segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Entrega

É usual referir-se, a propósito da prestação de determinado jogador em determinado desafio, a sua entrega ao jogo. Muitas vezes, é até o critério usado para distinguir uma boa exibição de uma má exibição. Dois erros subjazem a tais apreciações: 1) o de achar que aquele jogador que demonstra maior disponibilidade física, que luta mais, que vai mais vezes ao choque, que procura remar contra a maré usando a agressividade, tem mais vontade de ganhar do que os restantes colegas e 2), por arrasto, imaginar que a entrega ao jogo se evidencia pelo empenho físico, pela presença no centro de jogo, pela discussão de todas as bolas.

Entregar-se ao jogo é tudo menos uma questão física. Pelo contrário, "dar o litro", usar todas as energias ao seu dispor para impedir o adversário directo de agir, correr mais que os colegas são, por norma, sinais de falta de entrega. Isto porque a "entrega" não é, ou não deveria ser, uma coisa física. O futebol, apesar de 99,9% dos jogadores, treinadores, comentadores e adeptos não o saberem, é um jogo essencialmente intelectual. Se há coisa, portanto, que um jogador deve entregar de si, é o intelecto. Entregar-se ao jogo significa ceder às exigências tácticas do treinador, ceder àquilo que se lhe pede; significa convencer-se das suas limitações e não as aceitar, jogando sempre, ainda que isso lhe seja complicado, de modo a melhorar-se. Por entrega entende-se então a predisposição para agir em conformidade com o que é contrário à sua natureza, com o que é contrário ao que é fácil de fazer. Um jogador que se entrega é aquele que arrisca sair a jogar quando o fácil seria dar um pontapé para a frente; é aquele que, apertado, tenta dominar a bola e pô-la junto à relva para dar seguimento à jogada; é aquele que tenta desarmar o mais lealmente possível pois, não recorrendo à falta, é obrigado a desenvolver outras competências; é aquele que está o mais possível concentrado, de modo a cumprir o melhor possível o seu papel; é aquele que procura a melhor solução, ainda que seja a mais difícil. Estes são os únicos que põem os interesses colectivos à frente dos seus. Aliviar quando não é estritamente necessário, apenas para se salvaguardar de um erro, jogar o mais longe possível para que um eventual erro não aconteça perto de si, cabecear para longe quando poderia dominar e jogar para o lado, correr feito maluco para desarmar um adversário sem ter atenção ao posicionamento dos colegas e de toda a sua equipa, desarmar com agressividade excessiva, correndo o risco de cometer faltas escusadas, jogar num companheiro que, embora tenha condições de receber a bola, vai ficar sem apoios, apenas porque essa era a sua opção mais fácil, são acções de quem não se entrega ao jogo.

Entregar-se ao jogo não tem nada a ver com transpirar, com quilómetros corridos ou com demonstrações de virilidade. Entregar-se ao jogo é aceitar os seus defeitos e procurar melhorá-los, é reconhecer que o futebol é um jogo complexo e que a simplicidade não leva a lado nenhum. Isto, para muita gente, será complicado de perceber, mas corresponde à mais pura das verdades. Muitas vezes, diz-se que os jogadores complicam o que é simples e que, quanto mais simples os processos, mais eficazes. Isso não é verdade. O futebol não é um jogo simples. É até muitíssimo complexo. Se há equipas cujos processos parecem simples, é porque os jogadores têm a capacidade de tornar o que é complexo em simples. Nada mais. O futebol é complexo e exige muito do intelecto dos jogadores. Aqueles que mais se entregam são aqueles que procuram não simplificar as coisas, só porque lhes é mais fácil. Muitas vezes, estes jogadores são acusados de inventar, de não jogarem simples e até de falta de vontade. Isto é errado. Não raro, estes jogadores têm uma consciência mais apurada que todos os outros e sabem que, em certas situações, é preciso inventar, é preciso complicar, ainda que, a título individual, isso possa trazer-lhes complicações. Ao colocarem os interesses colectivos à frente dos seus, arriscam-se a serem condenados pela percepção errada que os outros têm das coisas.

Resumindo, a entrega ao jogo, esse mito urbano, é algo que só faz sentido a nível intelectual. Aqueles jogadores que referem, no final dos jogos, que apesar de não terem ganho, deram tudo o que tinham, raramente estão correctos. Dar tudo o que se tem não é dar toda a disponibilidade física que possuem, não é despender todas as energias ao seu dispor; é, isso sim, fazê-lo de uma maneira correcta, pensando sempre se cada pingo de suor está a ser empregue de forma inteligente e pensando sempre que, por mais difícil e custosa que seja cada acção, se deve tentar ser capaz de coisas cada vez mais difíceis. Entregar-se ao jogo tem, pois, muito pouco a ver com aquilo que Liedson ou Bynia fazem, só para dar alguns exemplos. Aqueles que mais se entregam são, normalmente, muito mais discretos do ponto de vista da agressividade. Mas o povo quer é empenho físico, quer é choques em contramão, quer é sangue, suor e lágrimas. É compreensível: afinal, se uma divindade descesse ao mundo dos homens, facilmente passaria por intrujão. A bitola do povo, por norma, está ao nível das suas competências intelectuais. Pedir a um público essencialmente analfabeto para ver num jogo mais do que aquilo que o seu intelecto estaria disposto a dar, caso fossem jogadores, seria como pedir a São Francisco de Assis que se tornasse materialista.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Brolin

"O poeta é igual ao príncipe das nuvens
que se ri do arqueiro e afronta a tempestade;
exilado na terra e no meio dos apupos,
as asas de gigante impedem-no de andar."

Charles Baudelaire, "O Albatroz"

Este poderia ser um texto sobre a carreira de um grande jogador, uma homenagem aos êxitos de um dos maiores jogadores da sua geração e uma forma de recordar, com prazer, o futebol alegre de Tomas Brolin. Não será nada disso. O que Maradona disse dele ilustra quase tudo o que ele foi: "um sueco com habilidade sul-americana. Pena foi que se tivesse lesionado e não tenha podido dar tudo o que tinha". Com efeito, Brolin foi uma aberração, um nórdico com pés e imaginação de sul-americano que foi uma lufada de ar fresco no seu país, que encantou o mundo do futebol até ao momento em que partiu a perna. Para muitos, esta lesão afastou-o do trilho certo e foi a principal responsável pelo seu declínio enquanto jogador. Não concordo com isto. Voltei a vê-lo jogar depois disso e ainda havia nele a antiga chama de campeão. O problema terá sido mais mental que físico.

Quem se lembra dele, lembra-se de alegria, de fantasia, de pura habilidade e, sobretudo, de uma paixão avassaladora por este desporto. Brolin não era só mais um jogador talentoso; era muito mais que isso. Ainda assim, o seu talento foi ímpar naquele país, não obstante Henrik Larsson ter sido eleito, há poucos anos, o melhor jogador sueco de todos os tempos. Aliás, lembrar que Larsson ficará na História à frente de Brolin é até a maneira mais adequada de iniciar um texto sobre o prodígio nórdico. É que, se há alguém a quem o futebol traiu, esse alguém é Tomas Brolin. Larsson é apenas dois anos mais novo que Brolin e jogou na mesma altura que ele, sem nunca atingir o patamar de excelência do primeiro. Compará-los, além de ser impossível, pois o talento de um foi inegavelmente superior ao do outro, chega até a ser sacrílego.

Disse que Brolin não foi apenas um jogador porque tinha, como poucos, uma paixão enorme pelo jogo. Isso via-se na forma alegre, jovial, pueril e desinibida com que jogava. Nenhum sueco para além dele - arrisco dizê-lo - manifestou tamanha alegria a jogar futebol. Os seus dribles, a facilidade de passe, a magia, a classe, foram únicos. Chegou a ser eleito o quarto melhor jogador de 1994 e, depois do brilhante Mundial de 94, o Barcelona pensou recrutá-lo. Tal não aconteceu e a carreira de Brolin teria uma viragem abrupta. Vítima de um desporto aviltante, da incompetência de treinadores e da estupidez vigente, Brolin não voltaria a ser o mesmo. O seu futebol, para sobreviver, precisava de se alimentar daquela paixão que sempre manifestara - essa era a sua motivação. E foi isso que Brolin perdeu.

Ao ingressar no Leeds United, Brolin encontrou um futebol onde o músculo se sobrepõe à técnica, onde o jogo estava castrado e era apenas um pretexto para medir capacidades atléticas. Em Inglaterra, a magia, a paixão, o prazer não existiam. O futebol, e tudo o que o envolvia, era em terras de Sua Majestade uma luta, um confronto, e não um jogo. Se Brolin quisesse evidenciar-se pelo seu poderio físico, teria sido pugilista. Se escolheu o futebol, foi porque o futebol é muito mais do que uma desculpa para se pôr em combate dois pares de hormonas. Em Inglaterra, encontrou uma cultura primitiva, bárbara no sentido lato de bárbaro, uma cultura para quem o futebol servia de estímulo a um espírito animalesco. Em Inglaterra, não se jogava futebol; mediam-se vontades, músculos e graus de irracionalidade. Sendo o futebol, para Brolin, precisamente o oposto, depressa se tornou desnecessário. A desmotivação foi causa e consequência do pouco uso que passou a ter. Ao mesmo tempo que ia deixando de ser opção, ia perdendo o amor que tinha ao jogo. A inteligência, a classe, e o prazer abandonaram-no, mas apenas porque o futebol, como ele o via, o abandonara primeiro.

Aos 28 anos, após mais alguns anos de pouca valia, agastado com a relação com o jogo, Brolin decidiu desistir. Não desistiu, como tantos outros, porque uma lesão o tinha incapacitado, mas sim porque o futebol o tinha enganado. Tornara-se de tal forma inteligente, de tal forma diferente daquilo que a esmagadora maioria que anda no futebol é, que não era compreendido. Sem capacidade para contrariar a incompreensão de que foi vítima, refém num mundo mesquinho, pequeno, desambicioso e estúpido, não tinha outra saída. Foi perdendo a paixão pelo jogo de forma gradual até que ela se extinguiu por completo. A 12 de Agosto de 1998, tornou oficial a decisão. Eis o canto do cisne:

"Estou aqui para dizer se vou ou não continuar a jogar futebol. Decidi desistir. Já andava a pensar desistir há muito tempo; pensava em desistir antes de assinar pelo Crystal Palace, mas eles convenceram-me a não o fazer. Estou muito contente por o Crystal Palace me ter dado a oportunidade de jogar futebol. Mas, depois da época terminar, estava ainda mais convencido a desistir. Gostaria de permanecer no Crystal Palace, mas não tinha qualquer motivação. Tentei assistir a alguns jogos do Campeonato do Mundo de França, mas não ajudou. Preferia, em vez disso, jogar golfe. Não tenho motivação para continuar a este nível."

Este foi, pois, muito mais que um texto de homenagem, um lamento. O futebol, infelizmente, continua a ser um desporto preferencialmente para selvagens e para bestas. Em futebol, ser civilizado, possuir uma inteligência acima da média, ser cordato, educado, puro, não é importante. E não o é porque, salvo raras excepções, é um desporto de gente sem escrúpulos, para incultos, para fanáticos, para cobardes, para hipócritas, um desporto que serve para libertar o ser irracional que há dentro de cada um. Dificilmente os génios teriam lugar no meio de tanto lixo...

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Coragem...

"Não é obrigatório que só por ver como as características da equipa não favorecerem uma cultura de posse (indo assim passar a maior parte do jogo sem bola) que o treinador deva optar logo por um jogo mais directo, abdicando do que seria o seu modelo, afinal as ideias de jogo que considera a melhor forma de jogar bom futebol."

Luis Freitas Lobo, in "Porque «jogar bem» é específico".


Da mesma maneira que não é fácil educar bem uma criança, colocar uma equipa a jogar futebol de qualidade é uma tarefa que envolve alguma complexidade. Requer tempo, perseverança, disciplina, metodologia, discernimento e coragem, muita coragem. A coragem necessária para impor o modelo que preconizamos, assim como a interpretação do mesmo.

Para alguém que nunca andou em nenhum dos dois, será sempre mais complicado conduzir bem um automóvel que uma parelha de cavalos; no entanto, os benefícios de optar pelo primeiro sobre o segundo (salvo raras excepções) é evidente .

Não é fácil impor um modelo que, por ser mais exigente, vai encontrar mais resistência por parte de uma significativa fatia dos jogadores. Aqui importa realçar a concepção de "exigente": normalmente, quando se fala em exigência e entrega, pondera-se apenas factores físicos, coisa de que discordo totalmente. A exigência não se pode resumir a esforço físico, como se de um cavalo de corrida se tratasse. A exigência terá de passar por uma interpretação correcta, de cada jogador, do que o modelo de jogo escolhido requer. Ou seja, é importante que da parte dos jogadores haja disponibilidade intelectual para compreender o modelo de jogo.

Assim, quanto mais exigente for o nosso modelo, maior será a resistência encontrada pelo treinador. A verdade é esta: é muito mais fácil optar por um estilo directo, que separe sectores, que parta o jogo em dois momentos, que escolha a marcação individual etc., do que escolher um modelo de jogo que, apesar de lhe permitir ser mais forte como equipa, vai dar mais trabalho a criar automatismos.

Uma filosofia de jogo que passe por ter um bom jogo posicional, com uma boa posse e circulação de bola, com as transições defesa/ataque e ataque/defesa bem definidas, que defenda à zona, etc., é algo que requer algum tempo até se atingir os objectivos que se pretendem. Todavia, um modelo desta natureza apresenta um potencial e uma capacidade evolutiva que um modelo como o que foi citado anteriormente não possui. E isto está relacionado com a exigência que um e outro apresentam.

E aqui a obrigação do treinador passa por arranjar estímulos para que os seus "pupilos" interpretem bem o que lhes é pedido. A partir de situações que lhes facilitem a compreensão de todas as virtudes do modelo proposto pelo seu técnico, os jogadores terão de compreender que, apesar de mais exigente, aquela filosofia é a melhor. E não o contrário. Ou seja, não é admissível que a incapacidade inicial de uma parte (seja ela grande ou não) do plantel obrigue o treinador a optar por um modelo mais "pobre", só porque este é mais fácil de interiorizar. Até porque esta opção acaba por ser penalizadora para os jogadores que demonstram competência para colocar o modelo de jogo pretendido em acção. O nivelamento quer-se por cima, nunca por baixo.

A competência de um treinador terá de compreender, sempre, vários elementos: astúcia táctica, capacidade de análise do jogo e dos próprios jogadores, liderança, metodologia de treino, disciplina, carácter e coragem. Mais uma vez, coragem. Coragem para não ser apenas mais um, coragem para não se vender, para não cair no erro de ser mais uma "puta" no futebol, procurando os resultados no imediato a qualquer custo. Porque o futebol, a evolução do mesmo, merece melhor.

domingo, 14 de setembro de 2008

Certezas...(11)

Agora que se extinguiu a euforia inicial, depois de todas as patetices ditas, após um drible mais vistoso, após se negligenciar o que o realmente o distingue de tantos outros, ele começa a aparecer. Tímido nos modos, mas exuberante no seu jogo, joga com todo o tempo do mundo, porque já decidiu(quase sempre bem!) num segundo, o que outros, com o dobro do tamanho, nem com todo o tempo do mundo compreendem.

Corpo de miúdo, mas joga, corre, recupera, pensa e executa como poucos homens. Este, realmente, não engana. Se o quiserem encontrar, é só procurar pelo... Rabiu

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Subir a marcar

Soube deste conceito e ainda hoje ando a pensar nele: subir a marcar! A ideia é fazer com que a equipa suba no terreno de jogo, ou seja, em posse de bola, sempre com as referências de marcação por perto. Pressupõe então que, enquanto os avançados se divertem à procura da bola que foi pontapeada de qualquer maneira para a frente, os defesas e os médios encurtem o espaço e subam no terreno acompanhando os adversários directos, que devem marcar em todo o campo. O energúmeno que disse isto é treinador. Gritou-o para dentro de campo, exigindo aos seus jogadores que cumprissem esse desígnio. "Subam a marcar!" - disse, com toda a convicção. Subir a marcar é, sem dúvida alguma, um conceito espectacular. Numa equipa que jogue com este conceito em mente, um jogador que se desmarque está obrigatoriamente a infringi-lo. Numa equipa assim, não há desmarcações. O que é imperativo é que nunca se largue o adversário, mesmo quando a equipa tem a posse de bola, mesmo quando está a subir no terreno. Isto é fabuloso. Uma equipa assim não é formada por jogadores, mas por sombras; os jogadores são parasitas e o seu único jogo advém do erro do adversário. Numa equipa assim, os jogadores têm meio toque para chutar para onde estiverem virados. As suas acções, defensivas e ofensivas, resumem-se a maltratar a bola e a fazerem de autocolante. Subir a marcar é mesmo um conceito fascinante. Haver treinadores assim é dos maiores atentados que me lembro ao progresso da humanidade. Jaime Pacheco continua a fazer escola...

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Sondagens (8)

À pergunta "Quem vai ser o campeão nacional 2008/2009?" responderam 24 pessoas. O Sporting, talvez fruto da evolução sustentada do plantel, obteve tantos votos quantos o Porto, ou seja, 9. O Benfica obteve 6 votos, o que revela que as expectativas, para boa parte das pessoas, estão em baixo. Entretanto, o campeonato começou e a tendência parece inclinar-se nesse sentido. Apesar de tudo, a votação equilibrada evidencia a opinião geral de que este campeonato será bem mais competitivo do que o anterior e que, à partida, não há uma equipa mais preparada que outra. O Benfica parece partir mais atrás, também fruto da revolução que o plantel e o modo de trabalhar sofreram. Na supertaça, o Sporting voltou a mostrar que é o mais forte em duelos entre rivais, mas o campeonato ganha-se contra os pequenos e durante 30 jogos. Nesse particular, cresce em mim a curiosidade de ver em acção, durante uma prova de regularidade, 3 sistemas bastante distintos e potenciados quase ao máximo (Jesualdo, Paulo Bento e Quique são treinadores competentes, dentro daquilo que defendem). Mais do que o confronto entre emblemas, este campeonato vai também ser, portanto, um confronto de ideologias. E, neste nosso campeonatozinho, poder-se-ão tirar boas ilações quanto à utilidade das mesmas em provas de resistência e regularidade.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Criatividade e acaso...

"Nenhuma outra actividade é tão continuamente e universalmente influenciada pelo acaso. E por intermédio do acaso, o acidental e a sorte desempenham um papel da maior importância na guerra." (in Clausewitz, On War, Liv.1, Cap.1, p.85)

Não direi que Clausewitz tenha sido o primeiro pensador estratégico a conferir ao acaso e à incerteza a devida importância. No entanto, podemos afirmar que ele conseguiu com enorme discernimento perceber a importância das vertentes não-lineares que caracterizam os sistemas complexos, como é o caso da doutrina a que ele se entregou (a guerra), mas que se pode a aplicar a outros exemplos que terão mais afinidade com esse objecto do que se poderia julgar à partida (pelo menos, para alguns).

E é a partir da sua interpretação da arte da guerra, e das variantes que a condicionam, que vamos defender à importância dos factores intelectuais na abordagem ao processo de combate, ficando ao nosso encargo a analogia com o futebol.

"A arte da guerra lida com forças vivas e morais. Por consequência, nunca pode atingir o absoluto, ou a certeza; restará sempre uma margem para a incerteza, tanto nas coisas grandes como nas mais pequenas"
(in Clausewitz, On War, Liv.1, Cap.1, p.86)


A constante evolução no futebol, mormente no que toca a factores relacionados com as abordagens feitas ao jogo pelos mais variados técnicos, tem como objectivo o maior controlo possível sobre as inúmeras variáveis que compõem um jogo de futebol. Procura-se “fabricar” um ambiente que seja familiar à equipa e que vá de encontro a um formato que lhes permita retirar o máximo rendimento possível das características da mesma.

Através das mais avançadas metodologias e abordagens ao jogo, juntamente com uma vasta panóplia de informações, poderemos conceber um quadro de previsões e expectativas bem conseguido. Todavia, estamos sempre sujeitos aos caprichos do acaso e da incerteza. Ralf Dahrendorf definiu esta tentativa de controlar algo tão complexo, neste caso um jogo de futebol, como "uma marcha activa para o desconhecido".

Ter a consciência das nossas características, das nossas qualidades e dos nossos defeitos, relacioná-las com as características dos nossos adversários, para conseguirmos reproduzir da forma mais fiel possível o cenário em que irá decorrer o jogo, é uma das chaves para o sucesso de uma equipa. A partir daqui, poderemos trabalhar, com base nas probabilidades que esse cenários nos concedem, a melhor maneira de nos impormos ao adversário. Atenção, não quero dizer com isto que vamos abdicar do nosso modelo de jogo; é precisamente o oposto, pretende-se criar condições para que seja mais fácil implementar a nossa ideia de jogo.

Acções recíprocas a vários níveis, quer entre colegas de equipa, quer entre adversários, tornam complicado controlar o embate entre adversários. Por muito "apurados" que sejam os nossos princípios de jogo e apesar da importância dos mesmos para implementação da nossa filosofia e organização, estes são insuficientes para dar resposta ou compreender as situações que surgem pela fricção entre duas forças antagónicas. Ou seja, a estratégia delineada para cada jogo não passa de um ideal que se pretende. Como tal, dificilmente os moldes desejados se proporcionarão como pretendemos.

A vulnerabilidade de um jogo de futebol a perturbações causadas por pequenos incidentes, leva a que as equipas sejam constantemente colocadas perante situações de conhecimento imperfeito, ou seja, situações em que o trabalho desenvolvido nos "bastidores" não as pode prever ou trabalhar.

Clausewitz defendia que na guerra, apesar de toda a táctica e estratégia implícita na execução da mesma, existe um sem-número de situações que leva a um conhecimento imperfeito da situação.

"..., é porque o acto de guerra não é um puro cálculo matemático, mas uma actividade actividade conduzida no seio das trevas, ou quando muito numa fraca penumbra..."
(in Clausewitz, On War, Liv.VII, Cap.XV, P.665)

A única maneira de escaparmos à incognoscibilidade do futuro estará no “coup d’oeil”, ou seja, na capacidade de descobrir num labirinto de incertezas a solução que, apesar de ser a melhor, e mais eficaz, nem sempre é visível aos olhos de todos. Um futebolista, muitas vezes, encontra-se na mesma situação.


É neste ponto que encontramos a importância de contar com jogadores de grande criatividade, pois são estes que mais facilmente conseguem tirar partido do improviso. É a criatividade que melhor resposta consegue dar aos problemas imprevisíveis. No entanto, temos tendência para confundir criatividade com números de circo, o que leva a que consideremos jogadores sem qualquer tipo de engenho como criativos.

Criatividade nem sempre é sinónimo de uma grande qualidade técnica, aliás, um jogador por não ser tão evoluído tecnicamente até poderá ser mais criativo devido a esse handicap: a necessidade de contornar os problemas que vão surgindo, com algo que não seja a capacidade técnica, ou atributos físicos, impõe que estes jogadores sejam obrigados a encontrar mais soluções do que as que estão ao alcance de todos os outros. Obviamente que isto não se aplica a todos os jogadores que são limitados tecnicamente, ou seja, só por serem limitados tecnicamente não vão ser criativos, mas os jogadores que possuam um pensamento divergente, facilmente encontrarão nesta dificuldade intrínseca uma fonte de estimulo à sua criatividade.

Mas o que é a criatividade num jogador de futebol? Como a reconhecemos? Será que apenas os jogadores que ocupem posições mais ofensivas poderão ser denominados como tal? Eu estou completamente em desacordo com este sofisma. Criatividade não é uma característica exclusiva de uma função, ou de uma fracção do nosso jogar. Não tem de ser obrigatoriamente exuberante. Às vezes a maneira mais criativa é a mais discreta. Por exemplo, muitas vezes um passe que só é simples depois de ter sido executado é muito mais engenhoso que um passe de 40 metros. Temos tendência para dar mais ênfase a este último exemplo porque resulta de situações mais vistosas, mesmo que destas nem sempre venham mais benefícios do que situações em que os resultados não são tão instantâneos como aqueles, da mesma forma como se corta uma linha de passe, ou se desarma um adversário. Em muitos casos, os jogadores têm de recorrer a soluções criativas para resolver situações em que se encontram perante imprevisibilidades e para as quais, como tal, não poderiam estar preparados. O mesmo se aplica a dribles vistosos, mas que no entanto são "pré-fabricados", não é o acaso que leva a que os utilizemos, mas somos nós que conduzimos o jogo de forma a utilizá-los. Estas acções são engraçadas, excelentes para o ego; todavia, são menos úteis que os dribles que, apesar de aparentemente mais simples, são mais complicados, pois surgem como uma forma de contornar um problema inesperado e, como tal, os jogadores não dispuseram de tempo/espaço para preparar a sua execução. E a criatividade, apesar de se manifestar de forma individual, deve ser utilizada em prol do colectivo, não para beneficio próprio e efémero, colocando em risco a estratégia do colectivo. Não! Deve ser utilizada para se conseguir exactamente o oposto. Por outras palavras, deve utilizar-se este atributo como uma arma para contornar todos os problemas que inviabilizem a estratégia do nosso grupo. Isto sim, é criatividade.


Guilford e Godefroid definem a criatividade como algo que se sustenta em três aspectos essenciais: a fluidez, que permite ao criador encontrar um grande número de soluções, onde a maior parte dos jogadores só encontra algumas; a flexibilidade, que permite vislumbrar várias perspectivas sobre os problemas em questão; e a originalidade, que se caracteriza pela pela descoberta de novas formas de resolução para os vários problemas e situações.

Como é óbvio, a convivência com este tipo de jogadores não é fácil, pois estes são mais resistentes aos valores de grupo, se por acaso estes não coadunam com os deles, e dão preferência a soluções mais estéticas do que os jogadores comuns, o que por vezes poderá colocar em causa a eficácia das suas acções. Porém, não nos devemos sentir intimidados com este tipo de personalidades, antes pelo contrário; devemos perceber o estímulo que advém da necessidade de conseguir que este tipo de jogadores se identifique com o nosso modelo de jogo.

Para concluir, deixo-vos aqui uma lista de "crenças" que, na minha opinião, são equívocas, assim como uma lista de jogadores que se apresentam como criativos sem, no entanto, o serem e vice-versa:
- O jogador criativo só pode manifestar a sua criatividade na posse da bola.
- O jogador criativo terá de ser obrigatoriamente evoluído tecnicamente.
- O jogador criativo é, necessariamente, individualista.
- Confunde-se com um criativo qualquer jogador que seja forte no 1x1, apesar de muitos destes jogadores não oferecerem nenhuma solução para além do drible.

Jogadores Pseudo-Criativos: Cristiano Ronaldo, Vieirinha, Dominguez, Anderson, Bruno Gama, Denílson.

Jogadores Realmente Criativos: Farnerud, Mikel, Romagnoli, Aimar, Carlos Martins, Nuno Assis, Ricardo Carvalho, Delfim.

Está aberto o debate.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Dez tentativas

Pelé foi cedido, a título definitivo, ao Porto, tornando-se assim claro que José Mourinho não só não contava com ele para esta época, como também não considera que o internacional sub-21 venha a ter algum futuro. Eis dez tentativas para perceber por que razão isso aconteceu:

1. Porque ainda não sabia o que era um passe?

2. Porque José Mourinho andou a ler o nosso blogue?

3. Porque os seus dois neurónios não se adaptaram ao estilo de vida em Itália?

4. Porque, uma vez que Mourinho anda a adaptar jogadores para jogar na sua posição, mais depressa o Toldo jogava a médio-defensivo do que ele?

5. Porque os centrais começaram a regressar das lesões e já nem para fazer número servia?

6. Porque lhe prometeram que, com Mourinho, ele ia aprender a jogar à bola, mas num mês de trabalho ainda não sabia o que era um colega de equipa?

7. Porque continuava convencido que defender à zona era uma maneira de confeccionar bacalhau?

8. Porque suava demasiado e o seu cheiro ficava de tal modo entranhado na roupa que o Inter estava a ter prejuízo com roupa de treino?

9. Porque, com a chegada de Muntari, passou a haver demasiados pretos no plantel com os quais gozar?

10. Porque, tendo em conta as reais capacidades futebolísticas do Vítor, queriam que, em vez de Pelé, se passasse a chamar Vitinha?