num jogo assim é, no mínimo, irresponsável. E fazer prognósticos a propósito do resto do campeonato com base num desafio destes é francamente estúpido.
6. É talvez importante pensar acerca dos motivos pelos quais, nos últimos tempos, tantas equipas que baseiam o seu jogo em posse têm sido goleadas. A meu ver, é relativamente simples percebê-lo. Em equipas que se arrumam de forma mais conservadora, o tipo de apatia que descrevi antes não faz tanta mossa. Em equipas que jogam como a Espanha, com muito espaço nas costas da defesa e muitos jogadores dentro do bloco adversário, essa apatia leva a que se concedam oportunidades de golo atrás de oportunidades de golo. Ser goleado como a Espanha foi não é, pois, tão grave como isso. É apenas sinal de que a apatia, em equipas que assumem o jogo como os espanhóis assumem, tende a conduzir a resultados desnivelados. Nestas circunstâncias, ser goleado parece-me tão normal como não sê-lo.
7. Esta equipa holandesa, não obstante a competência do seu treinador, é talvez a mais fraca, em termos individuais, de que tenho memória. Falar no regresso da Laranja Mecânica é, por isso, francamente insultuoso. É verdade que, por todas as razões, este não é o melhor jogo para tirar ilações acerca do que poderão os holandeses fazer daqui para a frente, mas de uma equipa em que se aproveitam apenas o lateral esquerdo, Daley Blind, e os dois atacantes, Robben e Van Persie, acho difícil esperar grandes feitos. Posso estar muito enganado - e Van Gaal é suficientemente astuto para esconder as debilidades da sua equipa - mas acho que a única convicção com que fiquei depois desta goleada, ao contrário de todas as convicções com que ficaram as outras pessoas, foi a de que a Holanda não é candidata ao título.
8. Quanto à candidatura da Espanha, mantenho a mesma opinião que tinha antes de começar o campeonato. São a equipa mais poderosa em prova e os seus principais adversário serão, como já eram antes, as condições climatéricas e o desgaste que vier a acumular devido a essas condições. É verdade que a goleada é perigosa, até porque não me parece que a Holanda venha a ter facilidades para vencer o Chile, mas as aspirações espanholas continuam intactas. De resto, é até possível que tal derrota (e pelos números que foi) fira suficientemente o orgulho dos jogadores para que os espevite para o que aí vem. Há 4 anos, quando sugeri que a Espanha, após ter perdido o primeiro jogo com a Suíça, continuava a ser o principal candidato à vitória final, baseie a minha convicção naquilo em que as convicções devem ser baseadas, ou seja, na razão. E a razão, ao contrário do resultado desnivelado com o qual tanta gente tem exultado, diz-me que é estúpido achar que uma goleada sofrida, ainda por cima pelos motivos acima aduzidos, altera o valor da equipa que a sofre.
7. Esta equipa holandesa, não obstante a competência do seu treinador, é talvez a mais fraca, em termos individuais, de que tenho memória. Falar no regresso da Laranja Mecânica é, por isso, francamente insultuoso. É verdade que, por todas as razões, este não é o melhor jogo para tirar ilações acerca do que poderão os holandeses fazer daqui para a frente, mas de uma equipa em que se aproveitam apenas o lateral esquerdo, Daley Blind, e os dois atacantes, Robben e Van Persie, acho difícil esperar grandes feitos. Posso estar muito enganado - e Van Gaal é suficientemente astuto para esconder as debilidades da sua equipa - mas acho que a única convicção com que fiquei depois desta goleada, ao contrário de todas as convicções com que ficaram as outras pessoas, foi a de que a Holanda não é candidata ao título.
8. Quanto à candidatura da Espanha, mantenho a mesma opinião que tinha antes de começar o campeonato. São a equipa mais poderosa em prova e os seus principais adversário serão, como já eram antes, as condições climatéricas e o desgaste que vier a acumular devido a essas condições. É verdade que a goleada é perigosa, até porque não me parece que a Holanda venha a ter facilidades para vencer o Chile, mas as aspirações espanholas continuam intactas. De resto, é até possível que tal derrota (e pelos números que foi) fira suficientemente o orgulho dos jogadores para que os espevite para o que aí vem. Há 4 anos, quando sugeri que a Espanha, após ter perdido o primeiro jogo com a Suíça, continuava a ser o principal candidato à vitória final, baseie a minha convicção naquilo em que as convicções devem ser baseadas, ou seja, na razão. E a razão, ao contrário do resultado desnivelado com o qual tanta gente tem exultado, diz-me que é estúpido achar que uma goleada sofrida, ainda por cima pelos motivos acima aduzidos, altera o valor da equipa que a sofre.
9. Em que medida é que pessoas que exultam com a goleada sofrida pelos espanhóis ante os holandeses (e têm sido inúmeros, desde anónimos a pessoas que, de acordo com um determinado código, deviam ser um bocadinho mais isentas) são diferentes de pessoas para quem o mundo estaria melhor sem Shakespeare? E em que medida é que pessoas assim se distinguem das pessoas que, a dada altura, acharam que o mundo estaria melhor sem judeus? Não é exagero; exultar com o que se passou ontem é parecidíssimo com exultar com câmaras de gás. Ficar contente perante a perspectiva de a melhor coisa que já aconteceu ao futebol poder finalmente desaparecer é, deste ponto de vista, mais ou menos o mesmo que bater palmas a um genocídio. É de congratular a ignorância com que o faz quem o faz. A Humanidade está de certeza orgulhosa de vocês!