domingo, 30 de outubro de 2011

Dois Lances

O Chelsea perdeu ontem em casa com o Arsenal por 5 a 3, num jogo esquisito, com mais incidências do que aquelas que certamente André Villas-Boas desejaria. A primeira parte foi, na maior parte do tempo, dominada pelo Chelsea, mas na segunda o Arsenal mandou no jogo e acabou por justificar a vitória. Os comentadores de serviço passaram os 90 minutos a maldizer o Arsenal, a falar da falta de competitividade da equipa, do mau arranque de campeonato, dos insucessos dos últimos anos. Esquecem-se que a equipa de Wenger, apesar de não ganhar nada há algum tempo, andou a lutar com Manchester e Chelsea nos últimos anos, até às últimas jornadas, pelo campeonato, e com um orçamento francamente inferior. Este ano, o campeonato começou pior e muitos apressaram-se a dizer que era o fim da era do francês. Esquecem-se, uma vez mais, que o Arsenal perdeu Fabregas e Nasri, que praticamente ainda não pôde contar com Wilshere, Diaby e Vermaelen, e que, por exemplo, na goleada sofrida em Old Trafford, jogava sem oito habituais titulares. Ontem, frente ao Chelsea, apesar de todos os problemas defensivos que a equipa continua a ter e que justificam a sua incapacidade para se superiorizar aos adversários mais poderosos, o Arsenal voltou a mostrar por que não pode ser tão facilmente descartado das contas do título. É que não há equipa, em Inglaterra, com princípios ofensivos tão interessantes como os "gunners".

Trago os lances do primeiro e do segundo golo do Arsenal, o primeiro para mostrar como é evoluída, ofensivamente, a equipa de Wenger, e o segundo para pôr em evidência um erro individual primário em que não se parece ter reparado e que permitiu que o Arsenal regressasse ao jogo. Chamo ainda a atenção para os comentários feitos pela equipa inglesa, no vídeo, e para a incongruência dos mesmos, criticando os defesas no primeiro golo do Chelsea e no primeiro golo do Arsenal por não terem marcado em cima o avançado, e criticando igualmente Bosingwa no segundo golo do Arsenal por ter saído da sua posição para ir marcar em cima o avançado. Vamos aos lances.



O primeiro golo do Arsenal é uma boa demonstração de como o futebol vai evoluir no futuro. Na altura, disseram os comentadores que o Chelsea deixou o Arsenal jogar, e que, portanto, o primeiro golo surgiu na sequência de certa permeabilidade defensiva. Não concordo com isso. A equipa de Villas-Boas está bem organizada, e é suficientemente agressiva a tentar condicionar o portador da bola e a efectuar a zona de pressão central. Se há, no momento em que Ramsey recebe a bola, algum espaço entre linhas é porque Mikel acabara de tentar tirar a bola a Gervinho, ligeiramente à frente. Mas veja-se que é Fernando Torres quem vem tentar fechar a linha de passe. O Chelsea não poderia estar mais compacto. O que aconteceu foi que o Arsenal soube arranjar os espaços de penetração certos, e nesse capítulo não há outra equipa igual em terras de Sua Majestade. Ramsey vem do espaço interior para receber e Gervinho, que antes atraíra Mikel para a zona dos médios, deixando o espaço entre linhas momentaneamente desprotegido, vai explorar esse espaço. Ramsey utiliza-o e Gervinho fica isolado, oferecendo o golo a Van Persie. Há quem diga que atacar pelo meio é errado, e que se devem explorar as alas para abrir brechas no bloco contrário. O Arsenal mostra que não é bem assim, que mesmo contra um bloco muito compacto e organizado, é possível, com toques curtos e sabendo aproveitar o espaço entre as diferentes linhas do adversário, forçar o bloco a abrir pequenos buracos pelo centro. Claro que isto, para resultar, tem de ser feito com muitos toques, com muito rendilhado. Atacando pelo meio, o truque consiste precisamente em tocar e devolver, para desposicionar o adversário, para se trazer os jogadores adversários para onde se pretende, criando espaços nas zonas que mais nos convêm.

O segundo golo do Arsenal é diferente e, embora não haja, como foi sugerido pelos comentadores da Sporttv, sempre empenhados em dizer disparates, problemas colectivos alguns, há um erro individual que compromete todo o lance. É pena que a câmara aérea, neste vídeo, abra apenas no momento em que Song faz o passe. Uns instantes antes serviriam para se verificar que a equipa de Villas-Boas está extraordinariamente bem posicionada, toda praticamente do lado esquerdo do campo, onde se desenrola a jogada, com todos os espaços bem fechados, utilizando a linha lateral para asfixiar os comandados de Wenger. A pressão é, também ela, bem executada, obrigando o Arsenal a recuar, por não ter soluções ofensivas nem espaço entre linhas a explorar. Colectivamente, a resposta da equipa não podia ter sido melhor, neste lance. Lampard obriga Djorou a dar no apoio recuado, Ramires obriga Song a rodar sobre si, mas depois aparece André Santos, o lateral esquerdo, completamente isolado na esquerda. Colectivamente, o Chelsea defendeu-se o melhor que podia. Não houve mau posicionamento, nem falta de agressividade, uma vez mais. Houve, contudo, um erro primário de Bosingwa, que foi atrás de Gervinho para o espaço entre linhas, não mantendo a linha defensiva, e desguarneceu o seu flanco, por onde o Arsenal acabou por entrar. Um passe do trinco que deixa o flanqueador na cara do guarda-redes, num lance de ataque organizado, só é possível com erros deste tipo. Bosingwa não cumpriu o seu papel no lance, que era de defender perto de Ivanovic, mantendo-se na mesma linha, e sentiu necessidade de ir atrás do seu opositor directo. Isso permitiu à equipa de Wenger, cujo lance ofensivo fora muito bem condicionado pela pressão colectiva dos jogadores do Chelsea, chegar facilmente a uma ocasião de golo. Bosingwa tem atributos atléticos notáveis, mas a má leitura que faz de grande parte dos lances continua a impedir que seja um lateral de eleição.

De resto, creio que ainda é cedo para tecer conjecturas acerca do futuro de André Villas-Boas. Mas passou já tempo suficiente para que se possa fazer uma análise do seu trabalho até ao momento. A intenção é clara e passa por tornar o Chelsea uma equipa mais competente na gestão da bola, mais dominadora com bola, mais autoritária. No entanto, parecem-me faltar soluções colectivas, no momento ofensivo, para que isso possa ser feito com mais eficácia. E parece também que, perante as adversidades, Villas-Boas não tem insistido muito para que a equipa se mantenha fiel aos seus princípios. A inclusão das dinâmicas de Mata no onze são, para já, a única boa notícia no futebol ofensivo da equipa. Torres não é um avançado que se sinta bem entre os centrais, e o Chelsea ainda não conseguiu tirar partido dos seus abaixamentos. O espaço entre linhas continua a ser pouco povoado (geralmente apenas por Mata) e a equipa, embora com mais bola, continua com índices de criatividade muitíssimo baixos. Talvez fosse útil, como resposta a este momento, perceber não só onde se errou, mas de que modo é possível melhorar. E aí a resposta pode estar precisamente no modo em que o Arsenal explora os espaços ofensivos. Neste momento, estas duas equipas parecem estar fora da corrida do título, que para já tem nos dois clubes de Manchester os mais sérios candidatos. Mas o campeonato inglês é longo e não é crível que as diferenças actuais não possam ser recuperadas. Colectivamente, a forma como o Chelsea defende, apesar dos cinco golos (não esquecer que houve erros individuais, escorregadelas e incidências esquisitas), é já muito boa, a meu ver, e a equipa tirará dividendos disso no futuro. Se for capaz de evoluir, em termos colectivos, no que diz respeito ao capítulo ofensivo, aproximando-se daquilo que o Arsenal faz, por exemplo, talvez possa, no final, estar de facto a discutir o campeonato inglês.

domingo, 23 de outubro de 2011

De quem é a Responsabilidade?

O lance é o do segundo golo do Braga no jogo que opôs a equipa comandada por Leonardo Jardim ao Feirense, este Domingo, e o exercício que proponho é a análise da perda de bola que origina o golo. Trago o lance à discussão precisamente porque a esmagadora maioria das pessoas, em lances deste tipo, nem pensa duas vezes: se aquele que transporta a bola a perde, seja por uma má decisão, seja por um mau passe, seja por que razão for, a responsabilidade deve ser-lhe imputada. Discordo, obviamente, desse tipo de generalizações, e há lances em que as responsabilidades não podem nem devem ser tão facilmente atribuídas. Este é um deles.



Começo por explicar a jogada, pois o vídeo não a mostra na sua totalidade. Diogo Rosado recebe um passe à queima, e acaba por se conseguir desenvencilhar da alhada em que o meteram, mas o pior estava ainda para vir. Obrigado a flectir para a esquerda, no meio de vários jogadores bracarenses, devia ter recebido apoios e linhas de passe imediatamente. Mas tal não sucedeu. No momento em que o vídeo começa, parece que Diogo Rosado teria tido tempo para jogar na frente, entre os dois médios do Braga, mas ao se libertar anteriormente (coisa que o vídeo não mostra) perdeu espaço de execução, e quando voltou a tocar na bola já só podia fazer um passe recuado ou lateralizado. Perante isto, o único apoio que tinha perto, o médio-defensivo Varela, inicia subitamente um movimento vertical, passando à frente de Diogo Rosado e forçando-o a ficar com a bola (é neste momento que o vídeo começa). Não sei o que passou pela cabeça de Varela, até porque a sua posição em campo implica o fornecimento de constantes coberturas e apoios recuados aos médios mais ofensivos, mas esse movimento absurdo foi decisivo não só para a perda de bola como depois para o deficiente posicionamento da equipa na resposta à perda. Mas há mais. Impossibilitado de jogar curto no colega que lhe deveria ter dado um apoio recuado, Diogo Rosado ficou apenas com uma opção de passe: precisamente a do lateral-esquerdo. Agora veja-se o que fez Stopira. Vendo terreno livre à sua frente, desatou a correr pelo flanco, e ignorou o mais básico dos princípios de um jogador sem bola: dar uma linha de passe. Em vez de oferecer um apoio lateral, permitindo que a bola entrasse no flanco, foi-se "esconder" no espaço em que a bola jamais entraria, pois a posição de Alan assim o inviabilizava. Diogo Rosado, obrigado a decidir rapidamente, acabou por respeitar o movimento inadequado do colega, e a bola embateu em Alan. Entre esse momento e o remate vitorioso do brasileiro pouco mais havia a fazer.

Como comecei por dizer, pouca gente hesitará na hora de atribuir responsabilidades. Diogo Rosado perdeu a bola, logo a responsabilidade foi dele. Quim Machado não o disse, mas referiu-se ao lance como uma "infelicidade nossa", e tenho quase a certeza que sei quem vai pagar as favas por essa infelicidade. Para os que gostam de fazer continhas e acham que o futebol é matemática, este é um lance como tantos outros. A Diogo Rosado atribui-se uma perda de bola, a responsabilidade por um desequilíbrio defensivo, e a Varela e a Stopira não se atribui nada, porque não tiveram participação na jogada. Até por isto, este é um bom lance para demonstrar a fragilidade das continhas de matemática. Na minha perspectiva, qualquer análise séria ao lance não pode deixar de perceber o erro grosseiro quer de Varela, quer sobretudo de Stopira. Talvez Diogo Rosado pudesse ter sido mais rápido a decidir, não sei. A jogada começou embrulhada e ele acabou por ter de reinterpretar tudo após sair do meio de dois adversários. Não era fácil ter sido mais rápido. O que não pode acontecer é a infantilidade que se seguiu, até porque ele não se precipitou e fez o melhor para a equipa, tentando manter a bola controlada. O primeiro colega passa-lhe à frente, em vez de ter ficado quietinho. Por alguma razão se ensina a miúdos de 6 ou 7 anos que nunca se deve passar à frente do portador da bola. Neste caso, não só Diogo Rosado deixou de ter atrás de si alguém a quem, em último caso, podia recorrer, como terá, com toda a naturalidade, ficado momentaneamente baralhado. Mas o pior de tudo, a meu ver, é o movimento do lateral. É que o jogo está a vir para a esquerda e é evidente que a bola vai ser endossada ao lateral. Mas este, em vez de esperar o passe, inicia uma corrida sem nexo e deixa o portador da bola sem outra solução que não improvisar. Não podendo fazer o passe lateralizado, que deixaria a bola nas costas do lateral, que já arrancara, Diogo Rosado tentou a última coisa que poderia ter tentado: fazer a bola passar por baixo de Alan, com todos os riscos implicados. O resultado foi o que se viu.

Como já se deve ter percebido, não só não concordo com a ideia de que a responsabilidade da perda de bola é unicamente de Diogo Rosado, como não acho que ela deva sequer ser repartida entre Diogo Rosado e os colegas que não lhe deram os devidos apoios. A responsabilidade é toda de quem falhou o fornecimento de apoios e ignorou as linhas de passe. Quem tem a bola tem a responsabilidade de decidir o melhor possível, claro. Agora, se os colegas impossibilitarem uma boa decisão, a responsabilidade de uma eventual má decisão é toda dos colegas. Se um jogador fica sem possibilidade para fazer um passe, se todos os colegas negligenciam aquilo que devem fazer quando estão sem bola, ou seja, fornecer linhas de passe, a responsabilidade nunca é do portador da bola. Quem vê futebol com pouca atenção, é natural que veja na acção de um passe apenas a decisão do jogador que faz o passe. Eu não penso assim. Um bom passe depende de uma boa decisão, de uma boa execução, mas evidentemente também das linhas de passe e das desmarcações dos colegas. Como levo bastante a sério a questão dos apoios e este é um assunto que me é bastante caro, não tenho quaisquer dúvidas em dizer o que vou dizer de seguida: com colegas idiotas, que não percebem sequer a absoluta necessidade de uma linha de passe, dificilmente um grande jogador adquire o reconhecimento que lhe é devido. Neste caso específico, o que o lance demonstra, para além de tudo o que já disse, é que o futebol não é um jogo assim tão simples de interpretar, e que muitas vezes aquilo que é mais evidente é, na realidade, totalmente falso. É por estas e por outras que as pessoas têm tantas opiniões equivocadas acerca do jogo, e é também por coisas deste tipo que métodos científicos de aferição de rendimentos individuais são ou muitíssimo imperfeitos, ou francamente desonestos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Certezas (24)

Dizer que faz lembrar Kaká é pouco. Foi o jogador que mais me impressionou no recente mundial de sub-20, e impressionou-me sobretudo por conseguir misturar no seu jogo as competências técnicas com um nível de maturidade muitíssimo aceitável para a sua idade. Não era o jogador mais vistoso da sua selecção, nem aquele sobre quem recaíam maiores expectativas. Mas pareceu-me sempre o mais esclarecido de todos eles. Quando faltava o espaço, argumento necessário para que outros pudessem brilhar, a sua clarividência mantinha-se intacta. Se não o tinha, arranjava-o. Sempre de cabeça levantada, muito rápido a decidir e a executar, e veloz também a conduzir a bola, pareceu sempre poder modificar as coordenadas de um jogo, assim lhe apetecesse. Foi exactamente o que fez na final do torneio, onde por fim lhe foi prestado o devido reconhecimento. É apesar dessa final, e apesar das razões pelas quais acabou por ser reconhecido, que acho que o seu valor deve ser entendido. Marcar golos e contribuir de forma evidente para o sucesso da sua equipa foi apenas o somar de muitas outras coisas. Gostei sobretudo do privilégio pelo passe vertical, sempre a procurar os apoios frontais dos colegas, e a preocupação em solicitar os companheiros nos espaços entre linhas. Não há muitos jogadores, mesmo os mais dotados tecnicamente e os mais arrojados, que optem tantas vezes pelo passe vertical rasteiro para progredir. Normalmente, quando os espaços estão fechados, a opção é circundar o bloco adversário, fazer a bola chegar aos extremos de modo a que estes desequilibrem individualmente ou de modo a que, esperando pelo lateral, possam criar situações de superioridade numérica no flanco. Ele, porém, pareceu sempre perceber que há mais soluções do que as óbvias. E pareceu sobretudo perceber que progredir pelo centro é sempre uma opção válida, desde que se saiba como. Tivesse nos colegas companheiros capazes de entender o jogo tão bem como ele e teria dado ainda mais nas vistas. Não sei o que o futuro lhe reserva, principalmente porque o futuro de jogadores que se destacam pelos seus atributos intelectuais é sempre mais incerto do que o futuro de outro tipo de jogadores. Acho que tem qualidade mais do que suficiente para vir a ser dos melhores jogadores do mundo daqui a uns anos, mas não sei se isso acontecerá incondicionalmente. Enquanto que jogadores mais individualistas e mais vistosos podem vingar em praticamente qualquer equipa, desde que, para isso, mereçam a confiança do treinador que apanharem, jogadores como este, jogadores que, apesar de tecnicamente evoluídos, fazem uso sistemático das suas qualidades colectivas e privilegiam acima de qualquer outra coisa a criatividade, estarão sempre dependentes do tipo de colectivo em que acabarem inseridos. Vejamos então que caminhos desbravará o talento de Óscar...

domingo, 2 de outubro de 2011

O Fundamentalismo da Transição Rápida

O Professor Jorge Castelo, que nos intervalos de pôr os alunos a fazer pesquisas para os seus novos livros vai à televisão despejar banalidades, sugeriu esta semana, enquanto jogava o Benfica, que Nico Gaitán, por conseguir meter a bola onde quer, tinha um pé que parecia uma colher. Ora, eu consigo perceber a metáfora que consiste em dizer que alguém rematou "em colher", mas um pé em forma de colher é outra coisa. Ainda para mais quando, alegadamente, a razão pela qual um pé se parece com uma colher é a precisão com que o jogador a quem pertence o pé-colher põe a bola onde quer. Não consigo muito bem perceber como é que uma colher é um instrumento de precisão, mas se calhar sondar a mente de Jorge Castelo também não é a melhor maneira de ficar a sabê-lo. Enfim, colheradas à parte, aborreceu-se às tantas Jorge Castelo com um ataque mal conduzido pelo Benfica, segundo a sua opinião. O aborrecimento de Jorge Castelo deveu-se ao não aproveitamento do espaço disponível, e à pouca velocidade imprimida no lance. Segundo este extraordinário professor, todos os lances em que se recupera a bola devem ser conduzidos o mais velozmente possível. Ora bem, é aqui que me parece interessante parar um pouco, pois é uma opinião que me parece cada vez mais consensual, e absolutamente mal fundamentada.

A famigerada "transição", isto é, a passagem de uma situação ofensiva para uma situação defensiva, ou vice-versa, está, nos dias que correm, excessivamente valorizada. Não são poucos os treinadores e os opinadores que concordarão com a ideia-base de Jorge Castelo de que, havendo a possibilidade de partir rapidamente para o ataque, é isso que uma equipa deve fazer. Como já se deve ter percebido, não concordo particularmente com a ideia. Sim, uma transição rápida permite aproveitar os espaços que a equipa que perdeu a bola concede enquanto não recupera posicionalmente. Mas às custas de quê? A meu ver, os fanáticos da transição (e são muitos) raramente são capazes de calcular os custos de um comportamento que prime pelo aproveitamento dos momentos de transição. Acham que há uma vantagem grande em aproveitar os desequilíbrios defensivos que se originam nesses momentos, e acham também que não há vantagem nenhuma em não aproveitá-los. Não penso assim. A meu ver, ter por princípio imprimir velocidade sempre que se recupera a bola é um disparate. Há ocasiões em que, naturalmente, a melhor opção é fazê-lo, e há outras em que não, havendo para isso que ter em conta várias coisas. Por exemplo, apesar de o adversário estar desorganizado, será útil à equipa que recupera a bola utilizar uma transição rápida numa situação em que coloca apenas dois jogadores no lance contra quatro defesas? Será vantajoso procurar uma transição rápida que implique que o jogador que receba o passe mais longo o receba junto a uma linha, com um defesa por perto, e sem apoios próximos? Será de todo aconselhável passar de um momento defensivo a um momento ofensivo só com um ou dois passes, implicando isso lances de ataque de definição rápida, e consequente conclusão ou perda de bola? Uma equipa que, por definição, utilize transições rápidas, fica usualmente refém do que conseguir fazer nesses lances, ou seja, refém da inspiração dos jogadores que colocar nessa acção. Lances de transição são, por norma, lances com mais espaço, lances em que quem defende o faz com menos jogadores, em menos linhas, e com menos capacidade de cobertura, mas são também lances em que quem ataca tem menos referências ofensivas e menos apoios recuados consolidados. Se oferecem a vantagem a quem ataca de o fazer com mais espaço do que se o adversário estivesse arrumado posicionalmente, possuem a desvantagem de consistir em lances em que se privilegiam as capacidades individuais de dois ou três atacantes em detrimento de competências colectivas.

Ganharia o meu respeito o treinador que um dia viesse à televisão dizer que a estratégia da sua equipa passava essencialmente pelo melhor aproveitamento possível de transições lentas. A lentidão parece hoje, a muita gente, um defeito que tem de se erradicar de uma equipa. Mas há virtudes na lentidão. Uma transição que abdique de ser feita em rapidez assegura que o portador da bola fica com mais gente perto de si, que a posse de bola se mantém do lado de quem acabou de recuperá-la, que é o adversário quem vai ter de se desgastar para voltar a ter bola. Sim, abdicar de atacar em transição implica atacar mais vezes com o adversário organizado defensivamente. Mas isso não é necessariamente mau. Para além de considerarem que o risco é menor, as pessoas que preferem atacar em transição acham invariavelmente que é mais fácil atacar quando o adversário tem menos jogadores atrás da linha da bola e ainda não se organizou defensivamente. Ora, o equívoco está precisamente em presumir que é mais difícil criar situações de golo em organização do que em transição. Subjazem a este equívoco dois juízos errados: 1) quanto menos jogadores envolvidos numa jogada, mais espaço para um atacante se desmarcar há, logo é preferível uma situação de 3 para 3 do que uma situação de 6 para 6; e 2) que um passe, uma recepção e uma finalização em situação de transição são exactamente iguais a um passe, a uma recepção, e a uma finalização em organização. Deixem-me refutar estes dois juízos no parágrafo seguinte.

Em relação ao primeiro dos juízos, devo começar por dizer que, a menos que haja uma movimentação extraordinariamente bem feita da parte dos atacantes (e são raríssimas as equipas no mundo que o conseguem fazer sistematicamente), dificilmente uma situação de superioridade numérica de, por exemplo, 4 para 3 se traduz uma situação de perigo. Num 2 para 1, ou num 3 para 2, é diferente, mas numa situação de 4 para 3 já há defesas suficientes para congelar maior parte das intenções atacantes do adversário. O que quero com isto dizer é que a capacidade de desmarcação de um conjunto de atacantes não depende do espaço de que dispõem nem da quantidade de defesas que cobrem esse espaço. O erro está, obviamente, em presumir que sim. Numa situação de 6 para 6, dir-se-ia, há mais defesas e menos espaço, logo há menos sítios para onde os avançados se podem movimentar a fim de receber uma bola. Isso não é verdade. Há mais defesas e há menos espaço, mas há também mais avançados envolvidos no lance. Logo, a situação é mais complexa. E o truque é saber utilizar essa complexidade a seu favor. Quem defende que é mais fácil atacar em transição, está apenas a considerar a menor complexidade do lance para os seus avançados. Mas o lance também é menos complexo para os defesas. E é isso que é negligenciado. Em ataque organizado, o que uma equipa que tem a bola deve fazer é criar sistematicamente situações de superioridade numérica na zona da bola. Com isso, terá melhores condições para continuar a ter a bola, evitará mais facilmente a pressão defensiva do adversário, e arrastará defensores para onde lhe convier. Fazendo isto bem, abrir-se-ão naturalmente os espaços certos para que os atacantes se possam desmarcar. E tudo isto sem a vertigem, a incerteza e o risco de perda de bola que envolve uma situação de transição. Sim, por norma, o público exalta-se sempre que assiste a uma transição com 3 para 3. Mas o público não é um bom barómetro. É claro que, numa situação de 3 para 3, um passe pode chegar para criar uma situação de golo, ao passo que, numa situação de 6 para 6, um passe normalmente não é suficiente. E é isso que o público interpreta. O que o público não interpreta é que, por norma, o sucesso desse único passe que basta para criar uma oportunidade de golo, numa situação de 3 para 3, é muito mais incerto do que o sucesso de qualquer passe num lance de ataque organizado. O que estou a defender é que o público não interpreta que o lance é mais fácil de resolver, mas sim que pode ser resolvido mais depressa. A exaltação nas bancadas não mede possibilidades de êxito, mas sim a iminência do golo. E uma coisa não está necessariamente relacionada com a outra. O equívoco do segundo juízo é mais fácil de explicar. Numa situação de transição, a jogada é mais rápida, os passes são normalmente mais longos, a precisão que se exige é maior, etc. Todo o passe ou recepção que não seja óptimo compromete imediatamente o lance, coisa que não acontece numa situação de ataque organizado, que permite sempre a possibilidade de recomeçar a jogada. Numa situação de transição, portanto, apesar de haver mais espaço, há também uma menor margem de erro, quer seja em cada um dos passes, em cada recepção, ou mesmo em cada finalização efectuada. São lances que mais rapidamente originam uma ocasião de golo, mas não necessariamente lances de maior probabilidade de êxito. A excelência técnica requerida é superior e, naturalmente, o sucesso da jogada é mais incerto.

Concluo assim afirmando que uma equipa que ataca preferencialmente em transição, ataca com mais espaço, arrisca menos ao não integrar tantos homens no processo ofensivo, mas, em contrapartida, não só perde a bola com mais frequência, como também não promove situações de complexidade elevada, não cria necessariamente situações de golo mais favoráveis, e fica mais dependente da inspiração dos seus atacantes e do rigor e da precisão com que estes executarem os lances de que dispuserem. Utilizar transições rápidas por princípio parece-me, por isso, um fundamentalismo sem sentido, assente em premissas erradas. Em meu entender, numa equipa inteligente, numa equipa que se preocupe em depender o menos possível de factores incontroláveis, como a sorte, o erro do adversário, ou a inspiração, a transição rápida deve ser um recurso e não um princípio; deve ser utilizada criteriosamente, em condições adequadas, e não necessariamente com a finalidade de criar situações de golo. Além de, como argumentei, me parecer que não são situações que criem oportunidades de golo mais favoráveis (têm apenas a potencialidade de criar situações de golo mais depressa), não deviam sequer ser encaradas apenas tendo em vista a proximidade (em termos de quantidade de passes) com o golo. O objectivo do jogo, como há muito defendo, não é o golo, mas jogar bem a cada instante. Se assim é, aproveitar o espaço que existe no momento de transição só é uma boa opção se permitir que o portador da bola, no momento seguinte, continue a possuir condições para jogar bem. E a menos que seja uma situação de superioridade numérica clara, sobretudo de 2 para 1 ou de 3 para 2, ou uma situação de 3 para 3 ou de 4 para 3 conduzida pelo corredor central, dificilmente a situação promoverá uma oportunidade de golo interessante. Utilizar a transição rápida como recurso implica por isso uma competência colectiva normalmente negligenciada: mais importante do que saber fazer transições rápidas, uma boa equipa deve saber identificar situações em que é útil fazer uso de uma transição rápida. E, já agora, por que não utilizá-la com outros fins, meramente para obrigar o adversário a deslocar-se e a desgastar-se, esperando depois pelos apoios para iniciar uma situação de ataque organizado? Veja-se de que modo o Barcelona de Guardiola utiliza os momentos de transição, por exemplo, e como raramente se preocupa em chegar rapidamente a uma situação de golo, mesmo quando tem espaço à sua frente para o fazer. O Barcelona "trava" muitas das suas transições não apenas porque se sente mais confortável em ataque organizado, mas sobretudo porque identifica com relativa facilidade todas as desvantagens de tentar aproveitar essas situações. Atacar desenfreadamente assim que se recupera a bola, apenas porque nesse momento o adversário não está organizado e há mais espaço, é por isso um erro teórico cuja correcção só está ao alcance de alguns. No futebol actual, poucos são os treinadores, e poucas as equipas, que enjeitem deliberadamente esse momento do jogo. Os que o fazem e, sobretudo, os que o fazem percebendo por que o fazem, estão porém mais perto de conseguirem construir uma equipa verdadeiramente adulta, uma equipa que percebe que, quanto mais complexidade puser na partida, mais as diferenças de competência em relação ao adversário se tornam evidentes.