Ai aguenta, aguenta!
Por: José Manuel Pureza in DN OPINIÃO 02 de Novembro 2012
O País aguenta mais austeridade?
"
Ai aguenta, aguenta ! " Que
o banqueiro
Fernando Ulrich se tenha sentido na obrigação de vir a terreiro para, do alto da
recapitalização garantida do seu banco, ameaçar o País nestes termos é
revelador. Ao dizer o que disse e como disse, ele foi o
porta-voz do misto de
desespero e cinismo de uma elite económica e política que vê chegado o tempo da
queda das máscaras. Primeiro caiu a máscara da salvação do País da bancarrota,
disfarce de uma estratégia que não tem feito outra coisa senão levar o País
justamente para a insolvência sem remissão. Depois caiu a máscara dos "efeitos
inesperados", com a qual o Governo quis camuflar a sua aposta deliberada no
desemprego como chantagem sobre o emprego e os salários e na espiral recessiva
como desígnio para uma suposta periferização virtuosa da nossa economia. Nem
salvação nem desvios imprevistos - apenas estratégia, fria e implacável, de
aplicação do dogma liberal.
O Orçamento esta semana aprovado é incumprível e foi precisamente para o ser
que o Governo o fez como fez. Na lógica animada pela obsessão ideológica do
Executivo, a operação de reengenharia da sociedade portuguesa ainda vai a meio.
Vítor Gaspar exprimiu-o com clareza na imagem da maratona e da não desistência
aos 27 quilómetros. Ulrich, com menos paciência para metáforas do que Gaspar,
foi direito ao assunto: "Ai aguenta, aguenta!" O patamar de austeridade e
empobrecimento já atingido não chega para os propósitos da direita económica e
social que tem em Passos e na sua equipa os seus políticos de serviço. É tempo
de passar à segunda fase do plano. Não é outro o sentido da proclamação da
enigmática "refundação" do memorando de entendimento com a troika pelo
primeiro-ministro. Flagelado e deixado exausto o tecido social, é agora o tempo
de passar ao desmantelamento completo dos serviços públicos e dos direitos
sociais. Agora cairá uma última máscara: "Cumprir as metas" em 2013 vai
significar 3,5 mil milhões de euros a menos em saúde, educação e segurança
social. Tão simples e cruel como isso.
Agradeçamos a Fernando Ulrich a clarificação inequívoca do horizonte
pretendido por esta operação. Diz ele: o desemprego na Grécia "já está em 23,8%
e chegará aos 25,4% no próximo ano. Apesar disso, os gregos estão vivos,
protestam com um bocadinho mais de veemência do que nós, partem umas montras,
mas eles estão lá, estão vivos." O recado não podia ser mais cristalino: os
gregos estarem vivos é a prova de que, austeridade em cima de austeridade, um
povo pode viver sem direitos, sem proteções, sem mecanismos de equilíbrio, sem
nada. Apenas com a vida nua. "Estão vivos" - diz Ulrich - apesar de tudo lhes
ter sido tirado (ou, em linguagem mais cara ao banqueiro, de os seus custos
terem sido eficientemente minimizados), estão vivos apesar de não terem emprego,
de não terem como pagar os cuidados básicos de saúde, de não poderem pagar o
crédito à habitação - e se eles estão vivos apesar de tudo isso, não nos venham
com lamechices de que o povo português já não aguenta mais austeridade. Ai
aguenta, aguenta!
O programa desta segunda fase do ajustamento estrutural é, pois, o de uma
refundação não do memorando mas do regime político em Portugal. Pela mão do
Governo e da troika, a democracia portuguesa corre o risco de ser grosseiramente
desfigurada em poucos meses. O que está em causa é uma gigantesca operação de
privatização de tudo aquilo em que se joga um desempenho social do Estado e,
portanto, de tudo aquilo em que a democracia é social e não apenas política ou
cerimonial. O plano B da troika é afinal o plano A de sempre de uma elite que
não perdoa ao 25 de Abril ter aberto a porta à transformação das relações
sociais em Portugal.