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quinta-feira, dezembro 08, 2011

Nunca é tardio homenagear o Doutor; nem para um são-paulino

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POR MORITI NETO


É sempre tempo de destacar a importância que Sócrates Brasileiro teve para o Brasil, infinitamente maior do que a bola fina que jogava. Algo ligado, mais do que à personalidade forte, ao caráter, que não permitia abrir concessões quando se tratava dos valores em que acreditava.

São-paulino que sou, ultrapassei a paixão pelo clube de coração e, desde bem jovem, admirei o Doutor. E não somente pela magia da Seleção de 1982. Aquele camisa 8 do Corinthians, carrasco do meu Tricolor nas decisões dos campeonatos paulistas de 1982/83, mais do que craque dos campos, era uma referência fora deles. Serviu-me de modelo e mostrou, num universo mediocrizado pelas bobagens que se diziam no ambiente do futebol ou em geral, ser possível jogar e pensar. Na verdade, ser possível viver e pensar.

Em época da obrigatoriedade de cantar o Hino Nacional na escola, quando Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB) substituíam Filosofia e Sociologia nas aulas, num país ainda militarizado e no estado de São Paulo governado com muita Rota nas ruas, me impressionei, entre os 11 e 13 anos de idade, com duas passagens protagonizadas por aquele homem esguio, magro, que não parecia talhado à prática esportiva.

A primeira imagem que me vem à cabeça data de 16 de abril de 1984. Minha mãe, professora, sindicalista, saiu do Tatuapé para participar daquele que seria o grande comício pelas Diretas Já e a maior manifestação pública da História do Brasil. Quis ir junto. Temendo algum tumulto, ela não permitiu. Tive que me contentar com o rádio, até porque a televisão era superficial na cobertura, quando não a ignorava, caso da Globo. Foi assim que escutei Sócrates, artífice da Democracia Corintiana, num Vale do Anhangabaú lotado por mais de 1,5 milhão de pessoas, dizer: “Se a emenda Dante de Oliveira for aprovada, nem todos os dólares do mundo me farão deixar o Brasil. Este vai ser um novo país e eu quero participar dele”. Nove dias depois, em 25 de abril, por diferença de 22 votos, a emenda que restabeleceria eleições presidenciais diretas após 24 anos era vencida no Congresso Nacional. Em pouco tempo, o craque iria para a Fiorentina da Itália. Não importava. Apaixonado por futebol, aquela era a primeira declaração política vinda de um agente externo ao meu círculo de convivência que me impactava.  

Como segunda experiência inspiradora trazida pelo Magrão, recordo entrevista à revista Placar, na edição de 3 de maio de 1986, das que me fez começar a busca pelo entendimento do esquizofrênico mundo jornalístico.  Ele estava no Flamengo e acabara de atender à convocação de Telê Santana para a seleção que disputaria a Copa do México. Dentre as perguntas, várias faziam referência ao possível desgaste da imagem pública do jogador, principalmente perante a imprensa. Dias antes, a Veja, sempre ela, havia criticado ferozmente um encontro entre o então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, e o Doutor, durante o Carnaval carioca. A semanal dos Civita, dentre outras pérolas, apontava: “Com isso, o governador caiu numa trapaça do Carnaval, quando os sóbrios espertos acabam se metendo com bêbados que pensam apenas em se divertir”. Nas páginas da Placar, curiosamente também da Abril, Sócrates disparou: “Este é o país onde mais se bebe cachaça no mundo e parece que eu bebo tudo sozinho. Não querem que eu beba, fume ou pense? Pois eu bebo, fumo e penso. Não fico escondendo as coisas”, sentenciou. Mais uma lição. A da autenticidade.

Os anos passaram e fiquei tempos sem saber profundamente dos rumos de Sócrates. Vez ou outra lia a coluna dele na Carta Capital ou notícias pontuais. Até que, recentemente, voltei a acompanhá-lo. Inicialmente, como assíduo espectador do Cartão Verde, da TV Cultura, nas noites de terça. Depois, para um trabalho de conclusão de curso de um orientando que decidiu, no início de 2011, pela Democracia Corinthiana como objeto de estudo e conseguiu, certamente, uma das últimas entrevistas com o craque, em junho.

Envolvido na pesquisa, pude receber outra lição do Magrão. Numa edição do Cartão Verde, de 2009, ele conta que foi convidado, em 2002, quando da primeira eleição de Lula, para assumir o Ministério do Esporte. “O Lula disse que queria o Tostão ou eu. Recusei, pois era um governo que vinha cercado de dúvidas plantadas pelos conservadores. Eu sou um cara de ir pro confronto. Nunca andaria com Ricardo Teixeira (presidente da CBF) ou com o Nuzman (Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro). Para colaborar com a estabilidade do governo, recusei”. Novo exemplo. Dessa feita, do despego ao poder. Assim como fez no Corinthians, quando abdicou de ser só estrela de um grande clube para democratizar o peso das vozes que ali estavam, usando do prestígio e espaço que dispunha e, muitas vezes, por convicção e coerência, enfrentou a fúria do conservadorismo.

Ao pensar num cenário que mistura futebol e política, concentrando Fifa, CBF, Ricardo Teixeira, Andrés Sanchez, Ronaldo, Juvenal Juvêncio e outras figuras em luta renhida pelo poder, a morte de Sócrates é uma grande perda. Ficam as posturas dele, que podem ser evocadas como inspirações.