sábado, 27 de agosto de 2011

Oportunidades de Golo

É vulgar que o principal critério usado para justificar o mérito de um resultado sejam as oportunidades de golo criadas por uma equipa, quando cruzadas com as oportunidades de golo criadas pelo adversário. E é comum que se defenda que a equipa que mais justifica a vitória seja a que mais oportunidades de golo consegue criar. Embora concordando que as oportunidades de golo criadas por uma equipa digam algo acerca da sua produção ofensiva, e que as oportunidades de golo concedidas ao adversário digam algo acerca da sua produção defensiva, discordo deste critério. Para além do problema óbvio do critério utilizado para avaliar aquilo em que consiste uma oportunidade de golo, parecendo difícil, em muitas situações, dizer se um determinado lance constitui ou não uma oportunidade, a minha discordância diz respeito sobretudo à quantificação da coisa. O que quero dizer é que as oportunidades de golo não sao todas iguais, que há diversos factores que devem ser pesados, e que me parece perfeitamente defensável que uma equipa que crie uma oportunidade de golo mereça mais a vitória do que outra que consiga criar dez. Deste ponto de vista, o critério que estou a defender é um que substitua a análise quantitativa das oportunidades de golos criadas pelas duas equipas por uma análise qualitativa.

Não é isto, como é fácil de perceber, uma conversa sobre vitórias morais. O argumento consiste essencialmente em defender que há equipas que, por mais perto que andem da baliza adversária, por mais que rematem, por mais que metam a bola na área, não fazem o suficiente para criar verdadeiras oportunidades de golo. Cruzamentos para área, a pedir uma resposta de cabeça, sobretudo quando a densidade populacional na área é grande e sobretudo quando o adversário está de frente para a bola e organizado, raramente são oportunidades de golo claríssimas. Mesmo originando confusão, mesmo causando calafrios, mesmo que um avançado consiga cabecear e levar a bola a passar perto da baliza, mesmo que o guarda-redes a defenda. A menos que o avançado cabeceie em condições favoráveis, com espaço e tempo para escolher o sítio para onde quer enviar a bola, dificilmente concordaria que um desvio de primeira, no meio da confusão, equivalha a uma oportunidade de golo clara. Há equipas que conseguem ter um caudal ofensivo grande, que conseguem passar grande parte do desafio no meio-campo adversário, mas que têm pouca imaginação nas imediações da área e as oportunidades que criam são invariavelmente deste tipo, que dependem mais de um desvio feliz do que do talento finalizador, da frieza, da qualidade do avançado. Quando se diz, portanto, que uma equipa conseguiu criar lances suficientes para vencer um jogo, é preciso primeiro ver que tipo de lances foram esses, de que condições aquele que finaliza dispôs para finalizar, quais as probabilidades de êxito de cada acção, etc..

A meu ver, uma equipa que não seja capaz de deixar aquele que finaliza numa posição frontal para a finalização, com espaço e tempo para poder decidir minimamente para que lado quer enviar a bola, seja através de um passe de ruptura pelo corredor central, com o avançado a desmarcar-se nas costas da defesa, seja através de um cruzamento recuado, junto à linha de fundo, seja através de uma tabela, seja através de um cruzamento para a zona entre o guarda-redes e a defesa, uma equipa que não seja capaz de criar situações de golo deste tipo, que todos os lances de perigo que cria são provenientes de lances de bola parada, de cruzamentos a pedir um desvio no meio da confusão, de remates de meia-distância, de ressaltos, uma equipa que, no fundo, não seja competente a propiciar situações de finalização favoráveis, pode criar dezenas de oportunidades, mas as probabilidades de ser bem sucedida manter-se-ão reduzidas. Fala-se excessivamente de problemas de eficácia, quando uma equipa não marca golos, mas domina os jogos e até consegue fazer com que a bola ronde a baliza adversária. Cada vez mais discordo do tema da conversa. O problema dessas equipas não está na eficácia, não está nos golos que podia marcar mas que não marca; o problema está antes, está no tipo de oportunidades que cria. Quando se diz, por isso, que uma equipa tem tido azar, que os postes ou os guarda-redes adversários têm estado insuperáveis, que os seus finalizadores não andam inspirados, que bastava que uma bola entrasse para que tudo fosse diferente, talvez fosse melhor analisar bem o tipo de oportunidades que se têm criado. É que o problema, na maior parte das vezes, não está na falta de eficácia, mas na falta de imaginação em tudo o que antecede o momento em que é preciso ser eficaz. Se se souberem criar situações mais favoráveis, verdadeiras situações, diria até, depender-se-á menos da eficácia. É evidente que estas equipas podem ganhar muitos jogos sem criar oportunidades de golo em melhores condições. Mas dependerão mais daquilo que não podem controlar, da sorte de um desvio instintivo do avançado não ir direito ao guarda-redes, por exemplo. O que estou a afirmar é que não é o volume do jogo, a capacidade para fazer a bola rondar a baliza adversária, a criação de quaisquer situações de perigo, que reduz a dependência de uma equipa da sua eficácia ofensiva; é, isso sim, a capacidade de criar "certas" oportunidades de golo. E o vocábulo "certas" é aqui - perdoem-me a redundância - o mais acertado: pode ter não só a função de pronome indefinido, significando "determinadas", como de adjectivo, significando "verdadeiras". Na minha opinião, portanto, o melhor remédio para os problemas de eficácia de uma equipa raramente é a substituição de um finalizador por outro ou raramente consiste em qualquer afinação do momento de finalização. Pelo contrário, problemas de eficácia resolvem-se criando condições para que não se dependa tanto de momentos de finalização pouco favoráveis. A menos que se trate de um caso de aselhice colectiva - e tal pode eventualmente acontecer - nenhuma equipa perde sistematicamente pontos por falta de eficácia no momento de atirar à baliza. Jogue-se bem e criem-se oportunidades de golo a sério, que os problemas resolver-se-ão por si mesmos.

Para terminar, o texto tem uma aplicação universal e abstracta, mas há dois bons exemplos recentes com que posso ilustrar o que estou a dizer. O início de época do Sporting trouxe ao de cima, para muita gente, determinados problemas de finalização da equipa. A fraca produção de golos - dizem - sobretudo com tanto volume de jogo ofensivo, só tem justificação pela falta de pontaria dos avançados. Discordo inteiramente disto. O problema do início de época do Sporting, a meu ver, está muito mais relacionado com o que antecede esse momento de finalização. Quantos lances conseguiu o Sporting produzir em que aquele que finaliza o faz em posição frontal, com espaço para escolher o lado para onde enviar a bola? Quantas vezes se isolaram os avançados do Sporting? Quantos cruzamentos rasteiros, a pedir um gesto técnico mais simples que o cabeceamento? Quantas verdadeiras oportunidades de golo teve o Sporting até agora? Domingos, a maior parte dos comentadores futebolísticos e alguns feiticeiros garantem que a equipa tem produzido inúmeras oportunidades evidentes de golo. Eu conto pouquíssimas. Nos dois jogos do campeonato, então, conto apenas duas, uma que deu golo de Postiga, contra o Olhanense, mas que foi anulado, outra em que o defensor do Beira-Mar cortou o remate de Capel em cima da linha de golo. O resto são respostas a cruzamentos ou remates à entrada da área, a maior parte das quais em condições francamente deficientes. O segundo exemplo é o jogo de ontem da Supertaça Europeia. Foi sugerido que o Porto merecia vencer, pois criou mais oportunidades que os catalães. Mesmo em número de ocasiões, duvido que isto seja muito exacto. Mas o que me impressiona é a ausência de espírito crítico da análise. Sejamos honestos: o Porto não criou uma única ocasião de golo flagrante. Fez alguns remates de longe, um ou dois mais promissores, teve um cruzamento em que Valdez falhou o tempo de saída da baliza e Mascherano cortou de cabeça, e pouco mais. O Barcelona, sem ter feito um grande jogo, teve 5 ou 6 oportunidades bem mais significativas, e é inquestionável que tenha merecido vencer o troféu. Nada disto tira mérito ao que o Porto fez, principalmente em termos defensivos. Defensivamente, o comportamento da equipa foi exemplar: controlou a posse catalã recorrendo a uma estratégia de pressão muito bem planeada, manteve os sectores juntos, a resposta colectiva aos momentos de pressão foi incrivelmente boa, e conseguiu mesmo provocar erros na construção do adversário que poderiam ter ocasionado lances de perigo a seu favor. Infelizmente, sobretudo em ataque organizado, a equipa voltou a denotar uma esterilidade preocupante, e foi absolutamente inconsequente. Fica, apesar de tudo, o exemplo a seguir da estratégia sem bola.

sábado, 20 de agosto de 2011

Contra Argumentos Não Há Factos

"Nisto de manifestações populares, o mais difícil é interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou sabe delas ingenuamente as interpreta pelos factos como se deram. Ora, nada se pode interpretar pelos factos como se deram. Nada é como se dá. Temos que alterar os factos, tais como se deram, para poder perceber o que realmente se deu. É costume dizer-se que contra factos não há argumentos. Ora só contra factos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os factos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos factos, que pode haver lógica."

Fernando Pessoa, "Crónicas da Vida que Passa",
publicado in O Jornal, a 18 de Abril de 1915.

Vem isto a propósito de mais um esplendoroso exercício de reflexão estatística executado pelo Filipe Vieira de Sá. Pretende o Filipe, de calculadora em punho, demonstrar que o Postiga não presta para nada, e que o Sporting é menos eficaz com ele em campo. E com que critérios pretende ele justificar tal ideia? Um só: a diferença entre os golos marcados pelo Sporting com ele em campo e os golos marcados sem ele. Um só critério! Isto vindo de quem se diz mestre da estatística? É preciso alguma boa-vontade para não rirmos de tal infantilidade. Mas já lá vamos. Conclui assim o Filipe a sua análise: "Apresento apenas os dados, que são factuais, e espero que eles possam contribuir para alguma coisa. Porque deviam." Os dados (que são factuais, como tão bem enfatiza o Filipe) mostram que o Sporting marca mais golos quando o Postiga não joga. E como são factuais - como o Filipe faz questão de frisar - não se pode duvidar de que contenham qualquer verdade. Se os dados são factuais - como o Filipe diz que são - pode-se concluir 1) que o Sporting marca de facto menos golos com o Postiga em campo, 2) que, por marcar menos golos com ele em campo, é menos forte com ele em campo, 3) que, por marcar menos golos com ele em campo, joga pior com ele em campo, e 4) que, por o Sporting marcar menos golos com o Postiga em campo, o Postiga não presta para nada e deveria ser substituído. É esta a linha de raciocínio do Filipe, que não pode estar errada porque se baseia na factualidade - como tão bem nos fez saber.

Comecemos pela citação de Fernando Pessoa. Baseia-se a teoria do Filipe, assim como todas as suas ideias recentes, na premissa de que, "contra factos não há argumentos", ou seja, de que os factos, tais quais se deram, são auto-explicativos e prevalecem sobre qualquer argumentação. Ora, como diz Pessoa, não é assim que o mundo funciona: é precisamente contra factos que há argumentos. Os matemáticos (e os patetas também) levarão as mãos aos cabelos, com tal afirmação. Isto porque vêem o mundo através do papel quadriculado em que fazem contas, e acham que o mundo é universalmente explicado pela matemática. Estão enganados. Os factos, propriamente, não são nada. Não existem factos, se quiserem. O principal erro dos matemáticos é pensar o contrário, é pensar que existe uma coisa empírica que se dá, a que chamam facto, e que a interpretação desse facto acontece posteriormente. Todo o facto é já uma interpretação. E interpretar o mundo matematicamente é só uma maneira de interpretá-lo, não a maneira mais eficaz. Como diz Pessoa, "os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os factos". O que permite a Pessoa dizê-lo é o critério de verdade utilizado em cada uma destas duas coisas: no caso dos argumentos, o critério de verdade é a lógica; no caso dos factos o critério será outra coisa qualquer, provavelmente a matemática. É por isso que apresentar factos e pressupor a impossibilidade de refutação do que quer que esses factos permitam concluir é uma falácia. Mais uma, de tantas que o Filipe comete. Os factos não têm lógica, e querer concluir o que quer que seja com base numa coisa que não tem lógica parece-me um salto de fé muitíssimo arriscado. Diz o Filipe, noutro texto, o seguinte: "Entendo a avaliação que faço como extremamente sólida por ser baseada em factos de longo prazo". E melhor frase não poderíamos encontrar. A razão pela qual acha o Filipe que as suas avaliações são sólidas é o serem baseadas em factos. Como se viu acima, todas as suas avaliações se baseiam então em coisas ilógicas, coisas que carecem de interpretação e que, por si, não têm conteúdo cognitivo nenhum. Por conseguinte, nenhuma das suas avaliações é sólida, como acredita. Falta-lhe a lógica que só a capacidade argumentativa - coisa que aboliu do seu raciocínio - poderia dar. Sem ela - coitado - é um matemático frustrado a mostrar que sabe fazer contas de dividir.

Passemos agora para aquilo que, concretamente, quer o Filipe demonstrar com este exercício em particular, e preocupemo-nos com o método utilizado, pois é no método que estão todos os equívocos que determinam a natureza equivocada das conclusões. A conclusão final, a de que o Postiga não presta para nada e deve ser substituído para que o Sporting fique mais forte, baseia-se em, pelo menos, dois dogmas: 1) que a quantidade de golos que uma equipa marca é directamente proporcional à sua força global; 2) que há necessariamente uma relação de natureza causal entre a acção de um jogador e o rendimento de uma equipa. Penso que o primeiro dogma não coloca grandes problemas (o próprio Filipe não acreditará nisso, e só terá fechados os olhos a esta objecção evidente por lhe dar jeito para as conclusões que queria tirar), e não vou falar dele. Quanto ao segundo, há coisas a dizer. A grande maioria das opiniões sobre futebol consiste em afirmar que se devia trocar o jogador A pelo jogador B, pois este oferece maior rendimento. Isto não faz sentido de muitas maneiras, mas não faz sentido essencialmente porque não há uma relação causal entre o rendimento individual de um jogador e o rendimento da equipa em que actua. O rendimento de uma equipa não pode ser medido pela soma dos rendimentos individuais, e é perfeitamente possível que, ao substituir um jogador A, com um rendimento individual fraco, um jogador B, que consiga um rendimento individual óptimo, faça com que o rendimento colectivo decresça. Permitam-me o seguinte exemplo: o rendimento individual do Ronaldo, em Madrid, é brilhante. E o rendimento colectivo do Real é maior com ele em campo. Mas transfira-se o Ronaldo para Barcelona e o seu rendimento individual chocará necessariamente com os interesses colectivos. Em Barcelona, imaginando que lhe dariam a liberdade para fazer o que faz em Madrid, Ronaldo manteria um rendimento individual altíssimo, contribuiria até individualmente para parte do rendimento do Barcelona, mas prejudicaria, no limite, o rendimento da equipa, porque lhe modificaria certas particularidades. A optimização do rendimento colectivo não depende da optimização do rendimento individual de cada uma das unidades que compõem o colectivo, mas sim da adequação do que cada uma dessas unidades faz aos interesses colectivos. É isto, essencialmente, que continua a não entrar nas cabeças das pessoas que acham que falam "colectivamente" de futebol.

Transpondo para o caso concreto do Postiga, o equívoco do Filipe está em presumir que um jogador transforma a sua qualidade individual em rendimento colectivo qualquer que seja o ambiente. Se o Postiga tem características complemente incompatíveis com as coisas que o colectivo privilegia, é natural que o rendimento do colectivo seja superior quando, em vez do Postiga, jogar alguém que se enquadra melhor naquilo que o colectivo faz. Isso não significa que esse seja melhor jogador, nem significa, sequer, que seja melhor para o colectivo cujo rendimento ajuda a melhorar. O Postiga pode fazer tudo bem feito, pode fazer coisas complicadíssimas, que poucos têm qualidade para fazer, mas, se a equipa não fizer uso dessas coisas, nada do rendimento colectivo será afectado por isso. Por exemplo, o Postiga ganha a bola no meio de dois adversários, tem um trabalho desgraçado a segurá-la, espera por colegas e entrega de frente no médio. Se o médio, a seguir, jogar longo a solicitar a entrada de um extremo e a jogada se perder, todo o trabalho do Postiga, bom ou mau, acabou por não contribuir para nada. Se calhar, nesse caso específico, em vez de ter alguém que fosse capaz de fazer o que Postiga fez, seria melhor ter um avançado que saltasse apenas à bola e que, sem se desgastar a protegê-la e a esperar pelos colegas, fosse imediatamente para a área. No caso de uma equipa que não priviligie o tipo de coisas em que o Postiga pode contribuir, não me faz confusão que o Postiga não seja o avançado que mais contribui para o rendimento colectivo. O problema, porém, é pensar que quem está mal é o Postiga. Se o Sporting pratica um futebol de equipa pequena, se não procura combinações curtas, se não faz um jogo de posse e circulação, se insiste em cruzar de longe para a área, se procura um futebol mais objectivo, é natural que um jogador de equipa grande, que é forte sobretudo a fornecer à equipa condições para jogar como uma equipa grande, não contribua significativamente para o rendimento dessa equipa. Mas - repito - o mal está na equipa, não no jogador. Resumindo, consiste o segundo dogma em presumir que, quando um jogador é bom, é bom em qualquer equipa, em qualquer modelo, com quaisquer tarefas, e que contribui necessariamente para o rendimento da equipa. Como é óbvio, não é assim que as coisas funcionam.

Depois de demonstrado o carácter dogmático da análise do Filipe (ele que tanto se diz contra os dogmatismos), vou agora enumerar os vários problemas metodológicos que se podem registar neste caso concreto. 1) Os 5 jogadores comparados são Cardozo, Lisandro, Liedson, Falcao e Postiga. Os primeiros 4 foram titulares indiscutíveis desde que chegaram a Portugal; Postiga, no Sporting, foi-o apenas na época passada. Os outros 4 jogaram quase sempre os 90 minutos; Postiga, mesmo quando titular, foi substituído bastantes vezes. Seria bem mais interessante e honesto fazer as continhas utilizando os minutos em que os jogadores estiveram em campo, e não os jogos em que foram utilizados. Apesar de tudo isto, o Filipe faz uso das três épocas em que Postiga esteve no Sporting. E ainda tem moral para dizer que as coisas que apresenta são factuais? É uma factualidade, no mínimo, muito duvidosa. Se calhar, mais de metade dos 68 jogos que o Filipe diz que o Postiga jogou jogou-os apenas parcialmente. 2) O segundo problema deriva do primeiro: pela inconsistência da utilização não se pode aferir nada. Nas primeiras duas épocas, Postiga era tão criticado e jogava tão pouco que, quando jogava, dificilmente podia render ao máximo. Mais uma vez, utilizar épocas em que o jogador, por factores extrínsecos à sua qualidade, não estava no seu melhor, comparando-o com 4 jogadores que nunca tiveram esse tipo de problemas, é no mínimo injusto. 3) Uma coisa que gostava que o Filipe fizesse com a sua calculadora especial era as mesmas continhas, mas em jogos da selecção. Será que Postiga, num ambiente diferente, num ambiente que, pelo menos com Paulo Bento, arriscaria dizer que lhe é mais favorável, continuava a ser um jogador que prejudicasse o rendimento da equipa? Tenho as minhas sérias dúvidas. 4) Nos resultados obtidos, o Filipe justifica o facto de o Porto render menos com Falcao do que sem ele com a pouca consistência dos 10 jogos em que ele não jogou. Eu entendo e aceito a justificação. Mas por que é que não se lembrou, de igual modo, o Filipe de justificar os resultados do Postiga com a pouca consistência dos jogos das duas primeiras épocas? Porque, uma vez mais, lhe dava jeito que não o fizesse. A inconsistência dos objectos de análise depende por isso da honestidade intelectual do Filipe, que é pouca.

Para terminar, e porque o texto já vai longo, queria voltar à ideia de Pessoa de que os factos não interessam para nada, e que são os argumentos que devem ser respeitados. Além de ter ficado evidente que o método usado pelo Filipe para o apuramento de factos carece de precisão, ficou também demonstrado - e bem demonstrado - que as suas conclusões dependem de premissas que o próprio não justifica. Os argumentos, ao contrário dos factos, ajudam a perceber como é que as coisas se passam e por que é que se atingem determinadas conclusões. Por ignorar os argumentos, e só dar atenção a factos, não percebeu o Filipe a natureza ilógica daquilo que estava a fazer. Sem a lógica dos argumentos, o seu raciocínio ilógico invariavelmente o conduz para conclusões precipitadas. Neste caso, o principal erro esteve em presumir que o rendimento colectivo ajuda a perceber rendimentos individuais. Noutros casos, erros parecidos ocorrerão.

Sobre a forma como o Filipe conduz discussões, tenho também algumas coisas a dizer. Ao contrário do Filipe, que prefere as bicadas subtis, sem outra justificação que não a tentativa de ridicularização, a minha intenção não é contestar a proposta dele através da troça, mas através da discussão. Ao contrário do Filipe, a quem interessa apenas a sua perspectiva, valorizo acima de tudo a troca de ideias. É por isso que, ao contrário do Filipe, cito as ideias dele, rebatendo-as com as minhas; é por isso também que nunca fugi a uma discussão, nem recusei comentários. Consiste o método de discussão do Filipe em apresentar contas de matemática para mostrar como tudo o que não tenha matemática é falso. E ainda diz que não é um rapaz dogmático! Está certo. O meu método é diferente: consiste em mostrar, pela lógica, que certos argumentos fazem mais sentido que outros. Por outras palavras, os interesses do Filipe são religiosos: pretende vender uma certa fé, partindo, como parte qualquer religião, de determinados dogmas que carecem de prova. A minha posição é distinta. O único dogma é não haver dogmas. Os meus interesses, se não científicos, são intelectuais. Não defendo o que defendo porque sim; defendo-o por isto ou por aquilo, consoante o argumento. O Filipe defende o que defende porque os números - a suprema divindade da religião a que dá corpo - lhe dizem que tem de defendê-lo, mais ou menos como um cristão defende o Cristianismo porque um livro grosso contém a palavra divina e é sacrilégio duvidar dela. As matematiquices do Filipe fazem dele, portanto, um fundamentalista. Como todos os fundamentalistas, parece uma pessoa honesta e liberal, desde que não discordem da sua fé, fé essa que, no seu caso, é a matemática.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Mourinho e a Pré-História

Como espectáculo, a Supertaça de Espanha foi emotiva e disputada; como jogo de futebol, foi uma partida de fraca qualidade, com muita precipitação, muito choque, uma equipa claramente abaixo das suas capacidades físicas e outra a roçar o absurdo, em alguns aspectos. Enfim, para muitos, terão sido mais dois grandes duelos. Para mim, foi a confirmação de que o Real de Mourinho dificilmente beliscará a hegemonia do Barcelona de Guardiola nos tempos mais próximos. É quase unânime que o Real esteja cada vez mais forte, e cada vez ameace mais o domínio blaugrana. Pessoalmente, acho isso um disparate. Acho que a estratégia é cada vez mais primitiva e depende cada vez mais ou da desinspiração do adversário, ou da leviandade da arbitragem, ou da sorte.

Já a época passada parecia notar-se a tendência para aquilo de que vou falar de seguida, mas estes dois jogos foram bem mais elucidativos a esse respeito. No mesmo dia, portanto, em que um treinador pré-histórico apurou uma selecção portuguesa para uma final de um campeonato do mundo, provando que o futebol é, de facto, o desporto dos pobres, Mourinho, provavelmente o treinador que mais revolucionou a profissão que exerce, e provavelmente o treinador que mais fez pela modernização dos treinadores portugueses, voltou à Pré-História. Não vi ainda ninguém referi-lo - o que me choca, de algum modo - mas a estratégia do Real Madrid, nos dois jogos, passou por uma marcação homem a homem (sim!, homem a homem) no campo todo. É verdade que não havia acompanhamentos ao longo de todo o campo, e que havia permutas de marcação quando um jogador entrava no espaço de um colega, mas a estratégia passou por haver um jogador madrileno em cima de um catalão, em qualquer zona do campo. Tem sido gabada a pressão alta que o Real Madrid impôs, mas não se tem percebido em que tem consistido. A pressão consiste em encostar, um a um, em cada um dos adversários. Isto não é pressão; é estupidez. E só pareceu dar alguns frutos porque os jogadores do Barcelona, em largos momentos da eliminatória, deram a impressão de ainda estarem de férias.

Este tipo de jaimepachequice tem uma virtude, se é que se pode chamar a isto virtude: potencia os confrontos individuais e, quando uma equipa é (ou está) fisicamente muito superior à outra, pode ter efeitos. De facto, se há altura da época em que o Real Madrid podia, com esta estratégia, vencer o Barcelona, era agora. É no início da época que a diferença de agressividade é mais relevante, pelo simples facto de os indíces físicos de uma equipa que assenta a sua ideia num jogo técnico, nesta altura da época, não lhes permitir explorar todo o seu potencial. Sem capacidade para fazer das suas armas uma mais-valia, perante a agressividade do adversário, o Barcelona concedeu assim mais perdas de bola do que é hábito. É coisa, porém, que não se repetirá no futuro, quando a equipa estiver melhor preparada do ponto de vista físico. O que estou a defender é que a estratégia do Real aparentou ser boa porque a altura da época assim o propiciou. Mas, mesmo tendo-o propiciado, não foi suficiente, o que por si só é até irónico.

Sempre que a pressão homem a homem que o Real exercia conseguia evitar que o Barcelona saísse a jogar, roubando a bola em zonas altas, o Real parecia conseguir ameaçar os catalães. Mas sempre que não o conseguia, sempre que os catalães, pondo o seu jogo de passe curto em acção, conseguiam sair da primeira zona de pressão, o que tinham a seguir era um amontoado de jogadores completamente desorganizados. Por norma, o Barcelona trabalha os seus ataques, lateraliza, especula, etc. Contra um Real Madrid completamente desorganizado, preocupado em marcar homem a homem, sempre que um jogador catalão se soltava, fruto da dinâmica colectiva, ou fruto de uma acção individual, ficava com uma auto-estrada à sua frente, bastando à equipa um ou dois passes para criar uma situação de perigo. Estando a equipa fisicamente no seu melhor, este tipo de coisas tenderá a acontecer mais vezes, e arriscaria a dizer que, entrando Mourinho com esta estratégia no próximo jogo, o mais provável é sair goleado outra vez. O lance mais paradigmático é aquele em que Messi, estorvado já por Pepe, finaliza descaído para a esquerda, com boa intervenção de Casillas. A forma como Messi fica com uma avenida à sua frente, no corredor central, com Pepe e Sergio Ramos, os últimos dois homens, abertos a toda a largura do campo, demonstra bem a falta de organização defensiva da equipa neste último jogo. Sempre que o Barcelona conseguiu soltar um jogador, o Real passou mal, pois teve de ajustar marcações e estava constantemente onde os jogadores do Barcelona queriam que estivesse. Se o resultado não foi mais desnivelado e se o Real pareceu sempre capaz de disputar o resultado, tal deveu-se - como já disse - ao facto de o Barcelona não estar ainda num momento em que consiga potenciar essas situações.

No melhor livro sobre futebol escrito em português, é Mourinho quem é o herói da coisa. Nuno Amieiro, defendendo um conceito de zona que considero absolutamente certeiro, exemplifica por norma com o Porto de Mourinho. Bem sei que as pessoas gostam da versatilidade de Mourinho, mas abdicar de um princípio que lhe foi tão caro desde sempre, e que lhe fez até a fama, é das coisas menos nobres, para não dizer estúpidas, que podia fazer. Percebo a necessidade de, a cada pontapé de baliza catalão, fazer cair um jogador em cada um dos centrais, e outro no médio-defensivo que entra no meio, de modo a evitar que o Barça comece a construir logo desde trás, mas fazer um acompanhamento directo a cada uma das individualidades catalãs, ao longo de todo o campo, não é nunca a melhor forma de tentar parar o Barça. Nem mesmo com a impunidade sobre a violência das entradas. É que basta uma distracção, ou que um catalão consiga desembaraçar-se individualmente do seu opositor, para que toda a estratégia deixe de ter sentido. Em termos defensivos, o Real foi tacticamente uma desgraça, pois os jogadores estavam posicionados onde havia jogadores catalães e não onde deveriam. Mas a verdade é que toda a gente gabou a forma como a equipa da capital conseguiu manietar o Barcelona. É por estas e por outras que afirmo que as pessoas não vêem os jogos; ouvem os barulhos e vêem cores e traços no ecrã que depois interpretam de modo aleatório.

Antes de terminar, um pormenor a que não se prestou atenção. Ao vir para a segunda parte, o Barcelona passou a bater os pontapés de baliza para a frente, abdicando de sair a jogar. Para quem diz que Guardiola não tem versatilidade, eis um exemplo de como estão errados. Apercebendo-se de que a capacidade ofensiva do Real dependia exclusivamente das bolas que conseguia roubar em zonas altas, e percebendo que a sua equipa não está numa fase da equipa em que consiga superar a agressividade dessa pressão, e que estava a ter dificuldades para ultrapassar essa primeira zona de pressão e começar a construir, Guardiola, em vantagem, ordenou que os pontapés de baliza fossem batidos para o meio-campo. Com isto, até pode ter permitido ao Real ganhar quase todas as primeiras bolas, e até pode ter facultado a bola ao adversário, mas preveniu-se contra o único modo de perder o desafio. É que, com bola, o Real nunca teve clarividência para superar a equipa catalã, estando esta organizada defensivamente. Na segunda parte, tirando lances de bola parada, o Real não foi ameaçador. E não o foi porque deixou de poder contar com o único meio pelo qual estava a sê-lo: a recuperação da bola em zonas altas, apanhando o adversário desorganizado. Para aqueles que consideram Guardiola demasiado agarrado aos seus ideais, ficou a boa resposta; do banco, percebeu onde estava a força do adversário, e abdicou de um dos princípios que lhe é mais caro para poder contrariá-la.

P.S. Que mais é preciso que Pepe faça para que alguém decida que está na hora de bani-lo do futebol? Se há cães que vão para abate por serem demasiado perigosos, por que razão não há matadouros para gente como ele? Estão à espera que parta os dentes a quem? Ao Messi? Sem exagero algum, nos últimos 6 duelos entre as duas equipas, Pepe fez o suficiente para ser expulso, no mínimo dos mínimos, 20 vezes. E o atrasado mental do Pedro Henriques, a comentar o jogo, ainda conseguiu ver, num lance em que o Pepe só olha para o Piqué, e voa direito a ele com o cotovelo armado, que o Busquets é que empurrou o Pepe na direcção do central catalão. Haja paciência para tanta imbecilidade!

domingo, 14 de agosto de 2011

O Futebol e a Falácia da Selecção Natural

Num recente artigo no Letra 1, espaço que me parece ter bastante qualidade e que aproveito para publicitar, argumenta Filipe Vieira de Sá, com base numa analogia que, apesar de interessante, carece de justificação, que o futebol, tal como o jogo da evolução das espécies, não converge para um ideal de perfeição. O que pretende, ao argumentá-lo, é defender a ideia de que, em futebol, não há uma fórmula que garanta o sucesso, e que esse sucesso depende, isso sim, da capacidade adaptativa da "espécie" ao "meio", sendo por isso natural que à "espécie dominante" de hoje se suceda amanhã outra "espécie dominante", melhor adaptada. Como é sabido, até porque escrevi coisas nesse sentido muito antes de o Barcelona de Guardiola ser a "espécie dominante" que é hoje, o tema interessa-me muitíssimo, e sustento uma opinião contrária à do Filipe. De um modo muito resumido, que espero sustentar melhor daqui para a frente, entendo o Barcelona de Guardiola como um salto evolutivo gigantesco (coisa de que falei aqui) e, em muitos aspectos, decisivo. Contra esta ideia, defenderia o Filipe, se bem lhe entendo o argumento, que não existem, em futebol, saltos evolutivos decisivos, e que aquilo que a "espécie dominante" faz hoje define o "meio" ao qual quem vem atrás deverá adaptar-se, superando-o.

Importa, em primeiro lugar, referir que não creio que exista perfeição, nem fórmula que garanta sucesso continuado. Acredito, porém, que existem maneiras melhores de jogar do que outras, maneiras que garantam mais vezes o sucesso, e que o modelo futebolístico posto em prática pelo Barcelona ultrapassa, em qualidade, tudo o que foi feito antes. Penso assim por uma razão simples, porque o futebol é um jogo e, como qualquer jogo, possui um conjunto de regras que lhe limita as possibilidades. O jogo do galo, para dar o exemplo de um jogo simples, cujo conjunto de regras impõe limites óbvios, acaba invariavelmente empatado, sempre que jogado por dois jogadores minimamente conscientes das possibilidades ao seu dispor. Há jogos, obviamente, mais complexos (sendo o futebol um caso evidente), jogos em que as possibilidades são muito maiores, mas, no limite, passa-se o mesmo. Todo o conjunto de regras fixo, que é aquilo em que consiste, por definição, qualquer jogo, é um "meio" ao qual se adaptam melhor os que possuírem as características mais adequadas ao conjunto de regras com que se define esse "meio".

O que, em primeira instância, trai o raciocínio ao Filipe é que o "jogo" da evolução das espécies não esteve, ou não está, ao contrário de um jogo como o futebol, sujeito a um conjunto de regras fixas, e que é isso, no limite, que permite afirmar que não há perfeição que sirva de critério. Aliás, ao contrário do futebol, em que se foram descobrindo formas melhores de se contrariarem as imposições do "meio", e em que as "espécies dominantes" se sucederam por desenvolverem, por reacção ao meio, características mais adequadas ao conjunto predefinido de regras do meio (houve poucas alterações significativas às regras, ao longo da História do Jogo), no jogo da evolução das espécies são, por norma, as alterações no meio, ou seja, as alterações nas "regras do jogo", que ditam a melhor adequação de um certo conjunto de genes a esse meio. Para fornecer disto ilustração, recorro ao exemplo clássico das borboletas brancas antes da industrialização em Manchester. A borboleta de cor branca, que predominava naquela zona antes da industrialização, deu lugar, em menos de um século, ao predomínio de uma espécie de cor negra não por esta ter vencido a batalha da evolução, mas porque o meio o impôs. O que se passou foi que, antes da industrialização, a borboleta branca predominava por estar melhor "adaptada" às imposições do meio, por se confundir melhor com a vegetação da zona, assim escapando mais facilmente aos predadores. Mudando o meio, mudou-se também a facilidade que estas borboletas tinham para escapar aos predadores. Com a fuligem e a rápida mutação da cor da vegetação local, a borboleta negra passou a ter melhores características para escapar à predação e, ao fim de algumas gerações, passou a ser a espécie dominante. O que este caso evidencia é que, no que diz respeito à luta pela sobrevivência, são essencialmente as mutações no meio que determinam a sucessão das espécies. Aliás, é por isso que se chama "selecção natural", por as espécies que sobrevivem serem seleccionadas naturalmente, pelas contingências do meio, pelo Acaso. No que diz, portanto, respeito ao jogo da evolução das espécies, não se pode dizer que exista mérito evolutivo, pois a evolução depende integralmente das condicionantes exteriores. Tal não é o caso do futebol, em que a evolução se fez principalmente por as espécies terem modificado a maneira como reagiam às condicionantes exteriores que, salvo raras excepções, permaneceram inalteradas.

A analogia utilizada pelo Filipe é, assim, falaciosa. E é-o simplesmente porque um jogo como o futebol não está sujeito à inconstância regulativa a que o jogo da evolução esteve. Há, todavia, usos interessantes a fazer dessa analogia. Quando Darwin chegou às Galápagos, descobriu que a fauna e a flora das ilhas era radicalmente diferente de tudo o que conhecia. Isto permitiu-lhe conjecturar que o isolamento insular determinara um jogo evolutivo totalmente distinto do que se passara noutras zonas do globo. Ou seja, num meio com regras diferentes, princípios evolutivos diferentes. Encontrou ali espécies que não existiam em nenhum outro local simplesmente porque o meio lhes permitira a subsistência. O que quero sugerir com este exemplo é que, mesmo no mundo natural, se o meio for relativamente inalterável, há a tendência para certas espécies subsistirem ininterruptamente. A conclusão óbvia a tirar é a de que, se as espécies que melhor se adaptam às características de um meio tiverem a possibilidade de permanecer nesse meio, sem que haja alterações no sistema de regras do mesmo, a tendência é o domínio dessas espécies não mais ser posto em causa.

Além de tudo isto, parece esquecer-se o argumento do Filipe de que há uma espécie que venceu já o jogo da evolução das espécies: o homem. E não só o venceu como já nem sequer o joga. De tal modo a vitória foi clara que é a única espécie que está livre das imposições do meio. É evidente que o homem não é uma criatura perfeita, e que teria dificuldades em sobreviver em determinados habitats, mas é a criatura que melhores características reuniu para fazer face às características gerais do meio em que habita e que controla plenamente: o planeta. A lei do mais forte e a selecção natural deixaram de se aplicar ao homem há muito tempo, e a menos que se dê uma mudança radical no meio, um cataclismo qualquer que destrua os pilares civilizacionais em que nos constituímos, não me parece crível que o homem venha algum dia a perder o estatuto de espécie dominante. O argumento que estou a fazer consiste em afirmar que não é preciso ser perfeito, no sentido utópico da palavra, para se vencer definitivamente o jogo da evolução; basta possuir as características - ou construi-las - que melhor se adequam às imposições do meio. No caso do homem, esse jogo começou a ser ganho no momento em que se começou a civilizar. Civilizar-se, aliás, significa precisamente desobedecer à lei do mais forte. Assim, ao desobedecer à mais profunda lei da natureza, adaptou-se o homem o melhor possível ao conjunto de regras que constitui o meio em que habita, e não mais ficou sujeito à dança da sucessão de espécies dominantes. Pode dizer-se, inclusivamente, que o homem não é sequer a espécie dominante do planeta, mas a espécie vencedora. Seria "dominante" se fosse aquela que, temporariamente, melhor se adapta ao meio. Mas, neste momento, é muito mais do que isso: é aquela que controla o meio e que dita as regras do jogo.

Deixem-me agora recuperar o argumento do Filipe acerca da sucessão de "espécies dominantes" em futebol, para mostrar como o argumento "mete a pata na poça" e torna clara a falácia a que se oferece. Segundo o Filipe, o que se passa em futebol é que o "meio" é definido por aquilo que fazem as "espécies dominantes", e que as restantes espécies se adaptam não ao conjunto de regras de que estão rodeadas, mas sim às características evolutivas da "espécie dominante". Segundo, portanto, o Filipe, a evolução em futebol depende de reacções não ao meio, mas às espécies que habitam o meio. Não é assim que funciona o jogo evolutivo das espécies, e, como tal, toda a sustentabilidade do argumento, que consiste na analogia com a teoria da "selecção natural", se desmorona. Parece-me, porém, que boa parte da confusão do argumento consiste em confundir a teoria geral da selecção natural com a luta particular que se dá no interior de um organismo, entre um hospedeiro e um parasita. É que, a dada altura do seu texto, dá o Filipe a entender que as restantes espécies, para sucederem ao domínio catalão actual, precisam agora de vacinar-se contra a doença viral que é o Barcelona. E, de repente, aquilo que era uma teoria simpática e promissora, consistindo numa analogia com a teoria da selecção natural, passa a ser uma coisa esquisita que consiste em aproximar a espécie dominante numa determinada altura da História do Futebol de um vírus para o qual ainda não se formaram anticorpos que o debelem. No final do seu texto, portanto, a teoria da sucessão das espécies dominantes em futebol é fundamentalmente uma analogia com a relação entre organismos hospedeiros e organismos parasitários: a vacina que debela a "espécie dominante" do vírus sucede ao vírus; gerações depois, tendo certas espécies secundárias do vírus sobrevivido ao ataque da vacina, um novo vírus volta a suceder à vacina; nova vacina, consistindo agora em anticorpos contra este novo vírus, volta a suceder ao vírus; e por aí em diante. O artigo, principiando com uma premissa que, como demonstrei, é falaciosa, acaba pois a falar de uma coisa completamente diferente, embora igualmente falaciosa, como adiante tornarei claro.

Como organismos parasitários que são, os vírus precisam de organismos hospedeiros que lhes suportem a existência. Ainda que, aparentemente, estejam em competição com eles, não é verdade que façam parte do mesmo jogo a que os outros estão entregues. Os vírus não são espécies que compitam com outras espécies, que façam parte da luta entre espécies da qual só as mais adaptadas ao meio saem vencedoras; os vírus são, isso sim, parte das imposições do meio. Podem, eventualmente, destruir uma espécie ou, pelo menos, contribuir para que perca o seu estatuto de espécie dominante, mas nunca poderão usurpar-lhe o trono, pois dependem dela. Na luta pela sobrevivência, um vírus, embora sendo um organismo vivo, funciona mais como um factor externo (como a falta de alimento, a temperatura, etc.) do que como uma espécie que compete directamente com aquela que ataca. Neste sentido, a luta entre um hospedeiro e um parasita, que é aquilo que, no entender do Filipe, caracteriza a evolução em futebol, é completamente distinta da luta entre espécies pelo estatuto de "espécie dominante". Já demonstrei acima como a primeira analogia era falaciosa, como não funcionava comparar o que se passa em futebol com o que se passa no jogo da evolução. Se, por outro lado, pretender o argumento do Filipe defender-se com a analogia dos vírus e das vacinas, pior ainda. Os vírus não têm interesses evolutivos idênticos às outras espécies; a sua existência depende necessariamente da existência de espécies que lhes são superiores. Por aqui se percebe que o argumento não tem ponta por onde se lhe pegar.

Resumindo, a analogia de que o Filipe faz uso, entre futebol e evolução, tem vários problemas. O primeiro problema é que são jogos diferentes, consistindo o primeiro num jogo com regras fixas, enquanto o segundo é um jogo de regras variáveis. O segundo problema é ignorar que, no jogo da evolução, é o meio que estipula a evolução e a sucessão de espécies, e que não há propriamente adaptação, no sentido preciso do termo; no futebol, não: são as espécies que aprendem a adaptar-se ao meio em que habitam. Em terceiro lugar, há o problema de não perceber que, fixando-se um determinado conjunto de regras durante um determinado período de tempo, num determinado meio com várias espécies, a tendência é surgir uma espécie dominante, que é aquela que nasce com as características que mais se adequem às características fixas do meio. O quarto problema consiste em esquecer, talvez deliberadamente, que houve uma espécie que venceu já o jogo da evolução, espécie essa que já nem sequer está sujeita à variabilidade das características do meio, tal é o seu domínio. O quinto problema é a confusão entre luta entre espécies e luta entre hospedeiros e parasitas, que são coisas diferentes, obedecendo a contingências diferentes. Com tantos problemas, a coisa mais simpática que se pode fazer é condescender, dizendo que a analogia não funciona e o argumento não é bom.

Aquilo em que o Filipe crê, muito teoricamente, é que não há modos melhores do que outros de jogar futebol. O argumento que usa para justificar essa crença é, como se viu, altamente falacioso. Por conseguinte, não justifica coisa nenhuma. Só o faria se o futebol fosse, tal como o jogo da evolução, um jogo de regras flutuantes, que mudassem consoante as marés. Como não é, a comparação entre as duas coisas é um artifício falso e barato, que não serve de grande coisa. Por aqui se percebe que a sua crença, sem um argumento a sério que a justifique, não passa de uma crença tola, como qualquer crença que se possa ter, por mais absurda que seja. Crê nisto, portanto, o Filipe religiosamente, que é a única maneira de crer numa coisa que não faz sentido nenhum. O futebol é um jogo e, como qualquer outro jogo, por mais complexo que seja, tem necessariamente de possuir maneiras de se jogar melhor. O xadrez é um jogo igualmente complexo e, actualmente, evoluiu até um ponto em que os melhores jogadores têm uma vantagem quase decisiva por começarem o jogo com as brancas. Aliás, a própria ideia de evolução implica melhorar de algum modo: evolui a criatura que melhora a sua relação com o meio em que se predispõe a evoluir. Toda a História do Futebol é uma história de evolução neste sentido. Não é lícito afirmar, apenas porque sempre houve, até aqui, maneiras melhores de se jogar o jogo do que maneiras anteriores, que continuem a haver, ad eternum, formas de melhorar que se oponham a formas anteriores. O futebol constitui-se por um sistema rígido de regras (ao contrário do que acontece, por exemplo, em arte), e a tendência é, por isso, para que a evolução tenha um limite. De resto, nada disto implica, como é óbvio, que formas piores de jogar o jogo não possam vencer, pontualmente, formas melhores. Mas formas melhores ganharão mais vezes: e é esse o ponto de tudo isto.

Por fim, e já que se falou bastante de espécies dominantes, talvez fosse bom que certas pessoas percebessem que as espécies dominantes dos que falam de futebol não são aquelas que vêem mais jogos, nem aquelas que comentam mais jogos, nem aquelas que fazem mais continhas de algibeira, nem aquelas que apagam mais comentários, mas sim as que melhor desenvolvem as capacidades críticas, naturalmente adequadas ao seu objecto de estudo, que lhes permitam o domínio. Isso faz-se, mais do que perdendo tempo com asneiras do tipo das que falei acima, cultivando o espírito crítico, treinando as competências argumentativas, aceitando o desafio de discussões teóricas, etc. Sem isto, e por mais minúcia que se ponha em tudo o resto, não passará quem o faz de um coitadinho a quem muito se aplaude o esforço para memorizar a matéria que sai no teste, de modo a transitar de ano e a continuar a sua sofrida sobrevivência até ao fim da escolaridade obrigatória, repousando depois.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Miguel Rosa e os Glutões

Comissões, comissões e mais comissões - eis o que interessa aos glutões. Como é possível que, no estado actual da economia mundial, e sobretudo num defeso em que os principais clubes europeus têm optado por políticas de contratação bem mais conservadoras, os três maiores clubes portugueses se preparem para adquirir, em conjunto, perto de meia centena de jogadores? Não duvidando da qualidade de algumas dessas contratações, o excesso denuncia outras intenções que não o simples reforço dos respectivos plantéis. À cabeça de tudo isto está o Benfica. É claro que há ali jogadores talentosos, e que o plantel sairá reforçado por alguns daqueles atletas. Mas à custa de quê? Sem exagero, dois terços das contratações servirão mais para encher os bolsos de alguém do que para reforçar o que quer que seja. Que equipa é que contrata 3 guarda-redes na mesma época? Que equipa europeia, mesmo em tempo de pré-época, conta em simultâneo com seis laterais esquerdos? Claro que a lista de dispensas demora a ser feita, e que no final o plantel será emagrecido. Mas esta política de contratar por contratar não parece servir ninguém (nem Jesus, nem o Benfica) a não ser agentes externos ao jogo. Não quero, porém, entrar em especulações escusadas, nem me apetece muito falar de coisas que não digam propriamente respeito ao jogo. Dito isto, importa mencionar o caso de Miguel Rosa.

Para muita gente, é um jovem desconhecido. Não para mim. Não foi aqui antes mencionado por desconfiar que o seu trajecto a nível sénior dependeria de muita coisa que o jogador não podia controlar. Não me enganei. Ainda assim, e sobretudo porque os primeiros anos como profissional o justificam, creio que merecia o salto que esteve perto de se realizar. Miguel Rosa é um médio ofensivo, ou médio interior, que pode alinhar na direita, por exemplo, com muitíssima qualidade. Não é um criativo por excelência, um jogador de último passe, de drible fácil, mas é incrivelmente correcto nas suas acções, bom tecnicamente e inteligente. Não é um médio de trabalho, mas muitíssimo compridor das suas funções, abnegado, humilde. Talvez o pudesse comparar a Pereirinha, não tão virtuoso e veloz, mas talvez mais cerebral. Acho-o muito parecido também com Rúben Amorim, embora seja ligeiramente mais ofensivo. Aliás, jogou essencialmente nas costas do avançado, no Belenenses e no Carregado. Para mim, foi o melhor jogador que saiu das camadas jovens encarnadas nos últimos 5/6 anos, a par talvez de Nélson Oliveira. É melhor do que André Carvalhas (um novo Hélio Roque que era, para muitos, o melhor jogador encarnado do seu ano e que, entretanto, como seria de esperar, desapareceu do mapa); melhor do que David Simão, que apesar de ser um ano mais novo, teve a sua oportunidade na primeira liga bem mais cedo; bem melhor do que Romeu Ribeiro, a quem foram inexplicavelmente dadas muito mais oportunidades; e melhor do que Miguel Vítor ou Roderick Miranda, que são jogadores excessivamente valorizados. Como disse, não destaquei Miguel Rosa anteriormente porque tinha muitas dúvidas quanto ao seu aproveitamento futuro. É que, já nos escalões mais novos, ficava a impressão de que não o apreciavam condignamente. A maturidade que tinha a jogar, a inteligência, a excelência do critério, nada disso chegava. Preferia-se a extravagância de outros. E a falta de extravagância, estando nós, ainda por cima, a falar do Benfica, antecipava que não fosse aproveitado.

Certo é que as três épocas de segunda liga não fizeram com que Miguel Rosa se resignasse. No Estoril e no Carregado foi uma mais-valia. No Belenenses, confirmou-se como uma certeza. Tanto é que foi eleito o melhor jogador do segundo escalão português esta temporada. Ainda antes do troféu, anunciava o jogador, confessando que Rui Costa lhe garantira o regresso à Luz, que iria integrar o plantel encarnado no ano seguinte. Surpreendeu-me a notícia, sobretudo por duas razões: pela precocidade do seu anúncio, pouco tempo depois de a época transacta terminar, e por ter conhecimento de certos atritos entre o Benfica e a família do jogador. O que é certo é que Miguel Rosa iniciou mesmo os trabalhos de pré-temporada, sendo antes utilizado numa campanha, ao lado de Nélson Oliveira, Rúben Pinto e David Simão, para promover a ideia absolutamente falsa de que, esta época, o Benfica iria apostar na prata da casa. Enfim, em pouco tempo se percebeu que, afinal, o jogador não iria fazer parte dos planos do clube, e que nem na pré-época iria poder mostrar serviço. Começaram a surgir notícias de empréstimos a clubes da primeira liga e acabou novamente recambiado para o Belenenses. Para ser honesto, o desaproveitamento de jovens de qualidade não é coisa que me espante. Mas há qualquer coisa esquisita neste caso. Repare-se só no seguinte exemplo: André Almeida foi recrutado ao Belenenses e posteriormente emprestado ao Leiria; Miguel Rosa, que não só jogava no mesmo Belenenses, como foi o melhor jogador do Belenenses e o melhor jogador de toda a segunda liga, vai voltar a ser emprestado a uma equipa da segunda liga. Que sentido é que isto faz? Não haveria mercado para o jogador na primeira liga? E, mais do que isso, por que é que não parece haver interesse do Benfica em valorizar o jogador, emprestando-o a um clube mais competitivo?

É aqui que entram os glutões. Sim, o mesmo tipo de gente que tem tudo a ganhar com a contratação de camionetas de jogadores parece ter o poder para marginalizar o jogador e assim satisfazer a sua vontade como bem lhe apeteça. Convenhamos, Miguel Rosa volta este ano ao Belenenses por uma única razão: porque alguém não quer que ele venha a ter o sucesso que promete ter. A notícia que veio a público dava conta do interesse de Miguel Rosa permanecer perto de casa, e de ter recusado sistematicamente todas as propostas de clubes da primeira liga que apareceram (mais tarde, apareceu uma notícia contraditória, em que Miguel Rosa dizia que fora o Benfica que preferira emprestá-lo ao Belenenses). Francamente, isso não cheira nada bem, ainda por cima quando uma das propostas era do Vitória de Setúbal, que não é muito mais longe do que o Seixal. O pai do jogador afirma que foi o Benfica que recusou as propostas do Nacional, do Vitória de Setúbal, do Olhanense e do Feirense, forçando-o ao empréstimo ao Belenenses (acrescentou, aliás, que o Benfica lhe sugeriu, como única alternativa ao Belenenses, ficar uma época inteira a treinar sozinho). Não é por ser a versão do pai do jogador, mas por ser logicamente a mais inteligível, que é, a meu ver, a versão que faz mais sentido. As pessoas acham que é absurdo, por ser contra os interesses do clube o Benfica preferir emprestá-lo a um clube da segunda liga, mas a verdade é que é contra os interesses do clube ter praticamente 50 jogadores a fazer a pré-época e foi isso que se passou. O que se acontece é que, mesmo que estas coisas sejam contra os interesses do clube, favorecem os interesses de alguém. E é isso que está aqui em causa. Nenhuma das duas versões do caso, 1) ter sido o jogador a preferir a segunda liga, por poder ficar perto de Lisboa, e 2) ter sido o Benfica a preferir o Belenenses, parecem lógicas, porque não o são. O que falta nesta equação é a vontade de alguém que não serve nem o clube nem o jogador.

Em campo, além de virtuosíssimo, Miguel Rosa é um jogador trabalhador, abnegado, lutador. O seu benfiquismo é inatacável - basta ver como agradeceu ao Benfica, de forma até pouco razoável, o prémio de melhor jogador da segunda liga. A acusação de falta de profissionalismo, num jogador com este tipo de características, não faz sentido nenhum. Argumentam os que consideram que o responsável pela situação foi o Miguel Rosa que os clubes a que esteve ligado são todos da zona de Lisboa: Estoril, Carregado e Belenenses. E argumentam ainda que o Benfica teria todo o interesse em valorizá-lo na primeira liga. Sobre o primeiro argumento, sinceramente, não acho que haja nada de extraordinário. Ter Miguel Rosa preferido o Carregado a outra equipa da segunda liga não é nada de esquisito. E o certo é que ficar perto de casa, sobretudo quando as alternativas não são de nível superior, não me parece um mau critério. Esteve em três clubes da zona de Lisboa porque havia clubes da zona de Lisboa interessados nele. Ponto final. Nada nesse argumento joga a favor da teoria de que Miguel Rosa não tem ambição. Quanto ao segundo argumento, de facto faz sentido. Mas faz sentido, como disse acima, se acharmos que são apenas os interesses do Benfica que estão em jogo. E claramente não são. Já há alguns anos que tenho conhecimento dos problemas entre alguns dirigentes do Benfica e a família de Miguel Rosa (isto explica, aliás, que não tenha tido, nos últimos anos, o mesmo tipo de projecção pública que outros miúdos). O que me parece que terá acontecido foi que Rui Costa, de boa fé e reconhecendo-lhe o talento que tem, o contactou de maneira a que ele integrasse o plantel na época seguinte. A forma como Miguel Rosa anunciou a coisa indicava até que não ia fazer apenas a pré-época, mas concedo, ainda assim, que fosse apenas para isso que foi contactado. O problema é que nem a pré-época lhe permitiram. Que explicação há para isto? A meu ver, a entrada em cena de alguém que não quer o jogador no Benfica por razões pessoais, e por cima de quem a decisão de Rui Costa terá passado. Não sei quem será essa pessoa (ou pessoas), mas, por tudo o que sei, acerca do jogador, acerca do seu valor, acerca do caso em si, acerca dos problemas passados com a família, acerca da índole de grande parte dos dirigentes desportivos, esta conclusão é claríssima: Miguel Rosa volta agora para o Belenenses não porque não tem mercado na primeira liga, não porque o Benfica não está interessado em valorizá-lo, não porque é irresponsável e não tem ambição, não porque tem uma namorada em Lisboa e quer ficar perto dela (estes são os argumentos mais comuns), mas porque alguém, alguém com poder suficiente na estrutura do clube, tem problemas pessoais com ele ou com a família dele. Aliás, basta que se conheça minimamente os meandros do futebol para chegar a esta conclusão. E agora, para terminar, queria apenas lançar uma perguntinha, uma perguntinha que, por reunir indícios suficientes para que justifique que seja colocada, não é apenas uma perguntinha arbitrária e infundada. Como é que se chama o ex-gestor do futebol de formação do Benfica (curiosamente numa altura em que Miguel Rosa era juvenil e júnior e que, segundo consta, chegou a ser visto em altercações com o pai de Miguel Rosa), que regressou à estrutura encarnada para exercer a função de director do futebol profissional precisamente poucos dias antes de Miguel Rosa ser novamente escorraçado do clube? Uma pista: tem o mesmo nome de um parasita que costuma ser portador de doenças.

P.S. Muito do trabalho de casa em torno da discussão acerca das razões para o regresso do jogador ao Belenenses, principalmente no que diz respeito à posição do pai de Miguel Rosa nesta questão, foi feito no fórum do Ser Benfiquista.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Lições de Mestre (8)

Este texto não estava previsto, mas seria estúpido não aproveitar a oportunidade. E já que também não estava previsto que o jogador ficasse no plantel, junta-se tudo para falar de algo que merece ser falado, apesar de a minha opinião acerca do assunto ser já sobejamente conhecida. O que trago é uma jogada a acabar o jogo de apresentação do Sporting, frente ao Valência, e, a meu ver, um dos lances que melhor definem aquilo que, para mim, significa o termo "classe", quando aplicado ao jogo. Antes de falar daquilo que quero, vou perder algum tempo com a consequência que o lance teve, ou seja, com a possibilidade de cruzamento em zona muito mais privilegiada e com o lance de perigo criado pela equipa. Como o Jorge D. escreve neste texto, um cruzamento é como outro passe qualquer. Apesar de ouvirmos recorrentemente que uma equipa deve chegar à linha para cruzar, não creio que cruzar deva ser uma tarefa, nem individual nem colectiva, a ter em conta numa equipa de futebol. Depende da circunstância, das probabilidades de êxito, do posicionamento dos colegas em função do posicionamento defensivo do adversário. Nunca percebi a ideia de chegar à linha e cruzar lá para dentro, mesmo quando o jogador que cruza - o que é raro - olha para a área antes de cruzar. Entre outras coisas, o lance que trago mostra como um jogador com uma inteligência muito acima da média entende aquilo de que se está a falar. Por duas vezes podia ter cruzado, uma com o pé esquerdo, outra com o pé direito. Tinha colegas na área, arranjou espaço para o fazer, e era o que quase toda a gente achava que deveria ter feito. Ninguém o criticaria, como ninguém critica quem quer que seja que cruze uma bola para a área, por menos sentido que faça cruzar nessa ocasião. Quanto a mim, desde que pegou na bola que percebi que não era assim que iria terminar o lance. E percebi-o por uma única razão, porque sabia que o portador da bola se chamava Pereirinha.



Não sei se é possível definir melhor aquilo que entendo por "classe" como aquele atributo que é comum a um jogador de futebol e a um toureiro. Nos dias que correm, privilegia-se a intensidade, o fazer as coisas com a concentração máxima, o empenho, o esforço. Um jogador com classe é normalmente hostil a fazer as coisas com os dentes cerrados. Não é que não possa fazê-lo também, mas é algo que lhe macula a imagem. Fazer as coisas com calma, como se o gesto técnico mais complicado do mundo fosse a coisa mais fácil para aquela criatura, é o que define essa pessoa. Dá sempre a impressão de que se manda no jogo, de que os adversários são bonecos que se tira da frente sem grande esforço. Um jogador com classe faz as coisas difíceis parecerem fáceis, faz as coisas com graciosidade, dando a impressão de que, se as faz assim, com aquele desprezo todo, talvez pudesse fazer muito mais, se de facto se empenhasse. A meu ver, um dos principais problemas do futebol actual é não se priviligiar a classe acima de qualquer outro atributo. Imagine-se uma equipa em que os jogadores fazem tudo com classe e tem-se o Barcelona. Só para demonstrar o quão importante pode ser a valorização de tal atributo, olhe-se, por exemplo, para o que era Abidal antes de perceber que, ostentando classe, era muito mais jogador. Antes era um jogador cinzento, eficaz a defender, mas banalíssimo com bola. Agora parece um médio criativo a jogar a defesa, a parar a bola dentro da área defensiva, com vários adversários à ilharga, a dar toques em zonas perigosas, a sair a jogar onde mais ninguém se arriscaria a sair a jogar. Agora que descobriu o que é ter classe, parece outro jogador. Isso conseguiu-o porque o ambiente que o rodeia lhe mostrou que não há outro atributo mais importante que esse.

Muito sinceramente, o mais difícil, em qualquer arte, é fazer as coisas mais difíceis dando a impressão de que são fáceis. Em futebol não é diferente. É por isso que um jogador que consegue ter pormenores de classe não pode ser um jogador banal; é por isso que alguém que faz aquilo que Pereirinha fez neste lance tem de ser valorizado acima de qualquer outro jogador. Não está em causa o excelente trabalho a livrar-se dos dois primeiros jogadores, mas essencialmente a forma como os toureou posteriormente, como ameaçou cruzar e pôs a bola entre os dois, solicitando o colega nas costas deles. E não o fez de uma forma simples; fê-lo de tal maneira bem feito que, apesar de não ter dado velocidade à bola, os dois adversários ficaram sem capacidade de reacção. A isto chama-se classe. Tomou a melhor decisão, permitiu a um colega ficar numa posição bem mais privilegiada para cruzar do que a que tinha, e ainda humilhou dois adversários. Nas bancadas, o público gostou da faena. Mas, apesar de ter entusiasmado as bancadas como mais ninguém naquela noite, duvido que alguém se lembre de dizer que Pereirinha merecia mais a titularidade do que dois Joões Pereira. O que Pereirinha fez não está ao alcance de muitos. Mas há palermas que o acham banal, palermas para os quais nem sequer devia entrar nas contas de Domingos. Pois eu digo que, para além de Postiga e Matías Fernandez, ninguém tem mais classe que ele naquele plantel. O futebol tinha tanto a ganhar se as pessoas se deixassem de preocupar com atributos cristãos como a transpiração e a dedicação, e passassem a perceber o que distingue um grande jogador de futebol de um atleta medíocre que se esforça.

P.S.: Ao terminar o texto e ao rever o lance, percebi que um dos dois jogadores do Valência toureados era Daniel Parejo, um dos jogadores actualmente com mais classe no futebol espanhol. Um toureiro a tourear outro - não podia ser mais perfeito.