
Diário Popular, 26 de Março de 1969
Em Lisboa, lá pelos idos 60s, internado estava eu nessa nefasta instituição de nome Colégio Militar, onde tudo o que de útil aprendi - e não é pouco - foi nutrir um enorme e profundo desprezo por tudo o que diga respeito à tropa, tradições e trogloditas.
Confesso: aprendi igualmente a arte das altas fugas nocturnas que regularmente concretizava com amigos saltadores de muros altos.
Num ou noutro fim de semana ia a casa de meus Pais. Era esta, nesse tempo, no Entroncamento, um perfeito exemplo de localidade que me inspirou textos e textos que - julgando escrever um livro de crónicas do ridículo - juntei numa sebenta, cuja capa ostentou o nome "Poeira e Calhandrice".
Digo os "tentei", pois viria a levar sumiço. Perda de menor importância.
Algumas destas crónicas escrevi-as em verso, rimas atrás rimas, arroubos de romantismo adolescente. E, aos poucos, as que me pareciam de valia maior foram adquirindo forma de letras de canções imaginárias.
A música já se tornara uma paixão (quando a rádio era útil e era culto), o gosto já se depurava, muito por influência de um enorme amigo que ainda consta do rol dos para-toda-a-vida, Rão Kyao, esse mesmo, que também usou aquela caricata farda colegial e que, como eu, detestava ser soldadinho de chumbo andando a toque de caixa.
Lembro-me que o Rão nos ensinou a degustar Ray Charles, quando andávamos todos com fome de Beatles. Nem aquele, nem estes - antes pelo contrário - me causaram indigestões.
Pois foi uma dessas hipotéticas letras guardadas naquela sebenta que veio a originar a "Flor de Laranjeira". A retratada noiva existiu mesmo, de uma família muito bem - dizia-se assim, quando referindo gente rica -, o casório foi de espavento e estadão.
Mas a menina já ia grávida e as línguas desataram-se em bocas pequenas como calhandras levantando poeira no adro da igreja.
Hoje não seria assunto para letra, mas nesse tempo foi para o que me deu.
Guardada a letrinha, viria pouco depois a ser entregue ao meu amigo Luís Linhares que, captando a forma de prosa nas frases longas da primeira parte da canção, como se reportagem jornalística fosse, deu à minha crónica de costumes a força satírica que, sem melodia, acabaria por desaparecer sem história, como o resto da sebenta.
António Avelar Pinho
Foi a banda sonora de um daqueles documentários antes do filme, que nos levou até aos LPs de serapilheira com as recolhas do Giacometi e do Lopes-Graça.
Tínhamos acabado o "Menino”, onde extravasámos toda a nossa “beatleculture” adaptada à “canção da beira-baixa”.
Aqueles álbuns de serapilheira abriam-nos um novo horizonte sonoro.
Os Canned Heat, um grupo de rústicos americanos que não devia ter entrado neste filme, acabou por nos inspirar para a tradução do ritmo de bombo da chula na bateria e no baixo.
Estávamos quase convencidos de que tínhamos chegado a um verdadeiro “country português”, numa espécie de folclore imaginado…
O poema pouco métrico do Pinho ajudou na construção da melodia “minimalista e repetitiva de inspiração folclórica”.
Quando entrámos no Estúdio da Nacional Filmes, não sabíamos bem qual seria o resultado final. O Heliodoro Pires lá gravou um cavaquinho e uma viola juntamente com um “órgão Philicorda” que fazia mais ruído do que um moinho de café, depois do baixo e da bateria e antes das vozes.
Só quando começámos “as misturas” de tudo isto nos apercebemos de que, em pleno “nacional-cançonetismo” e música Yé-Yé, aquele som não nos envergonharia…
Mas foi o produtor João Martins que apostou naquela flor como lado A do EP.
Pronto, uma flor que fez história (grande ou pequena não vem ao caso).
Luís Linhares
A Filarmónica Fraude é originária do eixo Entroncamento/Tomar, com raízes nos G-Men, que participaram na 3ª eliminatória do Concurso Yé-Yé, no Teatro Monumental, em Lisboa, no dia 11 de Setembro de 1965, e nos Académicos.
Nos G-Men actuavam António Avelar Pinho, na bateria, única vez em que mexeu num instrumento, e José João Parracho, baixo, ou seja, uma secção rítmica.
Nos Académicos, andavam António Antunes da Silva (guitarra) e Júlio Santos Patrocínio (bateria).
Juntaram os trapinhos, arregimentaram Luís Linhares (teclas), que tinha 15 anos e usava calções, e assim nasceram os Incas que foram de táxi a Valência de Alcântara, Espanha, a um concurso de onde foram desclassificados por alegadamente terem plagiado Schumann. Ou melhor, esqueceram-se de mencionar esse facto.
António Avelar Pinho propôs então uma nova designação para o conjunto, apresentando como alternativas Água Suja, Condição e Filarmónica Fraude.
No Verão de 1968 - primeiro contrato profissional - actuaram em "A Cabana", Alvor, Algarve, onde providencialmente estava Fernando Assis Pacheco, então no "Diário de Lisboa", que os deu a conhecer ao País.
A Filarmónica Fraude tocava então "Lady Madonna", "A Whiter Shade Of Pale" e "Yesterday", mas já tinha a letra de "Animais de Estimação". O Duo Ouro Negro, que também andava pela "Cabana", gostou do que ouviu e levou uma K7 para Lisboa.
Numa entrevista ao "Diário Popular" de Abril de 1969, confessavam que não tinham ídolos, mas que as suas influências vinham, sem dúvida, do dr. José Afonso, Carlos Paredes, Donovan, Canned Heat, Manfred Mann, Moody Blues e, claro está, Beatles.
Sobre a Filarmónica Fraude escreveu Vera Lagoa no "Bisbilhotices" de 25 de Junho de 1969, a propósito de uma festa da Philips (editora da FF):
João Martins (produtor da FF), um homem que tem um "charme" louco e trabalha loucamente, apertado num casaco que ele julga ficar-lhe muito bem, mas que eu detesto, contou do êxito que os discos gravados em Portugal tiveram no encontro Philips internacional, em Espanha.
Contou do êxito que a gravação da Filarmónica Fraude fez nesse encontro.
Os rapazes da Fraude são novíssimos. O mais velho tem 20 anos e o mais novo 17. Informais. Longos cabelos. Mas achei-os tristes. Ou tristes ou demasiado convencidos. É preciso um sorriso, rapazes. Apenas um sorriso. Que cara será a vossa quando tiverem 40?
O primeiro EP da Filarmónica Fraude, "Flor de Laranjeira", foi editado no dia 19 de Março de 1969, faz hoje 50 anos.