O espanto com a definição do lance tem sobretudo a ver com a imprevisibilidade do seu desfecho. E é por aqui que começo. De facto, ninguém esperava que Ronaldo, de costas, sem se virar, tentasse alvejar a baliza. Por si só, a imprevisibilidade é, obviamente, uma grande arma. Na minha opinião, no entanto, essa imprevisibilidade só deve ser alvo de admiração se de facto lhe corresponder algo genial, algo que surpreendesse o adversário fosse qual fosse o desfecho. O que estou a tentar dizer é que não é a imprevisibilidade do desfecho que merece reconhecimento, mas a imprevisibilidade da acção em si. E, honestamente, o golo de Ronaldo só gerou admiração porque a bola, realmente, entrou na baliza. Se não tivesse entrado, como seria o mais provável, a tentativa não seria senão um disparate de todo o tamanho.
Isto das más decisões tem obviamente muito que se lhe diga. Para aqueles que não lhes dão importância, o que interessa é que a bola entrou, o que interessa é que o resultado dessa decisão, por imprevisível, foi bonito. O problema dessas pessoas é a importância excessiva que dão ao resultado das acções, e não às acções em si. A probabilidade de aquele coice dar golo era baixíssima. Diria até que a probabilidade de aquele coice dar golo era mais baixa do que se Ronaldo tivesse dado um pontapé na direcção de Casillas, de modo a iniciar nova jogada de ataque do Real. No entanto, deu golo. Será isso motivo de aplauso? A meu ver, não. Da mesma forma que um autogolo não é festejado como um grande golo, um golo fortuito também o não deveria ser. Mas como foi de calcanhar, como ninguém esperava aquilo, transformou-se uma banalidade num lance de génio. Ronaldo não foi genial; foi disparatado. Acontece que em futebol, por vezes, um disparate é facilmente confundido com uma genialidade.
O golo de Ronaldo garantiu a vitória do Real Madrid, em mais um jogo francamente mau do Real Madrid. Como em muitos outros jogos desta época, o Real voltou a vencer sem fazer o suficiente para isso. O próprio Mourinho reconheceu que o resultado mais justo, nessa partida, teria sido o empate. Aliás, já nos descontos, o Rayo Vallecano desperdiçou um lance óptimo para empatar a partida, com um avançado a falhar a emenda a menos de um metro da linha de golo, sem ninguém pela frente. O coice de Ronaldo é pois a melhor imagem possível de muito do que tem sido a época do Real Madrid. É verdade que, em muitos jogos, o Real jogou bem e mereceu vencer. Ainda no passado fim-de-semana, frente à Real Sociedad, mereceu amplamente o resultado obtido. Mas as exibições da equipa não foram minimamente regulares, ao contrário do que o ciclo de vitórias consecutivas sugeria. Em muitas ocasiões, o Real venceu apenas porque sim, porque os adversários falharam em momentos chave, porque os árbitros ajudaram, porque as vicissitudes do acaso estiveram do seu lado, porque, substituindo-se à inspiração, um coice qualquer fez entrar uma bola que não entraria de outro modo.
Já o disse várias vezes, e volto a dizê-lo: acho difícil que uma equipa, sobretudo num campeonato como o espanhol e com um adversário como o Barcelona, consiga ser campeã dependendo tanto e tantas vezes de factores como estes, mas a verdade é que, quando o Real venceu esse jogo (na altura, mantendo a distância de dez pontos), pensei que talvez aquele coice fosse o sinal de que, esta época, tudo os protegeria. Como é evidente, há sempre excepções à regra, e se, depois de ganhar vários jogos que não merecia, até com um coice o Real evitava perder dois pontos, talvez fosse prudente reconhecer que, este ano, mesmo não o merecendo, o ceptro iria para Madrid. Algumas semanas depois, porém, o Real começou a perder os pontos que deveria ter começado a perder há muito mais tempo. Em mais dois jogos em que não fez absolutamente nada para sair vencedor, eis que viu a vantagem emagrecer para 6 pontos (sabendo ainda que tem de ir a Camp Nou). Se, na altura, aquele coice me fez pensar que este ano nada os faria cair, agora já não tenho tantas certezas. Sendo verdade que o Barcelona tem no próximo fim-de-semana, entre dois jogos europeus difíceis com o Milan em 6 dias, a recepção sempre perigosa ao Athletic de Bilbao, o calendário do Real Madrid até à deslocação à Catalunha é muito mais complicado: deslocação a Pamplona para defrontar o Osasuna, actual sexto classificado (onde o Barça, por exemplo, perdeu), recepção ao Valência, e deslocação ao Vicente Calderón, três dias apenas depois do jogo com o Valência, para enfrentar um Atlético de Madrid muitíssimo agressivo, desde que Diego Simeone tomou o comando da equipa. A menos que mantenha a vantagem actual de 6 pontos até ir a Camp Nou, o que implicaria passar com distinção em qualquer um dos jogos acima referidos, o campeonato está agora longe de estar decidido. Mais do que nunca, até porque o Real terá ainda de ir a Bilbao, a equipa de Mourinho precisa de coices como o do jogo com o Rayo Vallecano para continuar a ser o principal favorito à vitória final. O mês de Abril será, para essas contas, certamente decisivo.