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Pois então, no livro "Gil - Todas as letras", organizado por Carlos Rennó em 1996 (Companhia das Letras), descubro uma história fantástica sobre "Cálice", parceria de Gilberto Gil com Chico Buarque (foto). A polêmica letra, que cutuca a ditadura militar e faz trocadilho com "Cale-se!", fez com que a música fosse censurada e o microfone de Chico cortado no festival Phono 73. Aliás, foi esse show que motivou a criação da música. "A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla", conta Gil.
"Era Semana Santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra)", prossegue o baiano. E está lá, no final da segunda estrofe: "Na arquibancada pra a qualquer momento/ Ver emergir o monstro da lagoa". Gil observa que, como era Sexta-Feira da Paixão, foi seduzido pela ideia do calvário e do cálice de Cristo, de onde saiu o emblemático refrão: "Pai, afasta de mim esse cálice". E como Páscoa é sinônimo de vinho, tomou umas e completou: "De vinho tinto de sangue". Mas o melhor foi o surgimento da primeira estrofe, outra daquelas inspirações que ninguém conseguiria supor.
"Comecei lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia à sua casa. No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida". É plausível imaginar que Gil, ainda ressaqueado pelo vinho da véspera, tenha escrito de uma só canetada as frases da primeira estrofe: "Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta". E essa sensação etílica permeou a terceira estrofe, também escrita pelo baiano, que diz: "Esse pileque homérico no mundo/ De que adianta ter boa vontade/ Mesmo calado o peito, resta a cuca/ Dos bêbados do centro da cidade".
Engraçado é que, desde que foi lançada, "Cálice" ficou marcada pela conotação política dada por Chico Buarque - como a citação da morte de Stuart Angel Jones, filho de sua amiga Zuzu Angel, torturado pelos militares com a boca enfiada no escapamento de um automóvel que acelarava: "Quero cheirar fumaça de óleo diesel/ Me embriagar até que alguém me esqueça". Esse final com "me embriagar" sugere o teor alcoólico inspirador da clássica parceria, que acabou evaporando junto com a ressaca de Gilberto Gil.