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Esse texto foi publicado originalmente no blog
Desafios
Urbanos. Agradeço visitas por lá.
Não é tarefa das mais fáceis analisar os
protestos que acontecem atualmente em São Paulo por conta do aumento
da tarifas de ônibus. O que em um primeiro momento podia parecer uma
luta utópica de um punhado de estudantes de extrema esquerda (ênfase
no "parecer"), tornou-se sem qualquer dúvida o assunto do
dia, debatido por todos. Uma discussão que poderia acabar
circunscrita a poucas pessoas tomou corpo e tornou-se impossível de
ser ignorada. Essa visibilidade é boa. Está sendo criado um
ambiente propício ao debate, coisa que não havia antes das
passeatas.
Um relato do protesto de ontem pode ser lido
aqui.
Algumas questões aparecem de cara. A primeira é
qual a pertinência de um movimento que defende o passe livre? Se a
Prefeitura afirma que não consegue nem manter as passagens no preço
antigo, como a gratuidade no transporte pode ser possível? Apesar de
parecer impossível, o passe livre é, em teoria, factível. Como já
escrevi
aqui,
há várias cidades ao redor do mundo que conseguiram abolir as
tarifas dos sistemas de transporte.
Nelas, os custos dos sistemas (normalmente apenas
de ônibus) são cobertos por mecanismos próprios de arrecadação
de impostos. Cada cidade decide qual o mix de contribuições usadas
para pagar pela circulação de ônibus. Por trás dessa ideia está
a noção de que deslocamentos com carro particular custam muito mais
ao poder público do que aqueles feitos por transporte coletivo.
|
Foto Movimento Passe Livre |
Aliás, por que é aceitável que toda a
infraestrutura viária seja paga com impostos, enquanto os usuários
de ônibus têm de pagar por cada viagem? A resposta para essa
pergunta parece simplória, mas não consigo enxergar de outra
maneira: escolha política. Um exercício de retórica pode ser
interessante. O que aconteceria se cada proprietário de veículo
particular tivesse de pagar pelo direito de circular a cada vez que
sai de casa? Lembrando que o transporte individual traz muito mais
prejuízos coletivos do que ônibus e metrôs, como poluição,
congestionamentos e perda de tempo produtivo, por que essa escolha
faz mais sentido do que subsidiar o transporte coletivo?.
A segunda questão que surge é sobre a forma do
processo. As críticas aos protestos dividem-se em duas vertentes não
excludentes. Uma critica o fato de as manifestações fecharem
avenidas importantes, enquanto a outra foca nas ações violentas
cometidas por alguns manifestantes.
A primeira crítica faz sentido apenas no âmbito
individual. Uma pessoa surpreendida no caminho de uma passeata pode
acabar perdendo um compromisso importante. Entretanto, a afirmação
de que o direito de ir e vir dos cidadãos é desrespeitado pela
passeata é uma falácia. A liberdade de ir e vir não tem nada a ver
com liberar avenidas para que os motoristas de carros possam passar
livremente. A conquista desse direito têm a ver com a liberdade de
se locomover sem ser patrulhado (pelo Estado ou por quem quer que
seja), sem ter de explicar a ninguém o que está fazendo, para onde
vai e por que está na rua. Esse direito não era respeitado na
ditadura e – surpresa – continua não sendo respeitado nas
periferias das grandes cidades. Usar essa garantia constitucional num
contexto tão estrito serve apenas para banalizar o conceito.
Em segundo lugar, poucas pessoas defendem de fato
de que atos violentos sejam uma estratégia válida para pressionar o
Estado a ouvir suas demandas. Pode até ser que os poucos
manifestantes que quebraram vitrines e queimaram ônibus tenham algum
tipo de agenda diferente do movimento como um todo. Mas não se pode
desqualificar todo o protesto por isso. É desonesto. Se qualquer ato
de violência bastar para desqualificar uma luta, bastaria infiltrar
opositores no movimento e acabar com qualquer reivindicação.
Entretanto, todo esse debate não estaria
acontecendo se não fossem esses atos de violência. Esse não é o
mundo ideal, mas, se nada houvesse sido quebrado, é possível que os
protestos ocupassem apenas o pé de página dos jornais, o que
certamente enfraqueceria as demandas. Isso é apenas uma suposição,
mas a história da cobertura jornalística tradicional em relação a
protestos totalmente pacíficos mostra que isso não é uma fantasia.
Como a reivindicação do movimento é, muitas vezes, ridicularizada,
fica fácil ignorá-los. Isso não é a defesa da violência. Ela
deve ser punida dentro do que diz a lei. Mas atitudes violentas fazem
parte do jogo das conquistas populares históricas.
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Gianluca Ramalho Misiti/Flickr |
A outra face violenta dos protestos é,
evidentemente, a da violência policial. Não é possível deixar de
considerar que a polícia agride manifestantes constantemente, em
praticamente qualquer manifestação pública. Puxando pela memória,
lembro, de 2010 para cá, de policiais agredindo professores em
greve, vítimas das chuvas no Jardim Pantanal, desalojados do
Pinheirinho e estudantes da USP.
Na prática, o direito à livre manifestação não
existe no estado de São Paulo. A qualquer momento, sob qualquer
pretexto, a polícia pode jogar bombas de efeito moral e spray
pimenta em uma multidão. Basta uma ordem. A reação a essa
truculência não pode ser misturada com eventual vandalismo, que
pode ocorrer em qualquer aglomeração de pessoas.
Isso leva, claro, ao comando da Polícia Militar
paulista. Quem dá as ordens para que os policiais avancem sobre
participantes desarmados é, em última instância, o governador
Geraldo Alckmin. É sobre ele que deve cair o peso político dessas
escolhas. A polícia paulista é historicamente violenta e, em vez de
tentar mudar o espírito da corporação, adaptando-a à democracia,
os sucessivos governos estaduais têm utilizado o aparato repressor
em benefício próprio.
Como a maior parte da população do estado parece
concordar com essa política, fica fácil. Mas esse é um
posicionamento perigoso. Uma polícia que violenta manifestantes
pacíficos (e que, a bem da verdade, não tem treinamento para agir
quando vê um ato de violência no meio da manifestação) vai contra
os princípios democráticos. Essa é uma pauta urgente.
Por último, a recepção da Prefeitura em relação
às reivindicações do movimento pode não ser a mais acolhedora
possível, mas tampouco fechou as portas para o diálogo. O prefeito
Fernando Haddad deu declarações de que está trabalhando
politicamente com outros prefeitos para municipalizar a Contribuição
de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que incide sobre
combustíveis, para subsidiar o transporte público e baratear a
passagem.
É uma boa notícia e torço para que isso se
torne realidade. No entanto, há outros meios de subsidiar o
transporte público. É preciso aumentar o leque de opções. Nenhum
governante ganha muita popularidade criando um novo imposto, mas o
debate deve acontecer. Para isso, é importante que os defensores da
ideia do passe livre munam-se de argumentos e aproveitem a
possibilidade de diálogo (tão rara em São Paulo nos últimos anos)
e façam acontecer. O ambiente está propício para essa discussão.
Que o momento não seja desperdiçado.