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Letra 1, espaço que me parece ter bastante qualidade e que aproveito para publicitar, argumenta Filipe Vieira de Sá, com base numa analogia que, apesar de interessante, carece de justificação, que o futebol, tal como o jogo da evolução das espécies, não converge para um ideal de perfeição. O que pretende, ao argumentá-lo, é defender a ideia de que, em futebol, não há uma fórmula que garanta o sucesso, e que esse sucesso depende, isso sim, da capacidade adaptativa da "espécie" ao "meio", sendo por isso natural que à "espécie dominante" de hoje se suceda amanhã outra "espécie dominante", melhor adaptada. Como é sabido, até porque escrevi coisas nesse sentido muito antes de o Barcelona de Guardiola ser a "espécie dominante" que é hoje, o tema interessa-me muitíssimo, e sustento uma opinião contrária à do Filipe. De um modo muito resumido, que espero sustentar melhor daqui para a frente, entendo o Barcelona de Guardiola como um salto evolutivo gigantesco (coisa de que falei
aqui) e, em muitos aspectos, decisivo. Contra esta ideia, defenderia o Filipe, se bem lhe entendo o argumento, que não existem, em futebol, saltos evolutivos decisivos, e que aquilo que a "espécie dominante" faz hoje define o "meio" ao qual quem vem atrás deverá adaptar-se, superando-o.
Importa, em primeiro lugar, referir que não creio que exista perfeição, nem fórmula que garanta sucesso continuado. Acredito, porém, que existem maneiras melhores de jogar do que outras, maneiras que garantam mais vezes o sucesso, e que o modelo futebolístico posto em prática pelo Barcelona ultrapassa, em qualidade, tudo o que foi feito antes. Penso assim por uma razão simples, porque o futebol é um jogo e, como qualquer jogo, possui um conjunto de regras que lhe limita as possibilidades. O jogo do galo, para dar o exemplo de um jogo simples, cujo conjunto de regras impõe limites óbvios, acaba invariavelmente empatado, sempre que jogado por dois jogadores minimamente conscientes das possibilidades ao seu dispor. Há jogos, obviamente, mais complexos (sendo o futebol um caso evidente), jogos em que as possibilidades são muito maiores, mas, no limite, passa-se o mesmo. Todo o conjunto de regras fixo, que é aquilo em que consiste, por definição, qualquer jogo, é um "meio" ao qual se adaptam melhor os que possuírem as características mais adequadas ao conjunto de regras com que se define esse "meio".
O que, em primeira instância, trai o raciocínio ao Filipe é que o "jogo" da evolução das espécies não esteve, ou não está, ao contrário de um jogo como o futebol, sujeito a um conjunto de regras fixas, e que é isso, no limite, que permite afirmar que não há perfeição que sirva de critério. Aliás, ao contrário do futebol, em que se foram descobrindo formas melhores de se contrariarem as imposições do "meio", e em que as "espécies dominantes" se sucederam por desenvolverem, por reacção ao meio, características mais adequadas ao conjunto predefinido de regras do meio (houve poucas alterações significativas às regras, ao longo da História do Jogo), no jogo da evolução das espécies são, por norma, as alterações no meio, ou seja, as alterações nas "regras do jogo", que ditam a melhor adequação de um certo conjunto de genes a esse meio. Para fornecer disto ilustração, recorro ao exemplo clássico das borboletas brancas antes da industrialização em Manchester. A borboleta de cor branca, que predominava naquela zona antes da industrialização, deu lugar, em menos de um século, ao predomínio de uma espécie de cor negra não por esta ter vencido a batalha da evolução, mas porque o meio o impôs. O que se passou foi que, antes da industrialização, a borboleta branca predominava por estar melhor "adaptada" às imposições do meio, por se confundir melhor com a vegetação da zona, assim escapando mais facilmente aos predadores. Mudando o meio, mudou-se também a facilidade que estas borboletas tinham para escapar aos predadores. Com a fuligem e a rápida mutação da cor da vegetação local, a borboleta negra passou a ter melhores características para escapar à predação e, ao fim de algumas gerações, passou a ser a espécie dominante. O que este caso evidencia é que, no que diz respeito à luta pela sobrevivência, são essencialmente as mutações no meio que determinam a sucessão das espécies. Aliás, é por isso que se chama "selecção natural", por as espécies que sobrevivem serem seleccionadas naturalmente, pelas contingências do meio, pelo Acaso. No que diz, portanto, respeito ao jogo da evolução das espécies, não se pode dizer que exista mérito evolutivo, pois a evolução depende integralmente das condicionantes exteriores. Tal não é o caso do futebol, em que a evolução se fez principalmente por as espécies terem modificado a maneira como reagiam às condicionantes exteriores que, salvo raras excepções, permaneceram inalteradas.
A analogia utilizada pelo Filipe é, assim, falaciosa. E é-o simplesmente porque um jogo como o futebol não está sujeito à inconstância regulativa a que o jogo da evolução esteve. Há, todavia, usos interessantes a fazer dessa analogia. Quando Darwin chegou às Galápagos, descobriu que a fauna e a flora das ilhas era radicalmente diferente de tudo o que conhecia. Isto permitiu-lhe conjecturar que o isolamento insular determinara um jogo evolutivo totalmente distinto do que se passara noutras zonas do globo. Ou seja, num meio com regras diferentes, princípios evolutivos diferentes. Encontrou ali espécies que não existiam em nenhum outro local simplesmente porque o meio lhes permitira a subsistência. O que quero sugerir com este exemplo é que, mesmo no mundo natural, se o meio for relativamente inalterável, há a tendência para certas espécies subsistirem ininterruptamente. A conclusão óbvia a tirar é a de que, se as espécies que melhor se adaptam às características de um meio tiverem a possibilidade de permanecer nesse meio, sem que haja alterações no sistema de regras do mesmo, a tendência é o domínio dessas espécies não mais ser posto em causa.
Além de tudo isto, parece esquecer-se o argumento do Filipe de que há uma espécie que venceu já o jogo da evolução das espécies: o homem. E não só o venceu como já nem sequer o joga. De tal modo a vitória foi clara que é a única espécie que está livre das imposições do meio. É evidente que o homem não é uma criatura perfeita, e que teria dificuldades em sobreviver em determinados habitats, mas é a criatura que melhores características reuniu para fazer face às características gerais do meio em que habita e que controla plenamente: o planeta. A lei do mais forte e a selecção natural deixaram de se aplicar ao homem há muito tempo, e a menos que se dê uma mudança radical no meio, um cataclismo qualquer que destrua os pilares civilizacionais em que nos constituímos, não me parece crível que o homem venha algum dia a perder o estatuto de espécie dominante. O argumento que estou a fazer consiste em afirmar que não é preciso ser perfeito, no sentido utópico da palavra, para se vencer definitivamente o jogo da evolução; basta possuir as características - ou construi-las - que melhor se adequam às imposições do meio. No caso do homem, esse jogo começou a ser ganho no momento em que se começou a civilizar. Civilizar-se, aliás, significa precisamente desobedecer à lei do mais forte. Assim, ao desobedecer à mais profunda lei da natureza, adaptou-se o homem o melhor possível ao conjunto de regras que constitui o meio em que habita, e não mais ficou sujeito à dança da sucessão de espécies dominantes. Pode dizer-se, inclusivamente, que o homem não é sequer a espécie dominante do planeta, mas a espécie vencedora. Seria "dominante" se fosse aquela que, temporariamente, melhor se adapta ao meio. Mas, neste momento, é muito mais do que isso: é aquela que controla o meio e que dita as regras do jogo.
Deixem-me agora recuperar o argumento do Filipe acerca da sucessão de "espécies dominantes" em futebol, para mostrar como o argumento "mete a pata na poça" e torna clara a falácia a que se oferece. Segundo o Filipe, o que se passa em futebol é que o "meio" é definido por aquilo que fazem as "espécies dominantes", e que as restantes espécies se adaptam não ao conjunto de regras de que estão rodeadas, mas sim às características evolutivas da "espécie dominante". Segundo, portanto, o Filipe, a evolução em futebol depende de reacções não ao meio, mas às espécies que habitam o meio. Não é assim que funciona o jogo evolutivo das espécies, e, como tal, toda a sustentabilidade do argumento, que consiste na analogia com a teoria da "selecção natural", se desmorona. Parece-me, porém, que boa parte da confusão do argumento consiste em confundir a teoria geral da selecção natural com a luta particular que se dá no interior de um organismo, entre um hospedeiro e um parasita. É que, a dada altura do seu texto, dá o Filipe a entender que as restantes espécies, para sucederem ao domínio catalão actual, precisam agora de vacinar-se contra a doença viral que é o Barcelona. E, de repente, aquilo que era uma teoria simpática e promissora, consistindo numa analogia com a teoria da selecção natural, passa a ser uma coisa esquisita que consiste em aproximar a espécie dominante numa determinada altura da História do Futebol de um vírus para o qual ainda não se formaram anticorpos que o debelem. No final do seu texto, portanto, a teoria da sucessão das espécies dominantes em futebol é fundamentalmente uma analogia com a relação entre organismos hospedeiros e organismos parasitários: a vacina que debela a "espécie dominante" do vírus sucede ao vírus; gerações depois, tendo certas espécies secundárias do vírus sobrevivido ao ataque da vacina, um novo vírus volta a suceder à vacina; nova vacina, consistindo agora em anticorpos contra este novo vírus, volta a suceder ao vírus; e por aí em diante. O artigo, principiando com uma premissa que, como demonstrei, é falaciosa, acaba pois a falar de uma coisa completamente diferente, embora igualmente falaciosa, como adiante tornarei claro.
Como organismos parasitários que são, os vírus precisam de organismos hospedeiros que lhes suportem a existência. Ainda que, aparentemente, estejam em competição com eles, não é verdade que façam parte do mesmo jogo a que os outros estão entregues. Os vírus não são espécies que compitam com outras espécies, que façam parte da luta entre espécies da qual só as mais adaptadas ao meio saem vencedoras; os vírus são, isso sim, parte das imposições do meio. Podem, eventualmente, destruir uma espécie ou, pelo menos, contribuir para que perca o seu estatuto de espécie dominante, mas nunca poderão usurpar-lhe o trono, pois dependem dela. Na luta pela sobrevivência, um vírus, embora sendo um organismo vivo, funciona mais como um factor externo (como a falta de alimento, a temperatura, etc.) do que como uma espécie que compete directamente com aquela que ataca. Neste sentido, a luta entre um hospedeiro e um parasita, que é aquilo que, no entender do Filipe, caracteriza a evolução em futebol, é completamente distinta da luta entre espécies pelo estatuto de "espécie dominante". Já demonstrei acima como a primeira analogia era falaciosa, como não funcionava comparar o que se passa em futebol com o que se passa no jogo da evolução. Se, por outro lado, pretender o argumento do Filipe defender-se com a analogia dos vírus e das vacinas, pior ainda. Os vírus não têm interesses evolutivos idênticos às outras espécies; a sua existência depende necessariamente da existência de espécies que lhes são superiores. Por aqui se percebe que o argumento não tem ponta por onde se lhe pegar.
Resumindo, a analogia de que o Filipe faz uso, entre futebol e evolução, tem vários problemas. O primeiro problema é que são jogos diferentes, consistindo o primeiro num jogo com regras fixas, enquanto o segundo é um jogo de regras variáveis. O segundo problema é ignorar que, no jogo da evolução, é o meio que estipula a evolução e a sucessão de espécies, e que não há propriamente adaptação, no sentido preciso do termo; no futebol, não: são as espécies que aprendem a adaptar-se ao meio em que habitam. Em terceiro lugar, há o problema de não perceber que, fixando-se um determinado conjunto de regras durante um determinado período de tempo, num determinado meio com várias espécies, a tendência é surgir uma espécie dominante, que é aquela que nasce com as características que mais se adequem às características fixas do meio. O quarto problema consiste em esquecer, talvez deliberadamente, que houve uma espécie que venceu já o jogo da evolução, espécie essa que já nem sequer está sujeita à variabilidade das características do meio, tal é o seu domínio. O quinto problema é a confusão entre luta entre espécies e luta entre hospedeiros e parasitas, que são coisas diferentes, obedecendo a contingências diferentes. Com tantos problemas, a coisa mais simpática que se pode fazer é condescender, dizendo que a analogia não funciona e o argumento não é bom.
Aquilo em que o Filipe crê, muito teoricamente, é que não há modos melhores do que outros de jogar futebol. O argumento que usa para justificar essa crença é, como se viu, altamente falacioso. Por conseguinte, não justifica coisa nenhuma. Só o faria se o futebol fosse, tal como o jogo da evolução, um jogo de regras flutuantes, que mudassem consoante as marés. Como não é, a comparação entre as duas coisas é um artifício falso e barato, que não serve de grande coisa. Por aqui se percebe que a sua crença, sem um argumento a sério que a justifique, não passa de uma crença tola, como qualquer crença que se possa ter, por mais absurda que seja. Crê nisto, portanto, o Filipe religiosamente, que é a única maneira de crer numa coisa que não faz sentido nenhum. O futebol é um jogo e, como qualquer outro jogo, por mais complexo que seja, tem necessariamente de possuir maneiras de se jogar melhor. O xadrez é um jogo igualmente complexo e, actualmente, evoluiu até um ponto em que os melhores jogadores têm uma vantagem quase decisiva por começarem o jogo com as brancas. Aliás, a própria ideia de evolução implica melhorar de algum modo: evolui a criatura que melhora a sua relação com o meio em que se predispõe a evoluir. Toda a História do Futebol é uma história de evolução neste sentido. Não é lícito afirmar, apenas porque sempre houve, até aqui, maneiras melhores de se jogar o jogo do que maneiras anteriores, que continuem a haver, ad eternum, formas de melhorar que se oponham a formas anteriores. O futebol constitui-se por um sistema rígido de regras (ao contrário do que acontece, por exemplo, em arte), e a tendência é, por isso, para que a evolução tenha um limite. De resto, nada disto implica, como é óbvio, que formas piores de jogar o jogo não possam vencer, pontualmente, formas melhores. Mas formas melhores ganharão mais vezes: e é esse o ponto de tudo isto.
Por fim, e já que se falou bastante de espécies dominantes, talvez fosse bom que certas pessoas percebessem que as espécies dominantes dos que falam de futebol não são aquelas que vêem mais jogos, nem aquelas que comentam mais jogos, nem aquelas que fazem mais continhas de algibeira, nem aquelas que apagam mais comentários, mas sim as que melhor desenvolvem as capacidades críticas, naturalmente adequadas ao seu objecto de estudo, que lhes permitam o domínio. Isso faz-se, mais do que perdendo tempo com asneiras do tipo das que falei acima, cultivando o espírito crítico, treinando as competências argumentativas, aceitando o desafio de discussões teóricas, etc. Sem isto, e por mais minúcia que se ponha em tudo o resto, não passará quem o faz de um coitadinho a quem muito se aplaude o esforço para memorizar a matéria que sai no teste, de modo a transitar de ano e a continuar a sua sofrida sobrevivência até ao fim da escolaridade obrigatória, repousando depois.